Como em tudo na vida, o melhor fica sempre para o fim. Longe vão os dias em que a produção musical nacional dificilmente competia com aquilo que escutávamos vindo de fora, e hoje a ideia de uma dieta sonora muito à base do que é criado dentro de portas é algo bem credível e que não deixa margem para grande fome. Importará sempre estar atento a tudo o que se vai produzindo em todas as coordenadas do globo, mas há que enaltecer o salto qualitativo que se deu por cá, ao ponto de nos podermos dar ao luxo de conseguir uma lista de melhores discos do ano com algumas dezenas de entradas sem que nenhuma delas tenha sido forçada. A música portuguesa está viva. E está de parabéns.
Tal como ontem fizemos no capítulo internacional, hoje juntam-se aqui 40 títulos de álbuns nacionais que nos conquistaram ao longo de todo 2023, organizados por ordem de preferência e com direito a comentários da equipa do Rimas e Batidas para aqueles que considerámos serem os 10 melhores. É tempo de recordar, descobrir o que passou ao lado e passar a palavra ao próximo. Porque se não formos nós a gostar de nós próprios, quem mais vai gostar?
[Slow J] Afro Fado
Está tudo bem em Afro Fado. A voz de Slow J tem luz e dor, o balanço tem chão quente e ar fresco soprado pela história e acolhido pelo futuro, as palavras carregam ideias honestas, fruto de reflexões fundas sobre quem é a pessoa que nos canta e sussurra ao ouvido, sobre nós, as pessoas de ontem e as de hoje. Talvez sobre as de amanhã, aquelas que esta música pode ajudar a transformar no que há tanto sonhamos, sem marchas com tochas, sem manchas tortas. Esta música sente-se e assobia-se, dança-se e chora-se, pensa-se, pesa-se e liberta-se. Liberta-nos. E essa é a música mais necessária. Em Afro Fado está tudo bem. Muito bem. Obrigado, João.
— Rui Miguel Abreu
[Nídia] 95 MINDJERES
Nídia, aquela que vale por 95 Mulheres ou, a bem dizer, “Mindjeres”, só podia ter o seu trabalho mais recente eleito na lista de álbuns que em 2023 se lançaram ao Mundo e que contam a história sobre um Mundo. Esta aparente reminiscência política ainda paira na reflexão de muitos e o trabalho que Nídia tem feito através das suas produções reflecte uma resistência indispensável na visão de um mundo pós-colonial. 95 MINDJERES é uma ode colectiva, sonora e histórica, que irá emanar para sempre a força dos melhores álbuns que a Príncipe Discos colocou cá fora.
— Maria Carvalho
[Prétu] Prétu 1 – Xei di Kor
No princípio era o sample, tecnologia afrodiaspórica capaz de ressignificar os sons de uma vida rodeada de música de libertação, projetada nas lutas que enfrentam as continuidades coloniais. Xei di Kor é um álbum em movimento, nascido num gesto de cruzamentos históricos e estéticos, de raízes familiares e de uma individualidade expandida. Prétu (também conhecido por Xullaji, originalmente Chullage) está mais livre que nunca e isso revela-se nesta negritude sónica impossível de ser expropriada. Inserindo-se na linhagem musical que Amiri Baraka dizia querer transcender os códigos da branquitude, esta música é expressão de uma atitude sobre o mundo que se vê traduzida em texturas e frequências que precipitam um voo sobre o futuro com o olhar fixado no passado. Como Sankofa. Como Sun Ra. Como Os Tubarões. Como Underground Resistance. E daí este ritmo, estes baixos, estas palavras, estas imagens. Daí, sobretudo, esta incessante procura pelo novo, todas essas cores que projetam um outro mundo possível e que esta música não desiste de imaginar.
— João Mineiro
[T-Rex] COR D’ÁGUA
T-Rex é a prova viva de que o hustle compensa. Depois de vários anos a insistir com projectos como Rexpect (2016) ou Chá de Camomila (2018), começou por se tornar num nome unânime através de Gota D’Espaço (2020) e cimentou a sua posição na “primeira liga” graças a CASTANHO (2022). E se parecia que Daniel Benjamim tinha então finalmente alcançado o cume da sua escalada, COR D’ÁGUA catapultou-o para o estrelato, e aquela que foi uma das edições mais prematuras de 2023, a 20 de Janeiro, rendeu-lhe créditos para o ano inteiro, fazendo de T-Rex um dos artistas mais requisitados nas plataformas de streaming em Portugal nos meses que se seguiram. O disco assenta em produções arrojadas e o sentido apurado para a rima do MC de Monte Abraão, hoje com a dose de carisma necessária para transformar raps em canções, fazem o resto do trabalho, estando comprovadamente adaptados a cada terreno que lhe é colocado à frente — seja trap, R&B ou cadências de swing afro.
— Gonçalo Oliveira
[DJ Danifox] Ansiedade
A batida da grande Lisboa pulsa forte, mas sempre graças às veias e ao sangue da periferia, que vai sendo puxado pelo coração interior da cidade, apesar de continuar a não ter espaço para quem as cria. DJ Danifox, veterano da Tia Maria Produções e da Príncipe, deu apenas mais uma injeção de talento suburbano à cena da capital com um clinicamente titulado Ansiedade, LP onde a tensão entre o peso da europeização e a leveza das sonoridades subsarianas existe num espaço muito único do produtor: algures entre kuduro e afrohouse, nessa nação que é a batida e onde cabe muito mais, como bem sabemos. Em dez mais uma malhas, o produtor usa os ritmos quebrados sobre andamentos certos para criar uma hesitação constante, que cresce em emoção com melodias menores. A alegria do movimento é problematizada pelas toadas instrumentais de cada música, num disco que vai além do clubbing. É um álbum, é de se ouvir, é de fruir.
— André forte
[EU.CLIDES] DECLIVE
2023 foi um ano de consagração para EU.CLIDES. Venceu o Prémio José Afonso 2022 com o seu EP Reservado e lançou DECLIVE, o seu longa-duração de estreia, onde, lado-a-lado com TOTA e Pedro da Linha, apresentou algumas das mais preciosas cantigas do ano na música nacional. Forte no comentário social, nas melodias, e na forma como deambula entre o hip hop, o R&B, a pop, e guitarrinhas indie sem se deixar prender a nenhum género, DECLIVE não é só um dos grandes discos do ano, como é o disco que confirma o seguinte: à sua maneira, EU.CLIDES já se transformou no melhor escritor de canções a surgir no panorama nacional desde que a “Nova Lisboa” começou a ser erguida pelos seus principais intervenientes.
— Miguel Rocha
[VLUDO] DEDOS FINOS
Se em 2018 as águas do rap tuga ficaram agitadas com “Ondulação”, em 2023 houve dilúvio à séria. Os culpados? A nova (e muito antecipada) tag team de Blasph e Sam The Kid, vulgo VLUDO, que depois de uma mão cheia de anos de expectativa, superaram-nas com duas mãos cheias de razões para serem considerados os MVP’s de 2023.
Esta fusão é tudo aquilo e muito mais que qualquer hip hop head lusófono sonhava: a sapiência e mestria de Sam The Kid saciaram a inegável fome do carismático Blasph, que há mais de uma década tem revalidado vezes sem conta o título de um dos melhores punchliners deste nosso retângulo à beira-mar.
DEDOS FINOS só peca pela previsibilidade, e porquê? Num imaginário do que seria um álbum dos dois, não se esperava nada abaixo da qualidade que apresentam neste que promete ser apenas o primeiro projeto de VLUDO — pára tudo, leram bem, vai haver sequela com ANÉIS GROSSOS, aguardemos (in)pacientemente.
— Carlos Almeida
[Filipe Sambado] Três Anos de Escorpião em Touro
Filipe Sambado mergulha nos terrenos férteis da hyperpop, onde tudo parece possível, para um disco profundamente íntimo e vulnerável, construído nas angústias dos confinamentos da pandemia. Repleto de texturas e elementos sonoros distintos, Três Anos de Escorpião em Touro junta melodias abrasivas, sons distorcidos e comprimidos, vozes alteradas que nos envolvem num universo sonoro sui generis, onde tanto cabe a alegria como a destruição, a serenidade e a violência. No meio de tanta diversidade, é provavelmente o seu disco mais coeso de todos e aquele que eleva Sambado como escritora de canções de alto gabarito.
— Ricardo Farinha
[xtinto] Latência
No final de 2019, xtinto apresentou em simultâneo trabalho compilado e inédito: a edição conjunta de Ventre, com o primeiro material com potencial viral, e Inacabado, portfólio que reuniu a meias com o rapper e produtor — na altura ainda longe de deixar cair o nome artístico — benji price, representou um statement do MC de Ourém no panorama do hip hop nacional, pela também já extinta Think Music. Mas desses dois primeiros EPs de maior exposição ao primeiro álbum a solo passaram-se quatro anos em que o incrivelmente habilidoso rapper se foi revelando um admirável cantor. Com metamorfoses subjacentes a canções como “Android”, “Saia” ou “Hamartia”, Francisco Santos chegou ao seu primeiro longa-duração em nome próprio com uma bagagem totalmente diferente daquela que os seus discos antecessores faziam prever à data. Mas Latência não veio enterrar o rapper que há em xtinto; antes mostrou quem ele pode vir a ser para lá do rap. E “Cadáver”, a última faixa do álbum, ilustra por excelência essa harmonia entre as duas extremidades do mesmo corpo artístico.
— Paulo Pena
[L-ALI & Lunn] Balanço
É sem dúvida o EP com mais Balanço de L-ALI. Lunn abriu a cortina para que Hélder viajasse dos cantos mais obscuros e experimentais que marcaram boa parte da discografia do rapper em direção a qualquer coisa mais veranil. A dupla não se estreia neste lançamento — Manuel Morgado já assinava a produção de boa parte de Raramente Satisfeito —, mas encontra aqui a pista de dança apropriada.
Camaleónico pode não ser a palavra certa para descrever L-ALI, já que a sua identidade se ouve facilmente em tudo o que faz. Mas tem sido versátil o suficiente para afirmar que em qualquer team calça fácil. Não é nem descabido nem totalmente inesperado este uso da voz no seu registo mais cantado, havendo rasgos de falsete em auto-tune e uma maior preocupação com a melodia. Já Lunn tem teclados luxuosos, texturas que soam a amor de verão e baterias muito bem desenhadas. Há mais synth-bass carregado de potência, mais four-on-the-floor e breaks para dançar. Afinal, o título transporta-os para o sítio certo.
— Vasco Completo
[Ana Lua Caiano] Se Dançar É Só Depois
[Pedro Mafama] Estava No Abismo Mas Dei Um Passo Em Frente
[Riça] Diabos m’Elevem
[Margarida Campelo] Supermarket Joy
[Rita Vian] SENSOREAL
[LON3R JOHNY & Plutonio] ANTI$$OCIAL
[Azart] FOCO
[Conferência Inferno] Pós-Esmeralda
[Glockenwise] Gótico Português
[João Não & Lil Noon] Se Eu Acordar
[Minus & MrDolly] Giant Stops
[Pedro Ricardo] Soprem Bons Ventos
[Real GUNS] Davids
[Raquel Martins] Empty Flower
[Malva] vens ou ficas
[MAQUINA.] DIRTY TRACKS FOR CLUBBING
[Scúru Fitchádu] Nez Txada Skúru dentu skina na braku fundu
[Império Pacífico] Clubs Hit
[Expresso Transatlântico] Ressaca Bailada
[Wet Bed Gang] Gorilleyez
[Acácia Maior] Cimbron Celeste
[Conjunto Corona] ESTILVS MISTICVS
[Tó Trips] Popular Jaguar
[Normal Nada the Krakmaxter] Tribal Progressive Heavy Metal
[ben yosei] Lagrimento
[ProfJam] MDID
[Luca Argel] Sabina
[Unsafe Space Garden] WHERE’S THE GROUND?
[Tácio & Martello Sousa] Tanto Faz
[AZAR AZAR] Cosmic Drops