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Ilustração: Riça
Publicado a: 11/12/2020

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #39: Yussef Dayes Trio / Dezron Douglas & Brandee Younger

Ilustração: Riça
Publicado a: 11/12/2020

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Yussef Dayes Trio] Welcome To The Hills / Ed. De autor

Com a companhia do baixista Rocco Palladino e do teclista Charlie Stacey, o baterista Yussef Dayes apresentou-se em Copenhaga em 2019, assinando aí o último concerto antes da pandemia ter atirado 2020 para um limbo. Percebe-se, escutando este Welcome To The Hills, que os nefastos efeitos do COVID-19 não se limitam ao plano económico: claro que os músicos, sobretudo estes que dependem de uma bem recheada agenda de concertos para sobreviverem, foram afectados pelo encerramento do circuito que lhes proporcionava o principal sustento, mas há um outro efeito que provavelmente ainda não terá sido plenamente considerado. Artistas como Yussef Dayes precisam do palco como o cientista necessita do laboratório, porque é com os concertos que levam a cabo as suas mais arrojadas experiências. Um ano sem esse tipo de espaço de experimentação significa um ano em que a música não avança, em que novas ideias não podem ser postas à prova.

“Houve algo especial nesta performance… a energia crua, o foco, a determinação e a liberdade para levarmos a nossa música para o próximo nível. Lançar esta gravação ao vivo parece mais certo do que nunca, como não houve espectáculos este ano… Quisemos dar, ao ouvinte, a oportunidade de participar e entrar na experiência ao vivo do Yussef Dayes Trio”, pode ler-se na descrição do vídeo deste Welcome To The Hills no YouTube. Ora se pensarmos que também Matthew Tavares e Leland Whitty, Kahil El’Zabar ou Angel Bat Dawid escolheram em tempos recentes lançar registos de palco que mostram, precisamente, o ponto criativo em que se encontravam em vésperas do confinamento geral, percebe-se que o que nos estão a revelar é o momento em que este fluxo criativo foi interrompido, certamente para que possamos ter uma referência para os escutarmos quando puderem retomar essa interminável demanda artística.

Rocco Palladino – e o apelido não permite confusões… — , é filho de Pino Palladino, baixista que nos últimos anos tem acompanhado D’Angelo ao vivo, mas que desde 1980 tocou com toda a gente, de Joan Armatrading a Gary Numan, de Phil Collins a Ryuichi Sakamoto e de Ofra Haza a Youssou N’Dour. Um absoluto gigante. Em palco, ao lado de Yussef Dayes, Rocco confirma de forma plena o adágio que nos diz que filho de peixe não se afoga quando é atirado à água, facto que ajuda a explicar que seja requisitado por gente como Alfa Mist e, pois claro, Dayes, que aliás fez questão de o ter ao lado nas sessões que deram origem ao álbum em que dividiu créditos com Tom Misch, What Kinda Music, lançado em Abril último. Charlie Stacey, por outro lado, já trabalhou com os Yakul, Phresoul ou Greg Foat, e demonstra aqui igualmente que é músico com endurance para aguentar todo o tipo de embates. Diga-se que tanto Palladino como Stacey, colocados perante o músculo e o nervo baterístico de Dayes, brilham com idêntica intensidade. Mas também não seria de esperar que um músico deste calibre fosse facilitar no recrutamento de aliados…

Este é um álbum de grooves, com “swing” de feição moderna, com cadências herdadas do lado mais boom bap do hip hop, que nos mostra os músicos a aproveitarem o palco para se estenderem nas explorações do tempo rítmico: “Gully Side” é disso um belíssimo exemplo, com Yussef Dayes a provocar constantemente os seus companheiros, levando Stacey a responder com chuva harmónica multicolor a partir dos seus diferentes teclados (piano eléctrico primeiro, sintetizador depois) e Palladino a deixar muito claro que sabe estar à altura do nome de família, com um solo pleno de detalhe e com uma sabedora inclinação melódica que nos diz que não está disposto a abdicar inteiramente da fantasia em detrimento do rigor que se pede à pontuação rítmica (como aliás perfeitamente clarificado no delicioso “Palladino Sauce”). O que os leva bastas vezes a acercarem-se dos terrenos mais “fusionistas” em que a segunda metade da década de 70 foi pródiga. Se, em 1977, Herbie Hancock se tivesse ligado à corrente quando gravou com Ron Carter e Tony Williams, talvez, a espaços pelo menos, o resultado não fosse assim tão diferente, se descontarmos o facto de que o homem do leme aqui não é um prodigioso pintor harmónico como o pianista americano, mas um inventivo propulsor rítmico. O que não significa que a velocidade seja sempre acentuada: este é um trio que sabe relaxar, pedir para que o técnico de luzes inunde o palco de tons vermelhos e desacelerar para tempos mais sexys, como acontece em “For My Ladies”, com o líder a recostar-se, carregando com o seu baixista um groove dolente que permite que Stacey brilhe com máxima intensidade, numa romântica deriva.

Um disco em trio, ainda por cima gravado ao vivo, expõe por vezes de forma mais crua o lado técnico e com músicos deste calibre é claro que há por aqui várias demonstrações de proficiência avançada, mas estes são igualmente artistas que entendem as maravilhas da repetição, que foram educados pelos loops do hip hop clássico e que sabem melhor do que ninguém que quando o groove entra “in the pocket” essa é a sua própria recompensa, uma atitude que nunca os deixa divergirem demasiado para o lado do “fogo de artificio” já que a fogueira mais “orgânica”, tal como aliás representada na capa, aquela que resulta simplesmente da elevação da temperatura rítmica, pode não encher os “olhos”, mas decerto aquece a alma. E os corpos, já agora.



[Dezron Douglas & Brandee Younger] Force Majeure / International Anthem

E se há quem faça questão de nos mostrar o que acontecia em frente do olhar público quando os palcos ainda eram espaço de regular invenção, existe igualmente quem levante o véu sobre a sua abordagem criativa ao confinamento. É o caso do contrabaixista Dezron Douglas e da harpista Brandee Younger que, em frente de um microfone, no seu apartamento de Harlem, em Nova Iorque, aproveitaram o isolamento para registar um álbum de poéticas reinvenções de matéria alheia dispersa por um vasto território, dos Stylistics a Kate Bush.

Douglas e Younger, como tantos outros músicos, mas especialmente os da sua área que dependem muito mais de um enérgico circuito de pequenos clubes para garantirem sustento do que propriamente de receitas de royalties provenientes de streaming ou de direitos obtidos através de publishing, viram-se desprovidos de datas nas suas agendas, forçados a isolarem-se no seu espaço privado e decidiram, perante essa inevitabilidade, transformar a sua vida numa espécie de statement, impondo-se a realização todas as sextas feiras de um livestream que lhes dava a oportunidade de mostrarem a sua criativa abordagem a matéria de origens muito diversas, explorando a sua natural e romântica cumplicidade, revelando até que não abdicavam de um fino sentido de humor face a uma situação algo desesperada, mantendo a ligação aos amigos que se reuniam em torno de ecrãs para os verem: “Hi Natasha”, escuta-se, mesmo a meio de um tema, Brandee a exclamar a dada altura, replicando certamente o mesmo impulso que leva um músico num pequeno clube a acenar a cabeça quando um amigo se senta na mesa em frente ao palco.

Brandee Younger é uma harpista de mão cheia, primeiro nome em que muita gente pensa quando os arranjos pedem um instrumento que tem história nobre no vasto território do jazz (e Dorotthy Ashby, Alice Coltrane ou Zeena Parkins chegam para representar um espectro que vai dos meandros mais soul aos mais espirituais e livres do género) e que por isso mesmo já marcou presença em sessões para gente tão diferente quanto Common, Ravi Coltrane, John Legend, Laura Mvula, Robert Glasper, Lakecia Benjamin, Joel Ross, Makaya McCraven ou, para citar apenas mais um par de exemplos, Moses Sumney e Kassa Overall. Por outro lado, Dezron Douglas também acumula séria experiência como sideman em projectos de Cyrus Chestnut, Louis Hayes, Enrico Rava, Makaya McCraven ou até Pharoah Sanders com quem se tem apresentado várias vezes ao vivo nos últimos anos. E isto, claro, para lá de liderar os seus próprios ensembles, em trio ou quarteto. Duas verdadeiras feras, portanto.

Juntos, neste Force Majeure (expressão empregue nas alíneas dos contratos standard para concertos ao vivo e que previne a possibilidade das salas cancelarem datas por motivos, lá está, de “força maior”, como, por exemplo, uma pandemia…), Brandee e Dezron recorrem aqui a toda essa pesada bagagem mas, ao mesmo tempo, e talvez paradoxalmente, convocam igualmente uma energia vibrante que é quase inocente na sua genuína entrega a temas da esfera mais pop de gente como os Jackson 5, Kate Bush, Sting, os Stylistics, mas também a matéria funda do jazz de Alice e John Coltrane, Pharoah Sanders… “The Creator Has a Master Plan” merece, aliás, uma das mais comoventes leituras neste trabalho, perfeito casamento dos dois instrumentos numa poética abordagem a um clássico maior do lado mais espiritual do jazz, com o contrabaixo de Douglas a revelar-se nobre, denso e fluído ao passo que a harpa de Younger espalha pó de estrelas pela composição, respondendo às subtis variações indicadas pelo seu companheiro. Essa capacidade de maravilhamento é, aliás, recurso permanente nestas peças, sem que alguma vez qualquer um dos músicos sugira sequer que as suas consideráveis capacidades técnicas sejam aplicadas de forma gratuita e escusada. Estes músicos só tocam, na verdade, o que a música escolhida pede. E isso não é tão fácil assim…

Nas detalhadas notas que acompanham este lançamento, a dupla explica como foi selecionando o reportório, como foi respondendo a apelos de amigos ou a importantes aniversários que sabiam estar próximos, aproveitando este projecto como uma oportunidade para estudarem e para, como explica Dezron, poderem ambos “entrar dentro” destas diferentes peças, como quem se procura familiarizar com os recantos de uma casa. Porque, este é também um transparente exercício cultural, uma tocante amostra de como diferentes comunidades lidam com a música, resgatando-a muitas vezes da condição de mero entretenimento para a apresentarem como parte das suas mais genuínas e profundas identidades. “A música negra”, explica Dezron Douglas, “não importa qual o género, é exactamente o que é – música criada por Músicos Negros com o simples e claro propósito de fazer vibrar as nossas frequências de compreensão e empatia, mas eu também entendo que a música pode ser uma vibração cultural e regional. Não tens que ser Negro para tocares música Negra, mas se andas aí a fazer dinheiro com a Cultura Negra e não tens qualquer empatia com as Pessoas e com a Cultura então és ainda mais parte do problema”.

E assim se entende, de forma directa e clara, como o simples acto de um casal de músicos negros, no Harlem de Nova Iorque, a lidarem criativamente com o confinamento, acaba por resultar num alinhamento das suas energias com uma luta mais vasta e funda, sintonizando-se de forma subtil com o movimento que nas ruas clamava #BlackLivesMatter, assumindo sempre uma honesta devoção religiosa no seu discurso e uma incondicional entrega à sua arte. Por isso mesmo, Force Majeure é, sob esse aspecto, um dos mais honestos, comoventes e apaixonantes registos do ano.

(O segundo disco está disponível na Jazz Messengers de Lisboa)

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