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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/09/2021

Exercícios de desconstrução.

Serpente ⟡ BLEID no NOVO NEGÓCIO: dias de transformação

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 13/09/2021

Fim de tarde obrigatório no bairro de Marvila, mais concretamente no espaço NOVO NEGÓCIO, da Galeria Zé dos Bois. Em causa, dois nomes que representam alguma da música mais fascinante a surgir na cidade nos últimos anos. Ou se preferirem, um tomar de pulso ao presente — e necessariamente ao futuro — de BLEID e Serpente. Magia boa.

Pouco passava das 19 horas da passada quarta-feira, dia 8 de Setembro, quando Mariana Freitas fez ecoar a sua guitarra no armazém que acolheu esta programação. Assim à distância, lembramo-nos de a ver por alguns dos clubes nocturnos de Lisboa a fervilhar a noite com uma electrónica inquieta e urgente. BLEID fez — e faz — parte dessa história recente pré-pandémica que semeou novas ideias e expressões. Vê-la agora, em 2021, é uma outra experiência para quem a conheceu antes (e que bom quando assim é, pois é sinal que essa inquietude continua a mover terreno). Entre o laptop e a guitarra eléctrica, foram ali mesmo desenhadas coordenadas para uma intensa imersão sensorial. Beatless e abstracta, a actuação de Mariana descarnou essa memória de outros tempos, num terreno sonoro de relevos e tonalidades entrecruzadas num vórtex. O espaço de respiração para o micro-ruído, alimentado pela reverberação, provoca uma maré viva em que encontramos fragmentos de possíveis postais de Herzog, Kubrick ou Tarkovsky (isto para falar em imagens em movimento, uma outra forma de traduzir a música de BLEID). Uma suspensão das coisas reais e mundanas, como bálsamo vital. Se antes a dança incutida era física, contagiante e em jeito de purga, este novo capítulo da artista convida a uma entrega de energia anímica e balsâmica — ainda que com fogo latente e a crepitar lá bem ao fundo. 

Imparável, o fluxo de edições e encarnações de Bruno Silva tem sido motivo constante de admiração. Pela visão que o caracteriza, pelo entendimento com que aborda esse largo espectro que é a música electrónica (para assim simplificar) e, acima de tudo, pelo desprendimento com que faz tudo acontecer. Poder-se-iam enumerar uma mão- cheias de discos que no último par de anos o tornaram produtor essencial enquanto Ondness ou Serpente, mas deixemos esse trabalho para a curiosidade de cada um de vós. Não que seja sinónimo de maior ou menor validação, mas a repercussão que faz lá fora indica o espírito único com que trabalha em redor das possibilidades da percussão, colagem sonora e realidades paralelas. Entre o transe do Haiti, a house — e suas derivações — de Chicago e os desígnios do quarto mundo, encontramos Serpente algures, simultaneamente a evocar e a evadir-se desses pontos referenciais (que valem o que valem).

Ao lado de Pedro Sousa, entregou-nos, simplesmente, um concerto vulcânico e francamente memorável. O saxofone de Sousa, alimentado por pedais de efeitos e por uma sede pelo infinito, incorporou o xamanismo digital de Silva. O jogo de ilusões e sobreposições rítmicas que vinham do laptop tomaram vida no sistema de som do NOVO NEGÓCIO induzindo a sala a uma cerimónia de som libertador e mestiço. Existiram claras aproximações ao footwork, num exercício absolutamente brilhante com o saxofone, que atiçou (ainda mais) o momento de encontro entre estas duas figuras incontornáveis. Um diálogo harmonioso quando necessário, mas também impulsionador quando exigido. 

Talvez um dos maiores feitos tenha sido demonstrar que, afinal, nem tudo o que soa de um saxofone é jazz, e que nem tudo o que sai de uma DAW de laptop é electrónica. Uma demonstração eficaz e chave, só possível quando a quem já muito apreendeu, desaprendeu — e agora transforma. De igual forma, esta apresentação serviu de pré-apresentação ao novo disco Dias de Aranha que deverá sair nos próximos meses pelo selo londrino Ecstatic

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