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ben yosei

luz

Edições Fauve / 2020

Texto de Francisco Couto

Publicado a: 19/08/2020

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ben yosei tem feito da música o seu playground, onde joga e brinca com as diversas facetas que tem e onde expõe as diferentes formas com que se expressa no espectro sonoro. Foram já várias as vezes que se reinventou, das quais nos lembramos especialmente de richard was airs and roses, com dois discos lançados pelas Edições Fauve em que explorava a faceta mais ambient, e sanatur a deo, dedicado a um lado mais destrutivo, intenso e experimental. Mas chega de falar do passado: o único traço comum entre os três é físico. E isso é claro ao ouvirmos os seus trabalhos.

Concentremo-nos, então, em luz, lançado também ele pela Fauve no final de Junho. Os experimentalismos deixaram de ser o foco principal como nos outros projectos e passaram a ser um instrumento para elevar músicas que existem muito mais perto do pop e do folk, oferecendo-lhes camadas que não se vêem frequentemente nesse panorama. Aliás, são muitas as camadas que parecem não pertencer ao universo popular, mas que no contexto de luz, se fundem de forma sublime nas mensagens de ben, como o sampling cru que aparece em várias músicas do álbum. O músico abre-se completamente aos ouvintes, mostrando um lado mais pessoal e vulnerável, vulnerabilidade essa que sentimos logo no primeiro momento em que ouvimos a sua voz, no tema “cuidar”, antes até de percebermos a letra. Se “dar à luz”, a primeira faixa, nos deixa logo num estado mais sensível sem que palavras sejam sequer ditas, recorrendo apenas à beleza celestial de um coro, “cuidar” abre as portas à mensagem que ben pretende transmitir com o disco: a de agradecimento aos que o rodeiam e rodearam, a de que devia haver mais carinho e conexão entre todos, e ao amor que recebeu e que sente por todas as coisas.

luz é sobre o bem e sobre o amor, e isso sobressai em “menina”, música dedicada à sua pequena irmã de nove anos (que aparece na capa do disco vestida de Elsa do Frozen), e “materna”, dedicada à sua mãe, na qual canta sobre como gostaria de “nascer de novo/ para contar à minha mãe/ mãe o quanto te quero”. A frágil voz de ben carrega esse amor mas sem deixar de parte um lado melancólico que, por mais que se queira, não deixará de existir nas nossas vidas, “a tua vida a terminar/ e rogo a deus chorando/ que a minha mãe não se morra/ que eu a leve sempre comigo”, expondo a dualidade emocional que há no amor: o prazer supremo de ver a pessoa bem e a frustração incontornável quando algo de negativo acontece. Este complexo sentimento é uma faca de dois gumes, aquilo que nos faz entregarmo-nos a alguém e percorrer a viagem que é a vida com essa pessoa, no bem e no mal. Mas o bem vence esta batalha, e ben mostra isso terminando a música com um simples, mas perfeito, “amo-te mãe”.

Progressivamente começa-se a entender que a espiritualidade é também ela um tópico recorrente e importante no álbum, e se as referências a Deus e ao corpo de Cristo nas letras anteriores não chegaram para clarificar a sua relevância, “céu” deve deixar tudo a pratos limpos. A sequência de orações cristãs cantadas pelo músico abre-nos a porta para o seu lado mais religioso, em que encontra conforto e perdão através da reza e da crença na absolvição. “a lua”, canção que se segue, vira-se para um amor mais físico e menos esotérico, o amor que é talvez explorado mais frequentemente nas canções espalhadas pelo mundo, a paixão. “braille”, a última canção com letra, resume de forma poética alguns tópicos explorados no álbum, como o desejo, a luz, o afecto, a música, e o “amor abençoado”.

Para além destas músicas em que a palavra toma o centro das atenções, luz apresenta uma outra vertente na qual o experimentalismo toma as rédeas da composição, mostrando um lado mais ligado aos seus projectos anteriores. “folclore” leva-nos até ao rancho da Nazaré e a outros samples que são colados uns aos outros e desfasados com delays, com ben a mostrar algumas das influências musicais que foram importantes na sua infância “tipicamente rural e portuguesa”, como diz na entrevista que deu ao Rimas e Batidas. Vemos ambient, sound collage, eletrofolk e texturas cloud que pairam no ar, como em “alecrim”, que mistura sons naturais de pássaros com uma densa camada sintetizada que preenche todo o corpo da música, sendo talvez a parte mais intensa sonicamente no álbum. “até dez” termina o disco num toque suave e melodioso, recorrendo a synths que, em harmonia perfeita, criam uma experiência quase meditativa, não fossem os samples vocais a cortar repentinamente com esse fluxo energético já perto do fim da faixa.

luz é um disco que mostra o lado mais inocente e infantil no mundo de ben yosei. A pureza com que aborda o amor nas suas letras e a visão positiva que tem do que o rodeia são comparáveis ao mundo visto pelos olhos de uma criança. A sua performance vocal está longe de perfeita no que toca a afinações mas, no entanto, é isso que lhe dá transparência emocional que toca mais fundo nos ouvintes, transparência que vemos por vezes em B Fachada ou Panda Bear. A vulnerabilidade é quase um instrumento no álbum, que é impossível de retirar deste sem que a sua essência se perca por completo. As escolhas de texturas delicadas e cristalinas, que flutuam sem nunca se aproximarem de uma base sólida à excepção das ocasionais percussões desalinhadas, aliando-se a instrumentos como o xilofone, o vibrafone e a caixa de música, são os elementos que completam este imaginário infantil, seguro, e confortável.

ben yosei leva-nos numa viagem espiritual pela sua vida e abre-se a nós sem qualquer preconceito, atingindo-nos num soft spot que temos no coração. Somos embalados pelos beats etéreos enquanto canta sobre toda a luz que recebe de outros (sejam eles do domínio físico ou espiritual) e contagia-nos com a sua visão do mundo. Afinal de contas, olhando para um mundo que se tem corroído a si próprio e onde só se vê caos à nossa volta, fazer uma viagem como luz torna-se quase terapêutico. É bom saber que ainda há positividade no mundo, e é importante relembrar as coisas boas que devemos valorizar enquanto ainda vamos a tempo. Nunca é demais falar de amor.


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