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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/10/2019

Artistas históricos como Morton Subotnick ou Suzanne Ciani e importantes pilares do presente como Kode9 ou Alessandro Cortini integram a programação de um festival que desde 2011 tem vindo a construir um lugar singular no panorama musical nacional.

Semibreve 2019: passado, presente e futuro num cartaz de electrónica desafiante

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 24/10/2019

Braga prepara-se para receber, já a partir de amanhã, mais uma edição do festival Semibreve, evento que tem vindo a afirmar-se desde 2011 como uma incontornável proposta no campo da mais desafiante música electrónica (e não só…) e que em vésperas de cumprir a sua primeira década de existência (e isso é obra) não esconde a sua ambição na forma como combina um conhecedor olhar sobre a história e um agudo sentido de presente.

Com arranque amanhã e intenso programa que se prolonga até domingo, o Semibreve propõe uma experiência imersiva, não apenas na música, mas na própria cidade com concertos, conversas, workshops e instalações que se dividem (multiplicam?…) por espaços como o Laboratório de Inovação de Braga, no Edifício do Castelo, o Theatro Circo e o gnration – os hubs centrais da programação musical – a Casa Rolão, a Capela Imaculada do Seminário Menor ou o Salão Medieval da Reitoria da Universidade do Minho. Uma outra forma de sentir – e escutar – uma cidade que recusa desta forma a vergar-se sob o peso da história preferindo antes antecipar as vibrações do futuro. Atravessando todos esses espaços será impossível não detectar um gosto pelo risco, garantia de uma programação com espírito de aventura que desafia públicos e abre novos espaços de pensamento obrigando cada um dos espectadores a questionar noções tradicionais de concerto, de música, de conforto e até de percepção. Dessa forma, o Semibreve destaca-se como uma verdadeira alternativa no talvez já bastante saturado mapa nacional de festivais, explorando caminhos que dificilmente são experimentados noutros cartazes. O facto de bastas vezes isso acontecer perante plateias esgotadas prova que este trabalho de quase uma década tem rendido merecidos frutos, com um público de aguçado espírito crítico a corresponder a cada um dos desafios que o programa apresenta. Uma palavra também para a forte presença feminina no cartaz: a paridade na programação é um objectivo na agenda de muitos eventos, muitas vezes não alcançado, mas que o Semibreve tem praticado deixando tal questão de ser até motivo de consideração. Ainda assim, é importante sublinhar que é possível desenhar cartazes mais diversificados e inclusivos sem beliscar a integridade e a identidade programática de um evento desta natureza. A prova está aqui.

[Morton Subotnick + Lillevan] (Theatro Circo, 21h30, dia 25 )

Num ensaio que tem o esclarecedor título Music as Studio Art, incluído no livro The San Francisco Tape Music Center (1960s Counterculture and the Avant-Garde) (University of California Press, 2014), Morton Subotnick explica como em finais dos anos 50 foi desafiado a escrever música para uma produção de King Lear. Subotnick, acabado de sair do exército no final da Guerra da Coreia e com os seus estudos musicais “concluídos”, tocava então clarinete na Orquestra Sinfónica de São Francisco e no Mills College Chamber Players. Mas foi assaltado por uma ideia muito particular: “Foi quando estava a pensar em King Lear que decidi criar um score de música concreta/música electrónica para aquela produção teatral. Senti que ‘música’ para uma peça deveria vir dos sons do palco e das exigências do conteúdo ao invés de se limitar a ser um fundo musical ou, como então se chamava, ‘música incidental’.” Em Ramon Sender, Subotnick haveria de encontrar um parceiro com ideias semelhantes e juntos criariam o pioneiro San Francisco Tape Music Center, laboratório com ligações laterais à academia por onde passariam importantes compositores como John Cage ou Pauline Oliveros. Foi nesse contexto que Sender e Subotnick se cruzaram com Don Buchla a quem apresentaram as suas ideias de futuro que haveriam de orientar o engenheiro electrónico na criação de um dos primeiros sintetizadores modulares, o Buchla 100. Equipado com o seu inquieto espírito criativo, com os recursos de manipulação de fita apreendidos no Tape Music Center e com o sistema modular construído por Donald Buchla, Morton Subotnick haveria de ser um dos primeiros a lançar, através da Nonesuch, um álbum de música electrónica, o visionário Silver Apples of The Moon, datado de 1967 (e que daria aos Silver Apples o seu nome). Seguiram-se, muito rapidamente, os álbuns The Wild Bull (1968), Touch (1969) e Sidewinder (1971) que lhe cimentaram a reputação e o projectaram definitivamente no futuro, apresentando uma vibrante linguagem electrónica, altamente abstracta e exploratória. Subotnick, hoje com 86 anos, nunca mais abandonou esse caminho. “Agora, com o computador como ferramenta”, escreve Subotnick no já referido ensaio, “continuo a explorar a música como arte de estúdio (com alguns importantes desvios pelo caminho). Essa visão do meu ‘trabalho de vida’ formulada em finais dos anos 50 e intensamente prosseguida durante os meus anos no Tape Music Center evoluiu, cresceu e amadureceu”. Em Braga, Morton Subotnick provará isso mesmo ao apresentar, lado a lado, uma composição de 2019, “As I Live and Breathe”, e o clássico “Silver Apples of the Moon” numa parceria que já conta uma década com Lillevan que se traduz, como sublinha o programa oficial do Semibreve, num “diálogo audiovisual em permanente troca de estímulos e ideias”.

[Alessandro Cortini] (Theatro Circo, 22h50, dia 25)

É impossível não mencionar o trabalho de Alessandro Cortini nos Nine Inch Nails de Trent Reznor e Atticus Ross, mas desde pelo menos o tríptico Forse que assinou para a Important Records entre 2013 e 2015 que o músico e compositor italiano provou ter argumentos próprios capazes de sustentar a nossa atenção por si só. A sua inquieta e por vezes perturbante electrónica tem alimentado uma discografia que já deixou rasto em etiquetas de referência neste universo como a já citada Important, a Hospital Productions, a Mount Analog ou, mais recentemente, na Mute, editora que já este ano lançou Volume Massimo. Cortini conta ainda no seu currículo com colaborações com outros exploradores irrequietos como Lawrence English ou os Merzbow, sinal claro de horizontes amplos que sabem divergir da electrónica e procurar outro tipo de campos, nomeadamente mais próximos de um rock que o próprio Semibreve descreve como “subliminar”.

[Ipek Gorgun] (Theatro Circo – Pequeno Auditório, 23h59, dia 25)

Compositora turca nascida em Ankara, Ipek Gorgun tem trabalho lançado na prestigiada Touch (Ecce Homo, o seu registo mais recente, data de 2018) e para lá do seu percurso solitário, que o Semibreve garante ser feito de “delicadas e fecundas paisagens electrónicas e electroacústicas”, tem ainda dividido palcos com artistas como Ryoji Ikeda e Otomo Yoshihide (aconteceu em Tóquio, em 2014, a convite da Red Bull Music Academy) ou participado, como baixista e vocalista, em bandas como Bedroomdrunk e Vector Hugo.

[Nik Void] (gnration, 00h00, dia 25)

Nik Void tem trabalhado com projectos como Factory Floor ou ao lado da histórica dupla de Chris Carter e Cosey Fanni Tutti como Carter Tutti Void mas, garante a organização, em vésperas de lançar trabalho de fôlego de estreia a solo, virá ao gnration apresentar música que se faz de “ritmo fracturado, electrónica em condição pura, ruído faiscante e o habitual manuseio encantatório da sua voz”.

[Avalon Emerson] (gnration, 01h15, dia 25)

A fechar a primeira jornada da edição 2019 do Semibreve estará Avalon Emerson a oferecer-nos as suas “espirais de energia futurista contagiante, entre os blips digitais e uma pulsação electro que controla com precisão o formigueiro do nosso corpo”.

[Deaf Center] (Capela Imaculada do Seminário Menor, 18h00, dia 26)

Edições na conceituada indie britânica Type e, em tempos mais recentes, na berlinense Sonic Pieces firmaram o lugar da dupla norueguesa formada por Erik Skodvin e Otto Totland. Ao Semibreve trarão o mais recente trabalho, Low Distance, aplaudido exercício de um ambientalismo erguido entre uma electrónica de carácter analógico e motivos acústicos desenhados ao piano que lhe conferem uma dimensão erudita. Diz-nos o Semibreve que a dupla se move “algures entre música de câmara subterrânea e a electroacústica microscópica”.

[Oren Ambarchi & Robert AA Lowe] (Theatro Circo, 21h30, dia 26)

O australiano Oren Ambarchi e o americano Robert Aiki Aubrey Lowe estrearão no Semibreve uma peça que resulta de uma encomenda do festival e que por isso marca de forma vincada este cartaz. “Oren Ambarchi”, explica o programa oficial, “é um músico destemido e aventureiro, sem limites e com uma vontade indómita de se associar regularmente a alguns dos melhores músicos que existem.” Por outro lado, o músico que também tem trabalhado sob a designação Lichens, é “um inquieto criador que não acredita em fronteiras, em limites, em impossibilidades. Talvez seja isso que justifica que navegue com perfeita naturalidade os diferentes oceanos de som que se estendem do metal à new age”, escrevia-se numa folha de sala para uma apresentação na ZdB há um par de anos. ““Há muito para descobrir no sintetizador modular. É um ser com vida própria, por isso é quase como se eu tivesse um colaborador”, explicava em entrevista. Desta vez, terá mesmo. E esta será, portanto, uma apresentação com o que o festival defende serem “dois nomes essenciais da música deste século”. Impossível discordar.

[Drew McDowall + Florence To] (Theatro Circo, 22h50, dia 26)

Depois de colaborar com Hiro Kone em The Ghost of Georges Bataille, registo lançado em 2018, Drew McDowall lançou através da Dais Records o álbum The Third Helix. Mas o recentemente reeditado Time Machines, álbum que lançou com os Coil em 1998 e que é amplamente entendido como uma obra-prima da electrónica mais inquisitiva, permanece uma referência, até para as suas apresentações ao vivo. Há um par de anos, McDowall falou ao Rimas e Batidas sobre a parceria que rendeu esse seminal álbum que no Semibreve será apresentado num espectáculo que conta com dimensão visual assinada por Florence To: “De facto sentíamo-nos como outsiders. Naquele tempo, quando eu estava a trabalhar com os Coil, não havia praticamente Internet, só algumas mailing lists, mas as coisas não eram muito orientadas pela web. E não havia plataformas sociais, pelo que era difícil perceber exactamente quantas pessoas apreciavam o que estávamos a fazer. Para que alguém manifestasse algum tipo de apreciação era necessário um empenho físico, escrever uma carta, o que as pessoas faziam, ou então seria preciso virem mesmo ter connosco, o que acontecia raramente, talvez se tivéssemos um concerto em Londres ou algo assim. Por isso, sim, sentíamos que habitávamos uma qualquer margem mais remota, toda a nossa comunidade se posicionava nas margens do que quer que estivesse a acontecer musicalmente. Mas isso acabava por ser bom, já que nos dava liberdade e nos protegia de distracções acessórias. Há muito que se diga acerca de trabalhar em relativa obscuridade. Claro que as pessoas iam comprando os discos e as sementes foram sendo lançadas ao solo, com pequenos grupos espalhados por todo o mundo a pegarem nos discos, a gravá-los em cassetes que passavam a outros amigos. Portanto também dessa forma se gerou um lento processo de reconhecimento do nosso trabalho, mas de forma muito diferente da que temos hoje. Não foi sem surpresa que me fui apercebendo do crescimento da reputação dos Coil. E ainda me surpreende quando as pessoas hoje me abordam e me explicam o quão importante é a obra dos Coil para elas.” Sobre a síntese modular, McDowall também apontou ideias esclarecedoras: “Para mim é a possibilidade de trabalhar com uma tela em branco. Quando se liga um sintetizador com presets é possível navegar por esses sons pré-definidos que numa primeira abordagem até podem soar incríveis, mas qualquer outra pessoa com o mesmo sintetizador irá eventualmente usar os mesmos sons. E é verdade que se pode editar esses sons, mas parece que se é sempre obrigado a seguir o mesmo caminho. E a cena fantástica acerca da síntese modular é que se passa muito tempo a ligar cabos e as possibilidades são infinitas. Pode-se criar timbres realmente extraordinários e podem cometer-se erros que ainda assim fazem sentido e soam bem”. A conferir, dentro em breve.
 

[Clothilde] (Theatro Circo – Pequeno Auditório, 23h59, dia 26)

Foi com a entrada em cena da LABAREDA, editora criada por Sonja em 2014, que Clothilde encontrou um abrigo criativo para acolher o seu primeiro material digno de edição. Sofia Mestre, a produtora por detrás do projecto, tem um passado considerável ligado à maquinaria musical mas só no ano passado encontrou o equilibro que lhe permitiu compilar os sete temas presentes em Twitcher, o seu álbum de estreia editado em cassete pelo selo português. E, como nos garante o programa oficial, “o seu presente é feito de uma busca pela novidade imaculada, pelo confronto com o desconhecido, esgravatando a música que sai dos seus artesanais instrumentos como se fosse uma dádiva miraculosa”.

[Rian Treanor] (gnration, 00h00)

Do programa do Semibreve: “Em Março deste ano, Rian Treanor editou Ataxia, o seu primeiro álbum depois de alguns brilhantes EPs que colocaram o seu nome altamente detectável no radar da electrónica. Ataxia significa incoordenação patológica dos movimentos do corpo. E, de facto, lançarmo-nos para a música de Treanor é testarmos alguns dos nossos limites e observarmos como respondemos a eles”.

[Kode9] (gnration, 01h15, dia 26)

Steve Goodman nasceu e cresceu em Glasgow, Escócia e cedo descobriu a arte do DJing, com uma orientação musical que apontava para destinos tão distintos como o hip hop, o house, o funk, jazz ou reggae. Já na idade adulta muda-se para Londres, onde vê a possibilidade de mesclar todos os seus gostos no caldeirão da então emergente cena garage britânica. Em 2004 fundou a Hyperdub, actualmente uma das editoras mais respeitadas no circuito da música electrónica à escala global, que tem servido de casa para algumas das mais brilhantes mentes da produção contemporânea como Burial, Dean Blunt, The Bug, DJ Rashad ou o próprio Steve, mais conhecido no circuito enquanto Kode9Nothing, o seu último LP de originais, saiu em 2015, com Kode9 a assumir uma relativa discrição desde então. No ano passado, juntou-se a Burial na mix que deu por encerrada a série FABRICLIVE.

[Felicia Atkinson] (Salão Medieval da reitoria da Universidade do Minho, 15h00, dia 27)

Explica-nos o Semibreve: “No último par de anos temos ouvido repetidamente o nome de Félicia Atkinson. Não apenas na música, onde vai mostrando um corpo de trabalho cada vez mais notável, mas também nas letras e artes visuais graças à fundamental Shelter Press, que dirige com Bartolomé Sanson. Através do valioso catálogo da editora vamos ficando a perceber o abrangente olhar de Atkinson ao mundo e de como tudo alimenta de modo harmonioso as suas composições: poesia concreta, sons perdidos, ruídos reciclados ou fragmentos estranhos coexistem de forma harmoniosa numa textura ambiental, colada de forma intuitiva numa estrutura electrónica delicadamente rarefeita e abstracta. Tudo estará disponível na sua mesa de trabalho mas só no momento de criação é que ouviremos como Félicia Atkinson construirá mais uma das suas admiráveis esculturas sonoras”.

[Scanner + Miguel C. Tavares] (Theatro Circo, 17h00, dia 27)

A carreira de Robin Rimbaud como Scanner confunde-se com a história do último quarto de século de música electrónica. Estreou-se com o homónimo Scanner em 1993 na Ash International (selo ligado à Type) com uma proposta profundamente original: se a música concreta propunha a organização e manipulação de sons a partir dos registos em fita magnética, assumindo que a memória registada poderia ter outra vida nas mãos dos compositores, Scanner percebeu que os sons que nos rodeiam e que são captáveis na “rede” do seu receptor ofereciam infinitas possibilidades de criação e manipulação ao mesmo tempo que  funcionavam como um urgente e lúcido comentário ao presente. A sua prolífica obra lançada nestes 25 anos prova que os caminhos que engendrou são inesgotáveis e sempre intrigantes. Nos últimos anos, ao seu arsenal técnico adicionou os sintetizadores modulares e será com esse ângulo que se apresentará em Braga. Adianta o Semibreve: “Os tradicionais modulares são origem para muito do seu actual entusiasmo, mas as novas gerações dessas máquinas também lhe dão abastado alimento para a sua curiosidade. Aceitou, por isso, com esperado gosto, o convite do Semibreve para estar em residência no festival com a superior marca de modulares portuguesa ADDAC System, de onde criará a matéria prima para o seu concerto. Adicionando valia a esta estreia, o cineasta Miguel C. Tavares irá criar o filme para esta excursão de ida e volta ao mundo das máquinas”.

[Suzanne Ciani] (Theatro Circo, 18h10, dia 27)

Suzanne Ciani merecerá por aqui perfil mais detalhado, mas para já importa saber que é um dos nomes ligados à fase pioneira da música electrónica em solo norte-americano, uma compositora que ao longo dos mais de 40 anos de carreira foi já distinguida com cinco nomeações para os GRAMMY. O sintetizador Buchla 200e tem sido o seu instrumento de eleição, peça em destaque na sua passagem por Braga e figura central no seu último lançamento, LIVE QuadraphonicA Life In Waves foi o documentário dedicado à exploração sónica percorrida por Suzanne Ciani, estreado no SXSW’17. Este ano, a Finders Keepers Records, etiqueta de Andy Votel responsável por voltar a lançar luz sobre o catálogo clássico desta artista, recuperou agora Flowers of Evil, um disco de 1969 que se encontrava há muito descatalogado.

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