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Pedro João Santos

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Papillon apresenta-se ao vivo no primeiro dia da edição deste ano do Festival Académico de Lisboa.

Deepak Looper: um ano depois, a borboleta ainda bate asas

Em 2018, o que significou para vós a palavra “Papillon”? Se estão a ler este artigo, ou se de algum jeito têm o Rimas e Batidas na mira, a resposta é evidente: refere-se ao autor daquele que considerámos o melhor álbum nacional do ano. Foi em Deepak Looper que Rui Pereira, parte do quinteto de rap GROGNation, ingressou numa via solitária: Slow J assumiu a produção executiva, mas não é intrusivo na crua odisseia de 56 minutos que efectiva a emancipação artística de Papillon. Não me deveriam perguntar a mim, claro, porque começaria a falar-vos do livro de Henri Charrière. Bem, vocês é que sabem…

Papillon, o livro, pede emprestado o título à evocativa alcunha desse prisioneiro, que em treze cadernos relata de forma vívida a sua demanda pela liberdade — para abrir pictoricamente o apetite, do exílio na Guiana Francesa a Curaçau, a ilha de Trinidad e as milhas marítimas sem fim. “É que Charrière não pretendeu escrever um livro histórico”, reza o prefácio, “mas apenas contar, tal como ele a viveu ao vivo, com dureza e fé, a extraordinária epopeia de um homem”. Um indivíduo que quer fugir à punição injusta, salvaguardar a sua sanidade, manter-se vivo. Na solitária, sem vícios para alimentar, anda de uma parede à outra, a traçar e impulsionar o seu corpo, ao magicar, em desconcertante detalhe, uma vingança contra quem o tramou.

Pois. E o que é que isso tem a ver com o trabalho do rapper? (Prometo que não distendi nenhum braço a tentar agarrar aqui alguma coisa.) Não me parece que Deepak Looper tenha sido desenhado com vista a paralelismos literários — também não parece que tenha a pretensão de ser um clássico para a posteridade, mesmo apesar de estar perigosamente perto disso. Para além do título, há algo em comum entre uma e outra borboleta? Mais do que se possa pensar.

Veloz e impura, sempre em fluxo, a estética de Deepak Looper vem da mão sóbria de Slow J: o autor de The Art of Slowing Down faz o trânsito entre a pontuação do hip hop contemporâneo — quando presentes, os choques sintéticos do trap ornamentam as rapsódias de Papillon — e uma sonoridade carnuda, difícil de catalogar, sem carimbo temporal, nostálgica em pontos como a guitarra espectral de “Impulso”, austera nos cortes rítmicos da gráfica “Imediatamente”, Não há regras para o pulso que acompanha Papillon, nunca atrás das barras, mas em pleno comando delas, autor e proprietário de palavras que, com jeitinho e arte, ferem, e é bom que firam. Em “Impressões”, um tema que podia ser Ângela Polícia em dupla velocidade, conta-nos: “Vou ter de sobreviver/ MacGyver com canivete/ Remar contra mar e vento/ Golias ou Gulliver/ Tu vive e deixa viver”.

Também o Papillon francês fizera uma digressão mundial por mar e terra, pela sua liberdade — mais literal, claro. Mas ambos encapsulam num frasco um grande bocado de resiliência perante a ameaça (interna ou externa) de psicose, sem deixar de esbarrar nos limites. A reflexão do cárcere processa-se andando de um lado para o outro, viajando por fantasias de sangue, escapando mentalmente para acabar no mesmo lugar. O músico purifica-se nessa inconstância, discorrendo sobre o ennui e a morte, um futuro a que por vezes se adivinha dificilmente um sorriso; resume a sua vida em estilo documental, natural, flagelando-se. Às vezes, o inimigo é ele mesmo, como símbolo de uma juventude que coloca o ónus sobre si mesma, mas afinal está mais preparada que ninguém para explorar talento bruto.


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