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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 14/05/2023

Quando as memórias nos tomam de assalto.

Glockenwise na Culturgest: uma noite de ode à margem

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 14/05/2023

Não sei como começar este texto. Simplesmente, não sei. Estou perdido, tentei várias vezes iniciá-lo, mas simplesmente não sei como o fazer. Como colocar em palavras algo que parece tão inexplicável, não é? Então, decidi que a melhor forma de iniciar este texto era… não iniciá-lo. Era, sim, escrevê-lo. Parece estúpido, mas na minha mente faz todo o sentido.

Não consigo descrever exatamente o que senti nesta sexta-feira (12 de Maio) à noite na Culturgest, em Lisboa, mas sei que foi uma cacofonia tão gigante de emoções cuja única conclusão foi a seguinte: saí do Auditório Auditório Emílio Rui Vilar um verdadeiro caco. Acordei este sábado (dia 13) um caco ainda pior.

A memória, sabem, é incrível. E é incrível porque é uma valente merda. Prega-nos partidas. Torna a nossa dor num instrumento para tornarmo-nos quem somos, torna as coisas que parecem perto distantes. Torna a beleza em miragem, a escuridão em medos, e faz-nos ficar com nostalgia por um passado que nunca mais vai voltar. O passado, esse, é apenas uma construção da nossa mente, uma figura erguida a partir de colagens que vamos fazendo com pequenos trechos de eventos que vamos encontrando na nossa fita analógica que, apesar de parecer infinita, não o é.

Esquecemo-nos de coisas. Eu, pelo menos, esqueço-me de muita coisa. Muita coisa mesmo, sabem? Às vezes até gozo com isso. Quando era puto, as pessoas diziam que tinha excelente memória e era capaz de devorar e decorar livros inteiros. Hoje, não me parece que nada disso seja verdade. A caravana de informação passa (a alta velocidade) e nós vamos apanhando apenas alguns resquícios dos seus traços. Mas o que apanhamos, retemos. Mas às vezes não.

Vivo há 7 anos em Lisboa e tenho muitas memórias de Lisboa. Mas, na realidade, não sou lisboeta. Nunca serei. Sou apenas um transeunte de passagem em procura de um local onde me sinta eu. Mas nunca serei eu em Lisboa, porque para ser eu em Lisboa teria de estar no local onde desejava estar. Pequeno problema: não sei onde quero estar. Mas honestamente? Sei para onde quero ir.

Tenho pensado muito em Gótico Português, o quinto e mais recente disco dos Glockenwise, o segundo de uma nova adolescência encontrada com a incursão da banda pela língua portuguesa. Tenho escutado muito este disco e, muito honestamente, acho que o ouço todos os dias pelo menos uma vez desde que saiu. 

Podia estar aqui a escrever palavras bonitas sobre Gótico Português, mas acho que não conseguia, pois só me estaria a repetir. O texto que escrevi na Playback sobre o disco foi escrito de rajada e é – desculpem a autoflagelação, desde já  – a melhor e mais sincera coisinha que já escrevi neste meu percurso enquanto jornalista/crítico (ou o que quer que me queiram chamar) musical. Foram palavras que não sei de onde vieram, mas sei que as precisava de dizer.

Muitas vezes, e apesar de não o admitir, sinto saudades de casa. Da minha margem. Da minha Vila de Cucujães. Sei que o tempo passa e eu mudo, sei que Cucujães também muda. A vida em Lisboa requere sempre seis mudanças, enquanto na margem as coisas parecem mais simples. São “os olhos postos/Na vida vã”, como cantam os Glockenwise em “Vida vã”, magnífica canção de shoegaze com que terminam Gótico Português e com que iniciaram o concerto na Culturgest. A água morrente que me corria dos olhos não foi ao acaso – foi como se os Glockenwise estivessem a cantar só p’ra mim.

Podia agora passar aqui os próximos parágrafos a descrever o concerto, a comunicação da banda com o público recheada de humor e histórias, o setup de três ecrãs que ia projetando um pouquinho do mundo dos Glockenwise, ora as esculturas e capas dos singles de Gótico Português, ora o azul característico de Plástico. Podia utilizar palavras extra chique para falar sobre tudo isto e de como o concerto deixou-me arruinado emocionalmente. Mas valeria de algo? Não sei. Suspeitava que este concerto dos Glockenwise ia ter um impacto grande sob mim, mas uma coisa é imaginar o momento, outro é vivê-lo.

As projeções do excerto de uma reportagem com Rosa Ramalho antes do concerto se iniciar foi o lembrete que, neste Gótico Português, vivem as memórias daqueles que, se calhar, estão a ser esquecidos. Das histórias incríveis e fantásticas que ainda há por contar, muitas delas vindas de uma “margem” que parece tornar-se cada vez mais distante na memória. Passamos muito tempo a pensar como fugir dela, de ir para o Porto ou para Lisboa, esses grandes centros urbanos, mas depois passamos o nosso tempo lá a pensar como podemos voltar. Mas tudo mudou. Nós inclusive. Não pertencemos nem aos centros nem à margem. Somos só vultos perdidos à procura de um local onde possamos ser aquilo que procuramos – nós próprios.

O tempo passa e já não somos apenas de um sítio ou de outro. Aceitamos a bagagem que carregamos por sermos da margem. Esta, porém, torna-se uma memória, um lugar onde tudo nem parece real. É um sonho, quase. Habita a nossa mente como um lembrete de onde vimos e dos sacrifícios que tivemos de fazer. Nós, os nossos pais, os nossos amigos, a nossa família. Fica-se com medo de se perder o passado para que se construa um futuro. 

Tudo isto me passa pela cabeça à medida que os Glockenwise tocam (e me vão emocionando). De fundo, escutam-se canções como “Lodo” – estonteante –, “Natureza” ou “Margem” que nos atiram para um mundo que quase não parece real, onde as nossas memórias são o eco para estas canções que têm tanto de sensível como de bruto. São quase como fragmentos da nossa memória que vão encaixando, dando origem a um quadro muito bonito daquilo que lembramos ser a “margem” – a nossa casa.

Pelo meio, os Glockenwise foram intercalando as canções de Gótico Português com momentos de Plástico – porque nesta vida também é preciso dançar! –, como “Muito para dar” (e estes quatro “tansos” de Barcelos ainda têm muito para dar!), “Moderno” ou “Corpo”, todas a ajudarem a uma festa que serviu de consagração aos Glockenwise como uma das grandes (se não mesmo a melhor) bandas portuguesas.

Mas – e se ainda não deu para perceber, desculpem – acho que esta noite de sexta-feira foi mais do que isso. Esta noite de sexta-feira foi um momento onde muita gente decidiu celebrar a sua margem ou, pelo menos, aquilo que se lembram dela. Quando o público decidiu entoar “Besta” a pulmões, haviam razões para o fazerem além de ser uma fantástica canção pop. Quando a emoção se sentiu palpável durante “Deixar ferver”, tocada no encore seguida de “Bom rapaz” e “Calor” (melhor que “Heat” sempre e recebida em festa), não foi só porque a música tem alguns dos momentos mais bonitos da discografia dos Glockenwise. Foi porque as pessoas encontraram um bocadinho delas neste Gótico Português e nas tretas abstratas que Nuno Rodrigues, Rafael Ferreira, Rui Fiusa e Cláudio Tavares – em palco apoiados por Gil Amado e Sérgio de Bastos para ajudar a recriar os universos densos de Plástico e Gótico Português  – decidiram compor e cantar.

Estava a pensar numa forma adequada de terminar este texto, mas não me ocorre. Não o sabia como começar e certamente não sei como o acabar. O que posso dizer é que estes bons rapazes – e ainda bem que tocaram essa – deram chão a muita gente que, talvez, nem sabia que de um chão precisava. Que de paz precisava.

Nesta sexta-feira, chorei, mas foi um dia feliz. Daqui a uns anos, talvez este concerto se torne, como muitas outras coisas da vida, apenas uma memória distante. Não quero esquecer-me dele, mas talvez se torne, na minha mente, apenas uma versão idealizada, um âmago que parece tão distante como próximo. Uma nova margem, digamos. 

Esta noite sonhei. Sonhei com um rapaz que encontrava um poster numa casa, perdida algures numa vila, em que nele encontrava-se inscrito uma série de nomes de canções que haviam inspirado alguém no passado. Nessa lista, encontrava-se uma canção de seu nome “Vida vã”. O rapaz, mesmo não sabendo o que significava, chorou. Acordei. 

Na minha mente, a imagem mental do Nuno a cantar “A vida inteira num lugar/Ficava aqui até ao final” surgiu-me. Chorei mais uma vez. O sonho parecia muito real. A vida, às vezes, parece demasiado real. Assustadora. Rápida. Constantemente urgente. Sem pausas para pensar e refletir, para lembrarmo-nos de onde vimos. Gótico Português é a banda sonora para tudo isso e mais alguma coisa. É a minha banda sonora. Talvez, daqui para a frente, vai o sempre ser. 

Porque sem o nosso barro, aquilo que nos molda, não somos ninguém.


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