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Fotografia: Diogo Carvalho
Publicado a: 29/09/2020

Ao vivo e a cores.

Tristany no Festival TODOS: os corpos que reivindicam

Fotografia: Diogo Carvalho
Publicado a: 29/09/2020

Para alguns, a sua simples existência é um statement. No mesmo dia em que a Internet rebentou de partilhas por causa da presença de Cláudio Bento França, um homem negro com rastas, na posição de pivot na SIC Notícias, Tristany apresentou pela primeira vez o seu MEIA RIBA KALXA, “um precioso documento que vai guardar para o futuro um dos mais agudos retratos destes tempos“, perante uma sala esgotada. Apesar de não existir uma ligação directa entre estas duas pessoas, há uma importância e relevância em ambos: ambos reclamam, no caso do primeiro no acto aparentemente banal de simplesmente fazer o seu trabalho, no caso do segundo enquanto declaração durante a actuação, um espaço que deveria ser, em 2020, tão seu como de qualquer outra pessoa.

Em Tristany parece existir uma hiper-consciência do que o seu som é, do espaço que ocupa e para onde está a apontar. Não foi espanto, por isso, que se tenha sentido motivado a falar concretamente sobre os corpos negros que o acompanhavam no palco, reivindicando essa ideia de que estarem no Lux Frágil, em Lisboa, deveria ser algo tão normalizado como andarem a deambular pelas ruas de Mem Martins. E fez ainda questão de frisar que o que estavam ali a tocar era música negra. Ou uma versão muito especial disso chamada “sintranagem”.

Este quadro musical da Linha de Sintra até pode ser imaginado, em primeiro lugar, na cabeça de Tristany, mas a verdade é que em cima do palco é personificado e tocado por todos os membros de maneira diferente: do afrohouse de DJ Blackfox ao funk brasileiro (impulsionado por um domínio absoluto da loop station) de Ariyouok, passando pelo guitarrismo de Célio e a alma (na voz e no violino) de Suzana — muita atenção a este nome, quase de certeza que vão ouvir falar muito dela no futuro –, o que vemos e ouvimos é um ensemble invulgar liderado por um frontman que nos entrega uma mistura sónica que tem tanto de fascinante como de intrigante: a palavra “génio” serve àqueles que conseguem ver (e executar) aquilo que os outros nem sequer imaginam, certo?

Grande parte das músicas do reportório de Tristany transformam-se ao vivo, ganhando outras cores, expressividades e balanços. Sem ser um cantor com uma voz incrível ou um rapper com uma técnica monstruosa — e é curioso que às vezes pareça mais facilmente encaixar-se na linhagem de nomes como Conan Osiris ou António Variações do que propriamente numa qualquer escola de MCing mais concreta –, o artista traz esse orgulho (falta de pudor, poderia até pensar-se) em ser ambicioso na criação para cima do palco, projectando essa sensação de vertigem (que vai aumentando de intensidade com a passagem do tempo): no início vimo-lo a dominar a plateia pedindo-nos para ser parte do espectáculo enquanto corpos presentes que se fazem ouvir; mais tarde assistimos ao seu encontro inesperado com um dos elementos percussivos enquanto parecia estar prestes a entrar num profundo estado de transe. Há ali um performer de alto gabarito em formação…

Tal como o disco, o concerto (parte da programação do Festival TODOS) começou com “Hinu digra ..“, esse retratamento de um símbolo maior do país que é uma enorme provocação, mas o momento-chave (ou um deles…) foi a interpretação do hino por reclamar de uma geração que é “RAPEPAZ“. Quando fizermos a revisão da década daqui a uns anos, é imperativo que ela apareça no conjunto de melhores canções que se fizeram por cá. Se não acontecer, falhámos redondamente enquanto humanidade.

Tristany lançou em Junho passado um dos álbuns fundamentais para se perceber esta Lisboa de 2020 que está em pleno conflito interior entre o racismo descarado que teima em ganhar espaço e voz gritante em sítios onde nem sequer devia ser legal estar num estado democrático e o orgulho num som cada vez mais alicerçado nas cadências africanas que fazem parte do ADN português. Vê-lo a interpretar esse disco ao vivo é reconfortante, mesmo que aquilo que cante e diga nem sempre o seja: é sinal que há talento que compreende e fala uma linguagem que proclama a equidade e o respeito pelo outro enquanto valores obrigatórios na construção de uma sociedade melhor, mais justa, mais equilibrada. Uma sociedade em que ver um Tristany de meias por cima das calças no Lux ou um Cláudio França de rastas a apresentar um espaço noticioso num canal português seja algo tão comum que nem mereça reparo…


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