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Fotografia: João Duarte / Jacc
Publicado a: 26/07/2023

A viagem nostálgica, mas não romantizada, de lagrimento.

ben yosei: “O meu trabalho é criar uma religião que seja verdadeiramente inclusiva e universal”

Fotografia: João Duarte / Jacc
Publicado a: 26/07/2023

Preparem-se para abrir os vossos canais lacrimais quando escutarem lagrimento, o novo disco de Rafael Trindade, ou seja, ben yosei, editado no início do mês de maio.

Considerem isto um aviso que vos deixo. A realidade é esta: lagrimento, como o nome já indica, é para chorar. Acreditem. Serão boa gente se assim o fizerem. É um disco que diz ser de “música devocional”, recheados de hinos e orações perdidos entre ambient, drones pujantes carregados de emoções e clamores que vão desde os cantares de Rafael até à presença e voz que Conan Osiris, o único convidado presente em lagrimento, oferece em “ceifa”.

Pelo meio disto tudo, o que fica? Devoção à sua terra natal – Liceia –, à sua família (quem tem relação próxima com a sua avó vai sentir este disco na pele, fica outro aviso), aos amigos que o têm acompanhado ao longo do tempo, a uma margem perdida, sonhada, que soa distante no passado, mas que se reflete e se sente no presente. Escrevi na Playback, há algumas semanas, algo que mantenho sobre lagrimento. É “uma das mais belíssimas reflexões sobre aquilo que é crescer fora dos centros urbanos, rodeado por um universo de santos, catolicismo, e mística fantástica”, que em sentimento, aproxima-se bastante daquilo que os Glockenwise cantam na brilhante ode à margem que é o seu mais recente álbum, Gótico Português.

Numa altura em que se discute bastante sobre como tradições se imiscuem hoje na música portuguesa – que ben yosei, a dado ponto durante a nossa conversa, descreve como estando a passar por um momento “crucial e sobretudo bom” – aquilo que lagrimento faz é oferecer-nos uma reflexão ponderada sobre a realidade do que é crescer no “campo”. A viagem é nostálgica, mas não romantizada. É apenas real e crua. 

Este sábado (29), ben yosei vai atuar no ZigurFest, no Centro Cívico de Lamego (entrada grátis), onde vai apresentar um concerto-palestra intitulado “Música devocional: a transcendência e a religião nas novas formas musicais“, com incidência em temas como a música devocional e como a tradição folclórica portuguesa se reflete nas vivências dos lamecenses.

Mas antes disso, uma conversa. Emocional e despida. Para entender o universo de lagrimento, o maior “segredo” de 2023 na música portuguesa.



Queria começar esta conversa a entender uma coisa. Tu dizes que fazes “música devocional”. O que é isto de música devocional?

Grande questão. Música devocional é um conceito abstrato de explicar. Para mim, é toda e qualquer música ou expressão musical que se alie de uma devoção a algo. E essa devoção não tem que ser necessariamente religiosa, embora eu veja sempre uma religiosidade em qualquer tipo de devoção. Mas imagina, para mim, se estiveres a escrever sobre a tua amada ou amado, ou se estiveres a escrever sobre um valor no qual acreditas a 110%, isso para mim é música devocional. O que eu de alguma forma quis e quero comunicar com o denominar da minha música como música devocional é que é devota, não só religiosamente, mas também às pessoas que conheci durante o caminho e sem as quais sinto que a minha música não seria como é agora sem elas. A minha terra, a minha família, amigos, pessoas que conheci e moldaram o meu crescimento, animais, tradições, os deuses da minha cabeça. Literalmente música devocional pode ser devoção a literalmente qualquer coisa! Eu até gosto de fazer um exercício comigo próprio em que encontro música devocional em coisas que supostamente não são devocionais. Há bué música pop que sinto que é música devocional. Por exemplo, a “Kiss of Life”, da Sade. É uma das minhas músicas favoritas de sempre e considerá-la-ia música devocional, ainda que não on the surface. Portanto, acho que é um termo bué abrangente e, ao mesmo tempo, bué específico nesses parâmetros que acabei de descrever.

Tocaste na tua resposta à primeira pergunta em vários temas que surgem tanto no teu primeiro disco enquanto ben yosei, luz, mas de forma mais presente no teu novo trabalho, lagrimento. Sinto que tu no luz já procuravas, de alguma forma, expressar essa homenagem e esse sentimento de introspeção para com as tuas raízes, que agora expões com mais afinco no lagrimento. Que mudou entre os dois discos para essa evolução ter acontecido?

Fiquei menos parvo [risos]. Convém, né? Mas imagina, eu gravei o luz num setting muito diferente daquele onde gravei o lagrimento. Eu gravei o luz quando vivi em Lisboa e era uma vida bué de domesticidade que eu levava com a minha então significant other devido à pandemia, e acho que isso se traduz muito no próprio disco. O lagrimento, por outro lado, foi gravado inteiramente na minha casa de infância, onde cresci, e onde estou a viver agora, com o meu pai. Já tinha o disco a germinar na minha cabeça há ano e meio, dois anos, mas o momento que foi decisivo para eu gravar o disco foi ter-me mudado para a minha terrinha, em setembro de 2022, onde tive a oportunidade de voltar a conectar-me com as minhas raízes. Ao estar cá, por exemplo, tive a oportunidade de ver todos os dias a minha avó que, para mim, é a figura central do disco, simbolicamente, mas também concretamente. Isso deu uma dimensão ao disco. Acho que o luz e o lagrimento são ambos homely, mas de formas diferentes. O lagrimento vai bué a fundo ao que são as minhas raízes, quem eu sou, o que procuro construir com as pessoas que amo e o que procuro que as pessoas que amo construam também. E também tive uma solidificação da minha fé devido a tragédias pessoais na minha vida que, de alguma forma, esculpiram, reforçaram e solidificaram a minha fé enquanto pessoa religiosa. Portanto, acho que essas seriam as maiores mudanças de um disco para o outro. E acho que estou a cantar melhor também! [Risos]

Mencionaste a tua avó, que é uma pessoa e entidade muito presente no lagrimento, ao ponto que uma das músicas se chama efetivamente “bó”. Essa e a “anjo”, em sequência, deixam-me muito emocionado porque tenho uma ligação muito próximo à minha avó. A voz que se escuta na “bó” é mesmo a da tua avó?

Ya, é a minha avó. A minha avó surge em dois momentos do álbum. A minha avó fala nessa música e é também ela a cantar “A Treze de Maio” na “rosário”.

O uso desses samples representa a ligação que tens com ela?

Ya, bué. Imagina, a “bó” retrata mesmo muito a relação que tenho com a minha avó. Ela já tem 83, 84 anos, e a cabeça dela já não é o que era e ela tem deambules, estás a ver? E fala em tangente. E o que se ouve na “bó” foi um desses momentos. Ela sempre foi… Não é convencida, mas um bocadinho. Uma espécie de convencida fofa, sabes? De ser inteligente, confiante, amada por todos, mas sempre foi humilde perante todo o amor que as pessoas lhe dão. E acho que essa conversa retrata bué esses dois aspetos. E a cena do se chamar “bó” tem bué significados. Tem uma cena que vem da mitologia egípcia acerca do “Bó”, que é uma espécie de pássaro que sai dos corpos das pessoas quando a tua alma é tão leve como uma pena. Portanto, o que estou a dizer é que a minha avó é um ser puro. Depois, quando estou cá na Gândara, imiscuído em convivência gandaresa, troco o “v” pelo “b” e em vez de dizer avó, digo muitas vezes “oh bó!”-

Eu digo bó também!

Vês?! Não sei se isso era algo que estava a tentar transmitir, mas sinto que o pessoal está bué vibing com essa música… Vibing, lol, o pessoal está mesmo a chorar! 

Vibing é uma forma mesmo muito simpática de referir choro [risos].

Exato [risos]. Mas sinto que o pessoal está a sentir o som — sentir o som soa demasiado casual para o que é [risos]. Acho que é uma cena bué comum às terras, a cena de chamar “bó”. Fico mesmo bué contente por, a partir dessa cena particular, muita gente tirar qualquer coisa disso. E aproveito mesmo para dizer: as reações ao disco estão a ser tremendas.

Queria perguntar-te especificamente pela “anjo” pela importância da espiritualidade no lagrimento. Apesar disso ser um tema comum a todo o disco, acho que essa música em particular ganha uma dimensão especial porque se assemelha a uma dedicatória a alguém que tu já não sabes se está ou não presente. O que sentiste à medida que criaste a “anjo”?

Honestamente, bué culpa. Imagina, o disco tem uma narrativa e a “anjo” é o momento em que desabo completamente e vou abaixo. É o lowest of lows, em que estou a tentar ajudar alguém e sinto-me, face às minhas tragédias, à culpa que vou acarretando, da minha tradição, da minha religião, da minha família, de bué vivências minhas, completamente em baixo. Acho que se tivesse de fazer um análogo a outra cena qualquer, e apesar de ser algo parvo comparar-me ao Kendrick Lamar, é como se fosse a “u” do álbum basicamente. Vou-te dar uma hidden gem da “anjo”. Na parte em que estou a fazer os “uuuus”, eu literalmente estava a chorar a cantar enquanto gravava. Portanto, é mesmo heavy para mim e é uma música que tento não tocar muito ao vivo. Eu toco, já toquei, mas é sempre bué difícil, porque é sobre eu tentar ajudar as pessoas que amo e sentir que sou insuficiente e acabar por levar com a culpa católica/cristã de não ser suficiente e não me conseguir sacrificar por aqueles que amo, porque sinto que isso é um requisito para os ajudar, estás a ver? É bué conflicting. Acho que foi sobretudo isso que senti a gravar a “anjo”: conflito. Mas bué catarse também, no fim de a gravar. A melodia da “anjo” foi das primeiras que tinha na cabeça para o disco, já há bué tempo. Portanto, quando dei lay down à track fiquei mesmo a sentir que aquilo era verdadeiro e genuíno, precisava de estar cá fora e esperava que fosse ajudar alguém ou tocar alguém de forma positiva.

Falaste na tua resposta sobre a culpa católica e uma dimensão muito interessante na tua música é a exploração da tua relação com a espiritualidade e religião sem esconder a tua própria identidade, tanto queer como as tuas vivências por inteiro. Como é que todas estas partes existem em ti, não só enquanto ben yosei, mas também enquanto Rafael Trindade?

Grande questão. Deixa-me pensar um bocadinho porque é um assunto mesmo sensível. [Pausa para pensar] Tenho tido bué conversas com uma pessoa que me é muito querida sobre isso mesmo e tenho concluído que aquilo que faço, se calhar, é um statement político. Eu vejo isso. Acho que a religião organizada veio de alguma forma pautar uma dissidência cancerosa naquilo que para mim sinto que deve ser verdadeiramente a religião. Quando olho para as minhas crenças religiosas, olho para o Cristo carpinteiro, para os dez mandamentos, e vejo máximas, agendas. Por exemplo, ainda agora estava a ler sobre as Jornadas da Juventude, em Lisboa, em que o metro ia acolher peregrinos, e fiquei a pensar: “Ok, e os sem-abrigo que estão lá todos os dias? Ninguém abriga essas pessoas?” Quando eu falo em religião, falo numa religião para todos, uma religião que ame verdadeiramente o próximo e que o dignifique enquanto outro. Não importa a tua raça, se és queer, se és o que quiseres que seja. O que importa é que existes e que és digno e merecedor de amor como toda a gente. Portanto, é isso que eu procuro passar com a mensagem do que tenho para dizer. Inclusive, há um livro bué fixe na Bíblia, que é o Book of Esther (Livro de Ester), que é o único livro da Bíblia que não fala de Cristo e Deus explicitamente. Tu nesse livro tens uma senhora pagã, que aos olhos de Deus, é considerada mais religiosa do que muitos supostos praticantes da religião armados de dogmas e crenças pré-estabelecidas historicamente. E o meu trabalho é abolir dogmas pré-estabelecidos historicamente e criar uma religião que seja verdadeiramente inclusiva e universal, que abranja toda a gente e todo o amor que há no mundo. O ódio não é oposto ao amor, são cenas que se transformam uma na outra. Acho que o medo é que é oposto ao amor e nós muitas vezes temos medo de agir – mas não podemos. Amor é tomar partido, é tomar ação, e é isso que tento fazer, na realidade. Religião é para todos e o amor também.

A tua relação com a religião e espiritualidade alterou-se ao longo do tempo?

Sempre, sempre. Não acredito na ideia de que as crenças são sempre bué consistentes e rígidas. Não. Nada em nós é. Acho que o ser humano é bué fluído, contraditório, hipócrita até, se quiseres. Eu fiz um minor em Filosofia — e isto agora tem sido recorrente nas minhas entrevistas [risos], dizer que eu tenho um minor em Filosofia — e um dos meus filósofos preferidos é o Søren Kierkegaard, que é o fundador do existencialismo. Já leste algo dele?

Não li, não li! Já sou existencialista o suficiente sem ler o pai do existencialismo [risos].

Mas ele vai-te dar uma cena fixe! Se quiseres ler o Temor e Tremor, estás à vontade. Acho que o lagrimento inclusive se prende muito a cenas que esse livro fala. É mesmo bué fixe. Ele fala da ideia de não termos só crenças estáticas e rígidas e que o verdadeiro crente é um cavaleiro da dúvida que constantemente questiona a sua própria fé e é nesse questionamento que Deus se revela. Tipo a teoria das conjeturas de Popper, estás a ver? Vais sempre questionando uma cena, constantemente, e ela vai-se revelando como verdade e vai ficando mais verdadeira. Essa é a verdadeira magia de Deus para mim quando tens uma questão e um momento particular de crise. Por exemplo, a “anjo”, a “prece” e a “ceifa”, com o Conan, acabam por ser uma resposta de Deus. Há amor, há amizade, it’s waiting out there to find you. Muitas vezes Deus também se revela nessas cenas mais pequenas, estás a ver? Acho que disse isto na minha outra entrevista ao Rimas em 2020, que os diálogos em si podiam ser uma bênção e um sinal de Deus. Isto de estar a falar contigo sobre o meu trabalho e ter gente interessada é Deus a responder-me porque é uma bênção para mim. Ele afirma-se nessas coisas também, entre outras.

A tua relação com a tua terra-natal, Liceia, encontra-se muito presente no lagrimento. De que forma a tua relação com Liceia mudou ao longo do tempo e onde se encontra agora?

É mesmo fixe perguntares isso porque a minha relação com Liceia sempre foi complicada. Ao início… Eu não tenho medo de admitir isto porque acredito que vá fazer sentido para alguém que esteja ler e espero também que ajude de alguma forma. Eu passei desde o meu primeiro ao meu sétimo ano a ser vítima de bullying mesmo hardcore. Então, associava muito Liceia a essas vivências, a uma cena bué grunha e hostil, de sentir masculinidade tóxica na pele, tanto de mim para comigo, como dos outros para comigo. Eu fui um teen mesmo bué emo e sofrido, a ouvir Breaking Benjamin ou Bullet For My Valentine à espera de não ser enfiado num cacifo, estás a ver [risos]? Mesmo esse tipo de cena. Daí eu ter sempre tido um desejo bué grande de bazar, de ir para Lisboa, para o estrangeiro, de singrar e ser bué bom na música. Eu falava com o meu melhor amigo, que também é daqui, sobre isto e ele queria ficar cá, bué tranquilo, com os pais, e eu tinha sempre a imagem de Liceia como sendo um local onde não acontecia nada. Mas há medida que fui crescendo, isso mudou, e também precisei de me afastar deste sítio para perceber. Estive a viver cinco anos em Coimbra, depois fui para Lisboa, depois mais dois anos em Coimbra e só depois voltei para Liceia. Precisei de uma certa distância, crescimento e maturidade para entender certas coisas. E Liceia é bué safe haven para mim. Há coisas que vivi aqui e com que cresci aqui que são insubstituíveis no meu ser. E isto é tudo uma cena abstrata em que penso que nem consigo explicar. Eu odeio a cena de “Tu tens é que sentir”, mas é um bocado isso, estás a ver? É um local circundado por natureza, onde as pessoas dizem “olá” umas às outras, onde ser somente o Rafael Trindade e não o ben yosei e ser filho do meu pai é o suficiente para as pessoas virem falar comigo. Depois, os arraiais, a cultura devocional, religiosa, que para mim também sempre foi bué reconfortante… não sei mesmo explicar. É uma coisa que é mesmo difícil para mim colocar em palavras e que tentei fazer com o lagrimento e espero que tenha conseguido. 

Eu ia perguntar por isso, mas como estás a falar dessa questão de ser um safe haven… Lembra-me logo aquilo que os Glockenwise cantam na “Vida vã” – “A vida inteira num lugar / Ficava aqui até ao fina”. Acho que há um paralelo enorme entre o lagrimento e o mais recente disco dos Glockenwise, Gótico Português, porque ambos cantam e apresentam o lado escondido e fantástico da “margem”. Vês algum paralelo entre o teu disco e o dos Glockenwise?

Vou-te ser bué sincero: eu ainda não ouvi o disco dos Glockenwise, mas aposto que está bué fixe. Ouvi uma música, que foi a “Vida vã”, achei bué fixe, mas ainda não ouvi o resto. Mas eu fui estando atento à press que eles tiveram e o que comunicaram sobre o disco e como estava prestes a lançar o lagrimento fiquei a pensar “Porra, estes gajos fizeram a cena primeiro” [risos]. Não foi bem primeiro, porque acho que é de forma diferente, mas de conceito e do que parece ser o disco, de como é apresentado e comunicado, a mensagem é definitivamente semelhante e é uma das cenas que me está a puxar bué para ouvir. Só ainda não tive o tempo porque quero mesmo ouvir com atenção e com dedicação. Mas shout-out Glockenwise, são fixes.

Na última entrevista que concedeste ao Rimas e Batidas, em 2020, falavas sobre a tua relação com o ethos da música tradicional portuguesa, tema do qual já tocaste um bocadinho nesta entrevista. De que forma observas, enquanto pessoa que cresceu na margem, muitas das junções entre o tradicional e o contemporâneo feitas de momento na música portuguesa?

O Gato Mariano colocou-me essa mesma questão e eu tentei dar a resposta mais sem beefs ever [risos]! Mas em teoria, este é um caminho fixe. Só acho que, e eu não quero estar a dizer às pessoas o que fazer ou algo que vem das pessoas erradas necessariamente, há um processo de industrialização, da mitigação desse ethos, e de capitalização para vender isso enquanto produto estético. Mas isso não assenta muito nas minhas preocupações. Importa-me é que as pessoas peguem em coisas e façam aquilo com o respeito à essência que aquilo contém. Não quero estar a dar uma de Sam The Kid e dizer quem ou não representa algo. Não é isso. Mas acho que as coisas têm de ser feitas com o coração aberto e cheio e com amor àquilo que está a ser tratado. Há expressões em que isso vai acontecer mais e há expressões, se calhar por serem mais populares, em que isso vai acontecer menos. Mas either way, not my place to speak. O que posso dizer é que, da minha parte, eu faço isto porque não consigo fazer de outra forma. É de onde vim. Vim da terra castanha do quintal da minha avó e não consigo fazer as coisas de outra forma. Tem de vir daí. Agora, se isso vem com o sentimento de reconquistar o que é meu? Não, não vem. Se tem sido o caso sempre de as pessoas fazerem essas junções com amor às coisas? Não sei, mas tenho as minhas dúvidas. É bué fixe as pessoas estarem a pegar no que é a música portuguesa, que é uma cena mesmo linda, e acho que estamos num momento bué crucial e bom – sobretudo bom – para a música portuguesa. Acho que a partir daqui podem nascer cenas bué incríveis. É nisso que os meus olhos estão. E é também a cena do mar, meu. O mar leva as cenas que não interessa e deixa ficar as que interessam. The sea works its ways, sabes? Por isso, não estou muito preocupado com isso.

Alguma vez sentiste que devido ao teu background de vir de uma vila para Lisboa ou outro grande centro urbano fazia com que te sentisses à parte do que acontecia à tua volta?

Hmmm… Sabes, não me quero armar em special snowflake, mas isso acontece-me em todo o lado [risos]. Se estiver na terrinha, sou demasiado citadino ou urbano, mas se estiver na cidade, sou demasiado “campónio”. Mas não me senti alienado na cidade. De todo. Apenas sempre fui uma pessoa particularmente reservada. Sou mais caseiro, não curto muito imiscuir-me em muita confusão ou caos. Prefiro ficar na minha, tentar-me portar bem e não fazer muita merda [risos]. Acho que tanto estando em Liceia, Lisboa, ou no estrangeiro, que ainda não saí do país, acho que isso vai ser sempre assim. Mas é bué tranquilo! Já aceitei que esse é o meu temperamento. Mas nunca foi uma dissidência porque vim do campo e agora estou na cidade. Até me adaptei ao metro fairly quickly! [risos] E comecei logo a trabalhar também. Isso sim, foi aquilo com que fiquei mais “woah”, o mundo profissional em Lisboa e de como ele difere de uma cidade mais pequena ou do campo. Trabalhei num call center nas torres de Lisboa durante dois meses e ficava só “woah”, porque o edifício era gigante, estava toda a gente de gravata-

Mas tu estavas de gravata?

Achas? Eu ia bué goticona! Ia com três correntes, um cristalzinho ao peito, de turtleneck porque era outono e estava bué frio. Cheguei a ir de make-up para o trabalho e de unhas pintadas uma vez. Se calhar foi por isso que só estive lá dois meses [risos]. Mas ya, não tive essa dissidência. Sou uma pessoa bué de creature comfort, mas acho que felizmente sou adaptável ao meio. 

Em 2022, apareceste numa faixa [“angel beats”] do disco do frost.y, Snow Lair: songs for a melting heart, e ele é uma das pessoas que tens nos agradecimentos deste disco. De que forma os teus amigos te inspiram a criar?

Os meus amigos são tudo para mim! [Risos] Essa música [“angel beats”] é mesmo sobre amizade para mim, ya. Fui para casa do frost.y, que ele também é de uma terrinha perto de mim, apesar de viver em Lisboa agora, mas nós crescemos juntos. Andamos no infantário e no secundário juntos. Ele é um anjo, estás a ver? Ainda agora ele estava-me a dizer que sempre que está a criar cenas, pensa em mim, não enquanto competition, mas o que eu iria achar do que ele estava a fazer. E eu é a mesma cena com ele. Ele é o meu anjinho. Quando estou a criar, quero bué saber o que ele vai achar. E os meus amigos inspiram-me bué. Aliás, o frost.y e o Princess não estão diretamente envolvidos no disco — o Conan Osiris é a única pessoa que está diretamente lá — mas eu quis incluí-los na mesma porque eles eram as pessoas para quem mandava as tracks. O Princess fez um mix ali, um mix acolá, sempre a dar-me dicas de como mixar as cenas melhor. Ele é um produtor ridículo. O frost.y também esteve sempre a dar-me feedback e ele é facilmente a pessoa mais positiva que conheço. Os meus amigos são tudo para mim, quer sejam as pessoas envolvidas no disco, como o frost.y, o Princess e o Conan, ou até amigos que nem sequer fazer música, mas que me inspiram. Sem eles, não vou dizer que não era nada, mas sem eles, não seria a pessoa que sou hoje e sem eles eu não faria a música que faço. Blessed beyond belief por todos os meus amigos, mesmo. E os amigos que ainda estou para fazer, estás a ver? Acho que também há bué essa cena. As pessoas vão aparecendo e há sempre um amigo ao virar da esquina. É só estarmos bué atentos, abrir os olhos e ir vendo. Eles estão sempre lá e isso é uma cena bué exciting para mim.

O Conan canta na “ceifa”, que é uma canção belíssima. Como foi tê-lo no disco?

Foi bué fixe [risos]! Imagina, já estávamos para trabalhar em coisas há bué tempo e foi uma questão de encontrar o momento certo. Acho que eu e ele temos processos criativos bué semelhantes, e até mesmo como pessoas, acho que somos mesmo bué semelhantes e foi mesmo uma cena que deu click. Quando lhe mandei a canção, ele curtiu bué, e eu amei o take dele. Ele mandou-me aquilo e eu fiquei a chorar. Foi aí que soube que tinha mesmo de ser. É uma canção bué especial para nós. Vem de conversas que já tivemos no passado, de há bué tempo, mas também recentes, de convivência bué parecidas, de uma amizade bué profunda para os dois lados. E claro que tê-lo no meu disco é uma coisa que me dá bué relevo e plataforma e ele está consciente disso. Mas é também uma forma de afirmar que as barreiras entre o que é supostamente mainstream e o que é supostamente underground não existem! Até porque o Conan para mim é a pessoa que mais personifica ambos. Ele é o gajo mais underground do mainstream e é o gajo mais mainstream do underground. Para mim, é mesmo milagrosa a posição que ele assume na música portuguesa e o facto dele querer aliar-se a mim de alguma forma, apadrinhar-me musicalmente, é uma gratidão enorme mesmo. Eu já tentei expressar bué vezes isso e ele fica só dismissive [risos]. Mas é verdadeiramente gratificante. E a “ceifa”, obrigada por teres dito o que disseste. Estou bué orgulhoso dela definitivamente.

Antes de ben yosei, tinhas outros aliases como sanatur a deo ou richard was airs and roses. Estes aliases estão reformados ou apenas em hiato enquanto te dedicas a ben yosei?

Eles não existem. Eu tinha 17 anos e era muito parvalhão [risos]. Eu era muito parvo e não estou orgulhoso… Acho que falei disso na minha entrevista do Rimas com o Vasco Completo. Tudo isso foram só stepping stones para o que estou a fazer agora e ainda bem que o fiz, mas talvez nunca devesse ter lançado essas coisas. São cenas das quais não me orgulho muito, que tinham um ethos imuito autodestrutivo e provocador no qual já não me revejo absolutamente nada. Vinham de flagelações e de inseguranças pessoais bué grandes e ya, they’re better left off como se nunca tivessem existido. Também não há forma de se ouvir na net grande parte das cenas, mas se alguém quiser os discos, mando tranquilo – mas não vejo ninguém a querer. Para mim, o meu trajeto musical começa quando fui à Colina em 2019 enquanto ben yosei e quando lancei o luz. Não quero necessariamente estar a apagar história minha, mas legitimamente não interessa. E é ok! É ok certas coisas que fazemos não interessarem e ficarem para trás. Acho que há bué poder em largar certas coisas e felizmente encontrei bué paz em conseguir largar essas cenas porque era trabalho que me destruía mesmo uma beca espiritualmente.

És alguém que tens muita música em arquivo ou apenas lanças aquilo que crias?

Depende. Acaba sempre por haver leftovers porque estou sempre a trabalhar em coisas e tenho bastantes coisas unreleased. Inclusive, há uma cena que gosto de fazer, que não é bem gatekeeping, mas gosto bué de dar um concerto e torná-lo em algo especial. Por isso, às vezes, toco essas cenas unreleased em shows. Gosto mesmo bué de tocar cenas unreleased porque se o pessoal pagou para estar ali, então acho que a devida gratidão para com esse gesto, das pessoas quererem ceder o seu tempo e energia para ouvir-me, é dar-lhes um presentinho. Há muitas cenas que nem sequer estou a pensar lançar alguma vez, mas que ficam para esse registo de tocar ao vivo. E quem lá esteve, esteve, e sentiu e curtiu. Mas sim, há algumas coisas que ficam em arquivo. O lagrimento teve duas tracks que não foram incluídas no disco e o luz teve mais. O luz teve à vontade umas 12 que não entraram no disco. Mas depende mesmo bué do ritmo de trabalho que estou a assumir na altura. Definitivamente tenho um arquivo e não sei se vou ser muito gatekeepy com ele. Depende de como me for sentido. We have to wait and see.

Vais tocar em breve em Lamego como parte da 12ª edição do ZigurFest, onde vais apresentar um concerto/palestra com incidência sobre a música devocional e a tradição folclórica portuguesa se reflete nas vivências dos lamecenses. Em que vai consistir esse teu espetáculo?

Está em construção, portanto acho que ainda só posso falar em abstrações. Basicamente, o projeto que estou a desenhar surge a partir de um arquivo de números de pessoas de Lamego que o António Silva [cofundador do ZigurFest] disponibilizou-me. E é suposto eu falar com essas pessoas – uma espécie de call center semietnográfico, como lhe chamo na minha cabeça [risos] – e trocar vivências sobre devoção, tradição folclórica e religiosa, para me deixar educar pelas vivências de Lamego para poder-me sentir devidamente qualificado para ter uma conversa amistosa com as pessoas de lá acerca disso e das minhas vivências. Estou mesmo bué excited, vai ser incrível. É um privilégio para mim estar incluído no ZigurFest e ainda por cima nesta dimensão de poder conversar e imiscuir-me na educação que as pessoas de Lamego têm para me dar acerca desses tópicos. Vai ser bué enriquecedor para mim e espero que seja para as pessoas também. Estou mesmo, mesmo entusiasmado.

E como funciona geralmente um concerto de ben yosei?

Não funciona [risos]. Mas sinto-me um bocadinho out of place a falar disso porque sou a pessoa que está a atuar. Claro que é uma experiência conjunta – e ainda bem que o é – e eu sinto isso na pele. Mas do que vejo, acho que é bué akin a uma missa. Soa bué blasméfico e self congratulatory a pôr as coisas assim, mas é um bocado uma missa porque tem bué uma dimensão litúrgica. Vejo pessoal a deitar-se no chão, outros a chorarem baba e ranho, a abanarem-se, a fecharem os olhos, a sentirem. Normalmente a malta usa a palavra transcendente para descrever o que sentiram. E opá, no fim dos concertos tenho sempre de tomar o meu espaço para acalmar porque também é uma experiência muito intensa para mim emocionalmente, como é óbvio, porque estou a cantar as cenas que estamos aqui a falar. Mas depois disso as reações são sempre bombásticas. Isso é uma cena que também me tenho apercebido bué. Não sei se me interessa quantas pessoas ouvem as minhas cenas, mas as pessoas que ouvem e que as vêm testemunhar dizem sempre as coisas mais surreais, hiperbólicas e lindas de morrer acerca do que fiz ou do que tenho feito e isso é mesmo só… Acho que é isso a maior cena que sinto a partir dos meus gigs. A gratidão com que as pessoas levam aquilo e o amor que as pessoas levam para casa. As pessoas sentem aquilo genuinamente e eu não podia pedir mais, honestamente. It humbles me to no end. Eu às vezes choro com eles, genuinamente. Essa dimensão existe. Em termos de setup, é relativamente simples. Tenho o meu PC, canto, e estou a pensar incorporar um instrumento ou outro no futuro porque tenho umas cenas que gostava de fazer ao vivo. E de resto, tenho investido agora um bocado em assessórios. Eu toco com um fit próprio, tenho um altar de santos em palco, que antes não tinha, e acho que isso dá uma dimensão estética mais apropriada àquilo que estou a fazer.

Depois do ZigurFest, o que tens em manga para o resto de 2023?

Não sou de desvendar muito essas coisas, mas vou tentar falar de uma forma abstrata. Quero tocar mais, claro. Quero tocar mais por Lisboa, no Porto (que ainda não fui lá tocar o lagrimento), mas sobretudo gostava de tocar em zonas fora da metrópole. Acho que isso é um exercício bué importante e inclusive também de consciência política e cultural a ser feito, para contribuir para alguma descentralização do que é o circuito musical em Portugal. Acho que isso é bué importante. Acho que seria também hipócrita da minha parte eu vir de uma terrinha e não ter essa consciência. Portanto, definitivamente isso: quero levar o lagrimento ao país e esperar que o país o sinta comigo. De resto, em termos de música mesmo, estou a trabalhar com pessoas e estou sempre a trabalhar em coisas. Agora quando é que vai sair ou não, não sei. Isso é que não gosto mesmo de dizer, até porque eu não saberia e poderia estar a mentir e não gosto de mentir. Acho que é importante ser sincero. Quero continuar a fazer coisas, quero tocar mais, imiscuir-me nas pessoas e sentir com elas, quero que elas me eduquem para podermos construir algo melhor juntos. Acho que isso é o mais importante.


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