pub

Fotografia: Julia Dratel*
Publicado a: 03/03/2021

Uma força maior do jazz moderno.

Scott McNiece da International Anthem: “Estamos a receber muito amor, mas será que o merecemos?”

Fotografia: Julia Dratel*
Publicado a: 03/03/2021

Quando se pensa no extraordinário ano que a editora independente de Chicago International Anthem registou em 2020 – Scott McNiece e o seu sócio David Allen lançaram discos de Dezron Douglas & Brandee Younger, Angel Bat Dawid, Rob Mazurek e a sua Exploding Star Orchestra, Aquiles Navarro & Tcheser Holmes, Carlos Niño & Miguel Atwood-Ferguson, Alabaster DePlume, Anteloper, Makaya McCraven, Irreversible Entanglements e Jeff Parker – é difícil pensar que 2021 poderá igualar tão elevada fasquia, mas o comunicativo baterista-punk-tornado-editor-de-jazz termina a longa conversa tida por Zoom revelando que os próximos meses deverão contar com actividade editorial de idêntica intensidade, começando já com novo disco do projecto de Damon Locks com o Black Monument Ensemble, o álbum NOW, agendado para o próximo dia 9 de Abril. Essa agenda carregada traduz urgência, mas também o vigor de uma cena muito particular que a partir de Chicago tem dado um crucial contributo para o grau de vitalidade extrema de que o jazz goza neste estranho presente.

Em conversa com o Rimas e Batidas, Scott McNiece revela-se um livro aberto, não se escusando a responder a perguntas mais delicadas ou a repetir a tão improvável quanto certamente já inúmeras vezes relatada história da criação da sua editora. Improvável porque tanto ele como o seu sócio David Allen chegaram ao mundo do jazz vindos de uma cultura bem diferente, habituados a percorrer o seu país em carrinhas carregadas de equipamento que era usado em caves ou parques de estacionamento para concertos perante enérgicos públicos punk. “Sempre gostei de tocar rápido e alto”, admite McNiece, reforçando a o carácter inusitado de criação de uma editora que terminou 2020 a lançar um aclamado registo de pura poesia e elegância carimbado durante o confinamento por um contrabaixista e uma harpista.

McNiece chegou a Chicago em 2009 vindo do Indiana com o resto dos membros da sua banda, os Prizzy Prizzy Please. Na conversa tida há um par de semanas, o ex-baterista explica como a dada altura se cansou do lado mais desbragado do circuito em que viveu imerso durante tanto tempo e que a descoberta da cena de jazz e música improvisada ancorada no histórico Hungry Brain de Chicago lhe escancarou as perspectivas. Daí a organizar as suas próprias noites no Curio, o pequeno bar em que então trabalhava para se manter, foi um simples passo.

A International Anthem Recording Company arrancou com a edição de Alternate Moon Cycles do veterano do circuito musical da Windy City Rob Mazurek, agitador de muitas aventuras, incluindo o projecto Chicago Underground nas suas múltiplas vidas paralelas. Corria então o ano de 2014. Nos anos seguintes, esta editora lançaria trabalhos de Makaya McCraven, Jeff Parker, Jaimie Branch, Ben LaMar Gay, Irreversible Entanglements ou Angel Bat Dawid, somando, na sua principal série, cerca de quatro dezenas de títulos, boa parte dos quais apresentados ao mundo no último par de anos, numa intensificação de actividade que reflecte não apenas o seu crescimento, mas também o da cena que ajudaram a fomentar.

Antes de se atirar a 2021, Scott McNiece faz aqui o seu balanço possível de uma história que ainda agora começou.



O teu background é noutra área musical por isso o que gostava de começar por perguntar é como é que o jazz surgiu no teu horizonte?

De facto, venho de outra área: antes do jazz ter surgido na minha vida, as bandas em que eu andava envolvido estavam ligadas às cenas punk ou metal. Mas, se eu quiser recuar e procurar falar sobre a minha entrada no mundo da música terei que falar na banda da escola em que eu ingressei quando era muito novo, com apenas 10 anos. Toquei percussão esse tempo todo, até ao liceu, num contexto sinfónico. Por isso, antes dos géneros, eu era essencialmente um músico, alguém interessado em música. Foi quando cheguei aos 20 anos que me comecei a interessar pela cena punk e foi nesse momento que me tornei mais activo. Enquanto músico, sempre gostei de tocar muito rápido e com bastante volume e isso foi exactamente o que fiz [risos]. Nunca fui muito bom a tocar de forma mais sensível e relaxada [risos]. Bem, mas comecei por ser um músico, como te disse, e quando comecei com as bandas ia muito em digressão e de repente havia shows em que éramos nós mais quatro ou cinco bandas e o que eu percebi foi que todas as bandas soavam igual: éramos quatro ou cinco tipos e todos a tocarem guitarras e demais instrumentos o mais alto possível. Eu adoro isso, a energia, o espírito comunitário, mas, passado algum tempo, isso começou a aborrecer-me. Comecei a pensar que apesar de ser uma comunidade de músicos, as pessoas individualmente não levavam a música em si muito a sério, ninguém parecia interessado em evoluir na sua arte, no seu instrumento. Claro que isto não se aplica a toda a gente: há quem consiga fazer coisas interessantes e desafiantes nesse contexto, mas a verdade é que a maior parte do tempo eu estava a sentir-me aborrecido.

Nessa época eu estava a trabalhar num bar em Chicago e a dada altura dei por mim numa noite de música improvisada num outro bar chamado The Hungry Brain, uma noite que durava já há décadas. Devo dizer que sempre gostei de jazz, mesmo quando estava nas bandas punk eu gostava de todos os géneros de música: a minha colecção de discos tinha de tudo, incluindo algum jazz e sempre gostei disso. Mas foi quando descobri essa forma particular de jazz de vanguarda que se pratica em Chicago que me passei um bocadinho. Acho que há uma tradição de música criativa em Chicago que é um pouco mais difícil, desafiante, um pouco menos idiomática, feita por músicos que se forçam a ir mais longe, a pensar no que podem realmente fazer com os seus instrumentos. E se há muita gente que pensa que isso rende música impossível de escutar eu, pelo contrário, concluí: “bem, isto é punk como tudo. Estes tipos estão a fazer coisas com os seus instrumentos que ninguém parece capaz de apreciar, mas ao mesmo tempo nunca ouvi nada de tão único”. Foi assim que entrei, que fui apanhado. Isso levou-me a ir para casa, a tentar encontrar formas diferentes de abordar a minha bateria, e gradualmente fui perdendo o interesse pelas bandas em que costumava tocar. Como não conhecia músicos que pensassem o mesmo, em vez de tocar comecei a ouvir mais: saía muitas noites por semana para ir ver concertos e depois chegava a casa e ia escutar discos. Ouvir preenchia-me mais do que tocar porque não estava a ser capaz de traduzir tecnicamente aquilo em que estava interessado. E por isso passei de ser um baterista punk para ser um organizador de noites jazz. Fui atraído por gente que era muito séria em relação à música, à evolução técnica e à arte, gente interessada em evoluir, em desafiar os limites. Parte do pensamento punk parecia ir na direcção contrária: as bandas e os músicos tinham um certo orgulho em dizer algo como “não prestamos”. Achávamos isso cool. O problema foi que a dada altura eu deixei de querer ser assim (risos).

Entendo isso perfeitamente. E como é que esse interesse pela cena, pela arte, desembocou na ideia de criar uma editora?

Ok: eu trabalhava no bar, comecei a interessar-me por esta música, pelo jazz em geral, mas sobretudo pelas correntes mais avançadas. E foi quando eu comecei a organizar umas noites no bar em que trabalhava, com esse tipo de músicos. Essa parte, o espírito DIY (“do it yourself”) eu trouxe do punk. Nessa cena eu aprendi a fazer digressões, a montar espectáculos em qualquer lugar, em garagens e caves, armazéns. Por isso eu comecei a aplicar essa capacidade na produção de concertos de jazz. E percebi que adorava fazer isso, apresentar a música sem necessariamente me envolver nela como artista. Essa foi uma diferença grande: porque nos tempos da cena punk, eu organizava muitos concertos para bandas que vinham de fora da cidade, mas a minha própria banda acabava sempre a fazer a primeira parte. E neste caso eu estava a adorar não fazer nada para lá de organizar as noites: gostava de apresentar, de tomar conta dos músicos, de garantir que tinham sempre tudo o que necessitavam. Depois descobri que também gostava de escrever: todas as semanas havia um concerto lá no bar e eu mandava um email para muita gente com textos sobre os músicos que iam lá tocar, sobre o que eu pensava da música que eles faziam, do percurso de cada artista. E os músicos começaram a dar-me um feedback muito positivo sobre isso: “adoramos o que estás a fazer, a forma como escreves sobre nós, como nos apresentas”. E depois fazíamos sempre uns posters em serigrafia para os concertos. Bem, na verdade ninguém ia aos concertos, acabavam sempre por aparecer umas cinco pessoas apenas [risos]. Mas o que era realmente importante era montar o espectáculo, não que ele fosse um enorme sucesso. E as coisas começaram a evoluir de uma forma muito orgânica: os músicos estavam satisfeitos com a forma como eram recebidos, como os apresentávamos. A dada altura os músicos começaram a manifestar vontade de fazer ali residências, de ficarem um mês a trabalhar numa ideia ou num projecto. Tentámos isso um par de vezes e gostei imenso, comecei a perceber como um curador se pode tornar parte do processo criativo, mesmo sem estar na banda. Foi nessa altura que liguei ao David Allen, que é hoje o meu sócio na editora: “Olha, estou a organizar umas residências com músicos de jazz e a fazer uns concertos. Queres aparecer e gravar alguma coisa?” Mas nunca houve uma premeditação, foi mesmo e só: “Aparece e vem gravar isto!” O David vinha de um background similar ao meu, foi assim que o conheci: as nossas bandas faziam digressões DIY juntas, montávamos concertos uns para os outros sempre que cada um ia à cidade do outro. E a dada altura ele também se começou a interessar por outras cenas musicais. Das gravações das residências e dos concertos e das nossas conversas começou a nascer na ideia de começarmos uma editora para lançar esse material.

Deve haver uma história qualquer por trás da escolha do nome para a editora? E eu prometo fazer algumas perguntas difíceis a seguir…

[Risos] O nome da editora, International Anthem, vem de um projecto em que eu e uma amiga costumávamos gravar umas coisas na minha cave. Ela é pianista, violonista, cantora e guitarrista e nós costumávamos improvisar umas coisas. A dada altura fizemos uma gravação de que gostámos e quando chegou o momento de lhe dar um título, como sempre acontece nestas ocasiões, simplesmente escrevemos qualquer coisa. E eu escolhi para título “The International Anthem” (“O Hino Internacional”). Achámos que soava bem e por isso esse nome ficou sempre aqui registado na minha cabeça. Um ano ou dois depois disso, quando eu e o David começámos a falar em arrancar com a editora eu perguntei-lhe o que achava ele de International Anthem para nome do nosso projecto. Ele disse-me que gostava da forma como soava e perguntou-me qual era a ideia por trás do nome: “Bem, quando se pensa no que as palavras significam, percebemos que são acerca de diversidade e unidade, tudo junto, num contexto musical”. E esse era de certa maneira o nosso objectivo, o nosso programa. Desde o início que a nossa intenção foi sempre trabalhar com um grupo muito diverso de pessoas e cobrir um espectro sonoro bem amplo; queríamos que tudo tivesse uma unidade e uma força também. Por isso o nome soou bem.

De certa maneira, pela vossa insistência no suporte de vinil, pelo cuidado que colocam em todos os aspectos do packaging, do design à qualidade do papel, vocês acabam por honrar essa longa linhagem de etiquetas clássicas, como a Blue Note ou a Impulse!. Estudaram essas editoras nesse sentido? Perceberam que havia um parâmetro de qualidade que importava honrar?

Bem, não diria que estudámos esses selos com a intenção de fazer igual ou algo assim, mas claro que enquanto colecionadores de discos todos esses grandes lançamentos clássicos nos inspiraram e passámos ambos muitas horas a admirá-los. Nós adoramos discos e estudamos todos os aspectos das nossas edições favoritas porque isso é o que quem se importa com a música faz. Achamos que é importante, quando se tem boa música, sobretudo quando se fala de música criativa que possa soar diferente, é importante, dizia, oferecer-lhe uma embalagem que seja igualmente criativa, que tenha bom ar, que até pareça bem ao toque, quando a temos nas mãos. De certa maneira isso abre uma porta qualquer, abre os ouvidos das pessoas. E nós desde o início que estabelecemos isso como objectivo: criar grandes artefactos, que mantenham o valor e que por causa do seu valor enquanto objectos físicos possam contribuir para a valorização da própria música. O estilo da Impulse! foi uma grande influência para nós: o primeiro disco do Makaya McCraven que fizemos, a parte de dentro da capa desdobrável foi muito inspirada pelo aspecto interior das capas de abrir da Impulse!. Foi essa a orientação que dei ao Craig Hansen, o nosso designer gráfico: “Vê aí este álbum do Chico Hamilton na Impulse!. É assim que queremos que a nossa capa de abrir pareça também.” Portanto, claro que estávamos a par do lado visual dessas grandes editoras clássicas, da importância de ter um bom design para sustentar a nossa marca, da importância que é ter uma linha comum, mas ao mesmo tempo não queríamos que essa unidade fosse tão rígida como nessas editoras clássicas: muitos dos aspectos do design dessas editoras são idênticos, acabando para contribuir para essa identidade, mas nós tentamos fazer isso de outra maneira. Foi por isso que criámos as nossas obi strips. Pensámos que seria bom se tivéssemos um elemento que unisse todos os nossos discos de forma a que quando os vês numa loja saibas logo que é um dos nossos lançamentos, mas também não nos quisemos substituir à visão dos artistas: a obi strip carrega a nossa imagem, mas quando a removemos percebe-se que cada capa é única e respeita a visão do artista. Claro que trabalhamos sempre de muito perto com os artistas porque é importante que também gostemos do resultado final, mas acaba sempre por ser uma conversa, um debate, em que queremos que todos saiam a ganhar.



Actualmente, e também muito graças a iniciativas como o Record Store Day ou as Bandcamp Fridays, parece que toda a gente e os seus primos está a prensar vinil. Isso facilitou ou complicou os vossos processos de fabrico e distribuição? Estão a fazer discos em Chicago?

Não, não. Actualmente, fabricamos quase tudo na Alemanha. As coisas correram quase sempre bem. Eu diria até talvez há cerca de nove meses, obviamente por causa do Covid-19: as fábricas já não conseguem laborar à velocidade máxima porque estão a funcionar sob restrições. Essa é uma razão. Mas, como disseste, o vinil está realmente a vender muito bem agora e há muita gente a prensar este formato. E isso nunca foi um problema para nós até ao último Outono. Agora, de repente, demora seis meses a receber um disco e isso é um pouco… digamos… aborrecido. Mas sim, temos feito quase tudo com a Pallas, na Alemanha, e eles trabalham muito bem. Ocasionalmente fazemos algumas coisas com a Smashed Plastic, que é uma nova fábrica em Chicago, e eles também trabalham muito bem. Mas para nós funciona melhor fabricar tudo no mesmo lugar, é mais económico, e a Pallas nesse sentido tem servido maravilhosamente os nossos propósitos. Mas não sei como isto vai evoluir e se seremos obrigados a começar a prensar os nossos discos para o mercado europeu e para o americano em sítios diferentes.

O facto de terem as operações de manufactura centradas na Europa significa que este é o vosso principal mercado?

Não sei se será o principal: a Europa, como um todo, e os Estados Unidos são os nossos dois mercados principais, obviamente, e eu diria que se equilibram, 50 por cento para cada lado. Talvez vendamos um pouco mais de vinil através de lojas de discos na Europa do que nos Estados Unidos, mas em vendas directas os números acabam depois por se equilibrar.

Quão importante foi para vocês, enquanto referência para o vosso trabalho, a existência de uma instituição como a AACM?

Bem, não posso dizer que conheça a AACM e a importância do seu trabalho desde sempre, só tive conhecimento da sua existência quando me aproximei da cena de vanguarda do jazz de Chicago, quando comecei a organizar concertos e a frequentar noites deste género de música. Nessa altura comprava muitos discos e lia muito sobre música e foi nesse tempo que percebi o alcance da obra dessa instituição que se tornou, obviamente, uma inspiração para nós. E alguns dos artistas com que trabalhamos estão ligados à AACM, mas essa é a única ligação que temos: conhecemos muita gente envolvida com a AACM.

Como eu avisei logo no início, as perguntas complicadas haveriam de surgir. Bem, há uma ampla conversa a decorrer actualmente, mesmo em Portugal, sobre a ligação entre o racismo sistémico e os sistemas económicos capitalistas, por exemplo. E tu e o David são dois empresários brancos a trabalharem com muitos músicos negros e a operarem numa área estética que foi e é essencialmente uma criação afro-americana. Isso foi motivo de preocupação para vocês quando estabeleceram a editora?

Claro: nunca nos esquecemos que somos brancos [risos], eu e o David, e estamos constantemente conscientes dessa dinâmica e devo dizer que essa é uma conversa em que também estamos empenhados de forma franca com os artistas com que trabalhamos. Não sei bem o que dizer a não ser que concordo que há muitos problemas com a exploração de artistas negros e para nós é uma missão mesmo importante trabalhar contra isso, colocarmo-nos do lado certo da barricada.

Bem, muitos dos discos que vocês têm editado têm mensagens políticas e de militância mais ou menos declaradas, portanto, diria que, no mínimo, vocês estão a adicionar vozes a essa luta, a essa conversa…

É o que tentamos, sem dúvida: amplificar essas vozes. Mas temos noção, como referiste, que há uma conversa, há uma tensão, e temos que ter cuidado ao gerir essa dinâmica, mesmo no lado mais de negócio. Estamos constantemente a controlar-nos a nós mesmos para nos certificarmos que não estamos, mesmo sem intenção, a prejudicar alguém nesse sentido. Queremos mesmo muito sermos o mais justos possíveis e essa é uma conversa permanente com os nossos artistas. E por isso tem sido tão importante construir relações com os artistas, mesmo antes de começarmos a trabalhar. Começamos por ser amigos. Não se trata de descobrir um artista negro interessante na Internet e fazer-lhe uma proposta. Não fazemos isso. Somos mesmo acerca do oposto: a ideia é construir relações e fomentar o espírito comunitário, estabelecer relações simbióticas com os artistas fazendo por eles coisas que eles precisam que sejam feitas. Queremos ajudá-los da forma que eles escolherem ser ajudados. E fazemos o nosso melhor para não sermos demasiado controladores. Mas é um processo em que nunca deixamos de tentar melhorar nesse aspecto.



Olhando para o vosso catálogo e percebendo como os músicos tocam nos discos uns dos outros, como estabelecem diferentes colaborações, o que se entende é que a International Anthem funciona de facto como uma comunidade, como uma grande família…

Essa é a nossa intenção, e esse é o nosso objectivo. Penso que isso ajuda também a resolver algumas das partes mais difíceis da dinâmica racial. Claro que isso não se pode evitar no nosso mundo, porque foi assim estabelecido por forças para lá do nosso controlo, mas mantendo o foco em relações reais é possível contornar essas imposições exteriores. De certa forma, penso que é algo que aprendi com a cena punk: talvez as pessoas envolvidas não ligassem tanto à evolução técnica e a uma demanda mais musical, mas as relações de amizade foram sempre muito importantes, a noção de lealdade, era sempre aos amigos que as coisas iam dar, quando algo era necessário, recorria-se em primeiro lugar a alguém amigo. É o que tentamos fazer aqui: criar amizades e trabalhar com gente que é próxima. Essa foi a razão para criarmos a editora. Nem sequer é acerca de editar discos e vender discos, é acerca de passar tempo com gente de que se gosta muito, que se respeita. E a verdade é que nenhum de nós está a ficar rico: só o ano passado é que começámos a receber um pequeno ordenado, o que foi simpático. “Hey, até já dá para recebermos qualquer coisa” [risos]. Porque tivemos uns sete anos a trabalhar sem receber nada e nunca deixámos de fazer as coisas mesmo sem imaginarmos que um dia seria possível sermos pagos por isso. Mas ao fim do dia vai sempre dar ao que é realmente importante: como queremos investir o nosso tempo e com quem o queremos investir.

E 2020 foi o vosso melhor ano até agora? Uma dúzia de lançamentos, aplausos generalizados da imprensa, inclusão de lançamentos vossos em muitas listas de final de ano…

Talvez tenha sido o nosso melhor ano, sim. 2020 foi especial e nem sequer apenas por termos lançado 11 ou 12 discos. Foi também o ano em que o trabalho feito nos anos anteriores realmente começou a dar frutos, muitas coisas tornaram-se mais ágeis para nós. Mas 2019 também foi fantástico. Na verdade [risos], gosto de pensar que 2019 foi um ano bem melhor: toda a gente era mais feliz em 2019. Mas, fora de brincadeiras, pensando em números, em vendas físicas dos nossos discos, não há dúvida de que 2020 foi o nosso melhor ano. Em 2019 foi diferente porque muitos dos nossos artistas puderam viajar, tocar muito ao vivo.

Há uns dias um amigo meu dizia que apesar de ter travado a música ao vivo, e isso aconteceu a todos os géneros, da clássica ao rock, incluindo o jazz, pois claro, a pandemia foi óptima para o jazz porque, argumentava ele, “as pessoas não querem ouvir palavras agora, mas querem ouvir música que lhes eleve o espírito e as estimule criativamente e o jazz faz isso”. Dizias que venderam mais discos em 2020… Haverá alguma base de verdade naquela teoria?

Não sei… Acho que o aumento nas vendas de música foi generalizado e isso há-de ter tido que ver com o facto das pessoas não poderem sair para ouvir música ao vivo, serem forçadas a ficarem em casa. As Bandcamp Fridays foram muito importantes também: acho que toda a gente percebeu que era seu dever comprar discos pelo menos uma sexta-feira por mês… As pessoas entenderam que precisavam de apoiar os artistas porque o seu sustento foi severamente ameaçado com a interrupção das digressões, da música ao vivo. Gosto de pensar que isso se manifestou num consumismo consciente. Há bocado falavas do acerto de contas cultural e histórico que está a decorrer ou que se está a desenhar e pode pensar-se que isso também está a acontecer na música. As pessoas perceberam que tinham que fazer algo pelos seus artistas favoritos. E todas essas diversas coisas contaram para ajudar as vendas. Mas o jazz sofreu por ser especialmente uma música que criativamente vive do palco e da interacção entre músicos: a música acontece mesmo nos pequenos espaços, nos cafés ou pequenos clubes, é aí que as ideias surgem, nesses contextos, é aí que a música cresce e se desenvolve. Os nossos primeiros álbuns, incluindo o do Makaya, foram gravados no bar. E essa possibilidade de desenvolvimento desapareceu agora, está suspensa, porque os músicos não têm onde se encontrar para tocarem juntos. Portanto apesar do crescimento das vendas e talvez apesar do jazz ter conquistado uma maior fatia desse mercado no ano passado, concordo com isso, não me parece que ainda assim a pandemia tenha sido boa para o jazz. Os músicos precisam de concertos, de lugares para tocarem. E não é apenas por questões financeiras, que são cruciais, mas pela progressão da própria música.

Mencionavas a dúzia de lançamentos feitos em 2020: esse calendário obedeceu a um plano pré-gizado? Quando o ano começa, já sabem o que irão lançar ao longo dos meses seguintes?

[Risos] Nem por isso. Quer dizer, fazemos planos, mas… de repente também nos ocorre uma ideia qualquer, decidimos que temos que fazer algo que não estava pensado e fazemos e pronto [risos]. Por exemplo, no ano passado, entre Janeiro e Março lançámos três álbuns: Alabaster de Plume, Jeff Parker e Irreversible Entanglements. Mas para lá desses discos, só um outro estava planeado, o disco do Rob Mazurek. Até chegámos a pensar que iria ser um ano tranquilo em termos de edições. Depois veio a pandemia e ao início ficámos muito assustados, como toda a gente, falava-se no colapso da indústria musical e nós, “bem, que porcaria, se calhar acabou-se isto”. Mas algumas semanas depois de tudo ter fechado, eu e o David pensámos: “Bem, ninguém está a trabalhar, está tudo parado, se calhar nós precisamos de nos mexer mais do que nunca, esta é a hora para colocar coisas em marcha”. Isso entusiasmou-nos, começámos a espreitar o arquivo e a tentar perceber o que tínhamos, começámos também a falar com os artistas para percebermos o que tinham eles em mãos. E de repente, em vez de quatro lançamentos triplicámos isso. Este ano pergunto-me o que irá acontecer, porque temos muitos planos… mas por esta altura no ano passado achávamos que só íamos fazer quatro discos, por isso, quem sabe o que sucederá desta vez? Estamos a tentar meter coisas em marcha, mas está tudo a mexer-se muito lentamente agora. Mas ser espontâneo é importante: às vezes há coisas que acabam de ser feitas e têm mesmo que ser lançadas logo. Temos que estar preparados para essa eventualidade.



Foi isso que aconteceu com Force Majeure, o álbum de Dezron Douglas e Brandee Younger? Como se passou de um live de Instagram para um dos melhores discos do ano?

Também adoro esse disco. E aconteceu tudo de forma natural: eu vi o que eles andavam a fazer com o live stream, já me tinha ligado para conferir porque adoro-os como artistas e pensei “godamn, isto é espantoso, adoro”. Só ouvi-los a tocarem canções assim, juntos, na sua sala de estar… aquilo soou-me tão bem que lhes enviei uma mensagem: “pessoal, estou a adorar isto, acho que isto dava um grande álbum”. E eles: “a sério?” E eu, “claro, vamos mandar-vos um microfone”. Então, todas aquelas semanas em que fizeram os streams, eles tinham lá o microfone montado e foram gravando. Só a história em torno do projecto já é incrível. Penso que os abordei ainda em Março, talvez em Abril, já não me lembro bem. E disse-lhes: “Bem, acho que devíamos lançar isto depois da pandemia, quando tudo acabar, lá para Dezembro. Por essa altura já tudo terá terminado e as pessoas estarão a olhar para trás e a pensar em como tudo foi uma loucura”. Porque eu achei que de certeza que em Dezembro já tudo estivesse para trás das costas e tudo estivesse de volta ao normal. Mas eis que Dezembro chegou, a pandemia estava pior ainda e nós avançámos na mesma. Tinha que ser: a Brandee tem um álbum novo preparado para sair na Impulse!.

Como é que achas que a International Anthem se está a portar perante os gatekeepers desta cultura, os grandes pensadores e críticos, as grandes revistas? Sentem-se reconhecidos?

Sinceramente, acho que nos sentimos muito respeitados. Às vezes até me parece que recebemos mais props do que os que merecemos [risos]. Às vezes isso até me faz pensar: “estamos a receber muito amor, será que o merecemos [risos]?” Eu não tenho muitas relações directas com a imprensa, a nossa promoção é tratada por assessores, por isso às vezes nem conseguimos medir as reacções. Mas sabemos que é importante ter essa mediação, porque isso ajuda muito os artistas e a visibilidade dos álbuns. Quando começámos a editora, sabíamos que estávamos a lançar música desafiante e se me tivessem dito em 2015 que iríamos receber a quantidade de atenção da imprensa que hoje recebemos eu não acreditaria. Sabia que estávamos a editar sobretudo música instrumental, e mesmo quando há vocalistas envolvidos não se pode dizer que estamos a trabalhar com canções pop. Sabíamos que era material diferente e que era o que queríamos lançar e eu lutava com cada pedaço de força que conseguia reunir para que as pessoas nos prestassem atenção, mas eu tinha passado quatro anos a fazer concertos com estes artistas para salas sobretudo vazias e já estava habituado a que ninguém se importasse. E ninguém se importava mesmo. Mas decidimos que haveríamos de continuar a insistir até que alguém reparasse. Cheguei a um ponto em que pensei que talvez isso nunca viesse a acontecer. E embora eu acredite que todos os artistas com que trabalhamos merecem todas as flores e até mais atenção do que a que já recebem, eu não posso deixar de reconhecer que temos tido um bom apoio dos media. Não tenho queixas.

Envias recortes de jornais aos teus pais?

[Risos] Sim, claro [risos]. De cada vez que lemos sobre o nosso trabalho no New York Times ficamos sempre “uau, eles sabem que nós existimos? Estranho!” Estamos muito melhor do que alguma vez imaginei que pudéssemos estar. Mas claro que não é pela atenção que fazemos o que fazemos. É óptimo ter a imprensa do nosso lado, mas nem sei se é isso que ajuda nas vendas. Parece ser um mundo diferente: feito de pensadores e de ideias e de debates. E não sei se é isso que empurra as vendas, sinceramente. Mas sei que isso é importante para os artistas, ajuda na sua visibilidade, na hora de marcar concertos. Mas não tenho queixas e não espero nada. É importante não criar falsas expectativas.

Uma última questão: bem sei que este é um ano carregado de incógnitas, mas certamente terão já algumas coisas alinhadas. O que me podes dizer para já sobre o calendário da International Anthem para 2021?

Vamos começar por lançar um novo álbum de Damon Locks com o Black Monument Ensemble. Depois disso teremos um trabalho de Carlos Niño & Friends. Haverá também novo disco de Jaimie Branch, um disco ao vivo. A Angel Bat Dawid está a trabalhar num disco que esperamos poder editar no Outono. O Alabaster DePlume também está a trabalhar no novo álbum. Vamos editar o novo disco do Makaya McCraven em colaboração com a XL Recordings e a Nonesuch: não sei bem quando acontecerá isso, mas temos esperança que seja ainda este ano. Infelizmente há muitos artistas que estavam convencidos que iriam poder fazer digressões no próximo Outono, mas agora que já estamos quase na Primavera e ainda não há certezas, se calhar alguns artistas estão a atrasar os seus novos trabalhos. Por isso ainda há dúvidas. Também estamos a trabalhar com um artista chamado Frank Rosaly, ele trabalha com uma artista boliviana chamada Ibelisse Guardia Ferragutti. Ele costumava viver em Chicago e era um dos meus músicos favoritos quando comecei a entrar neste mundo, mas mudou-se para Amesterdão e vive lá com a Ibelisse e estão juntos a trabalhar num disco para nós. Que mais? Os Dos Santos, uma banda latina psicadélica, algo cumbia, de Chicago… também vamos lançar o novo álbum deles por volta do Verão. E há os Irreversible Entanglements que estão a gravar novo disco… Se eles o terminarem rápido se calhar ainda o lançamos este ano. Há muito a acontecer: Anteloper também está com coisas novas, o projecto em duo da Jaimie Branch e do Jason Mazary. Eles estão a trabalhar com o Jeff Parker para o próximo álbum e está a soar incrível. Portanto, há muitas coisas em vista. Há muita música incrível a ser feita e neste momento os artistas precisam de apoio por isso tentaremos lançar tantas coisas quanto for possível.


*A segunda foto é da autoria de Andrea Falcone, a terceira é assinada por Fabrice Bourgelle.

pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos