LP / CD / Digital

SAULT

Air

Forever Living Originals / 2022

Texto de Miguel Rocha

Publicado a: 30/05/2022

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Em 2020, ano marcado pela pandemia da COVID-19 e pelo movimento Black Lives Matter, o Rui Miguel Abreu afirmava, aqui no Rimas e Batidas, que os SAULT estavam a revelar-se um verdadeiro “case study”. 

O pretexto que justificava a reflexão por esse prisma era o lançamento daquele que era – até então – o quarto longa-duração do coletivo britânico, o magnífico Untitled (Rise), e tudo aquilo que tinham feito desde que tinham surgido no ano anterior (2019). 5, 7 e Untitled (Black Is) são também discos fascinantes, ecléticos, maravilhosos, em que nenhum segundo é desperdiçado (é obra que não haja um único momento desperdiçado ao longo de toda a discografia dos SAULT). É música que surge palpável, brotando do momento, mas com as lições bem estudadas dos maestros do jazz, do funk, da soul, do trip hop, do dub. Enfim, ouvir um disco de SAULT é ouvir pedaços de história a serem criados – canções pop para reflexão do presente e passado para tentar criar alguma esperança para o futuro. Mas já lá voltamos à ideia de esperança.

Agora, em 2022, a expressão “case study” aplicável aos SAULT ganha uma outra dimensão. Se o seu quinto disco, Nine (um álbum que esteve disponível por apenas 99 dias, mas que a Internet nos lembra, mais uma vez, que nada desaparece para sempre depois de ser lá colocado, não importando as intenções do artista), lançado no ano passado (2021), foi mais uma adição fantástica ao cânone eclético de faixas “pop” – que é como quem diz, música popular (negra, sempre negra aqui) – dos SAULT, o seu mais recente longa-duração, AIR – o sexto em três anos – é uma viragem total naquilo que o coletivo apresentou até ao momento. Longe estão os grooves intransigentes de uma “Miracles” ou de “Alcohol”, os refrões de canções como “Why Why Why Why Why” ou “Let Me Go” (faixas de 5) ou a crueza na poesia que se ouve em “Uncomfortable” e ao longo de todo Untitled (Rise), álbum escrito em resposta e como comentário urgente ao assassínio de George Floyd às mãos da brutalidade policial nos Estados Unidos da América. Em AIR, não existe nada disso. Não existem grooves tão acentuados, mal existem palavras cantadas ao longo do disco e refrões? Refrões, nem vê-los.. No seu lugar surge uma música clássica contemporânea, uma suite cinematográfica e orquestral por natureza, capaz de nos lembrar também do impacto que inovadores negros tiveram num estilo que, por deliberações do cânone, se associa (pelo menos no mundo ocidental – quem se lembra do vídeo de Adam Neely a questionar precisamente essas associações?), apenas ao universo europeu branco. 

Todavia, a mudança de estilo total dos SAULT não surge do nada. Apesar do grupo continuar a manter sobre si um manto de anonimidade, é geralmente acordado que o coletivo é liderado por Dean Josiah Cover (aka Inflo), eleito produtor do ano nos Brit Awards 2022, depois de um ano de 2021 em que produziu discos como Sometimes I Might Be Introvert, o segundo álbum de Little Simz, e Mother, também este o segundo disco de Cleo Sol (colaboradora habitual dos SAULT), e apresentou contribuições em 30, o mais recente trabalho discográfico de Adele. O trabalho desenvolvido por Cover em vários momentos destes três projetos apresenta muito da base sonora que é explorada, com mais cadência e afinco, ao longo de AIR

Nesse sentido, e apesar da mudança de estilo, AIR continua a carregar em si a identidade que caracteriza os SAULT: a celebração do indivíduo e do coletivo, através da história da música negra, enquanto olham para os problemas do presente – o racismo estrutural, a desigualdade, a injustiça – e tentam criar alguma esperança para que a mudança (talvez uma revolução) venha no futuro. A melhor prova disto em AIR é “Luos Higher”, canção que fecha o longa-duração, em que os ritmos africanos vão marcando aquela que é uma canção escrita em forma de homenagem ao povo Luo do Quénia e da Tanzânia. Mas aquilo que AIR traz à mesa de diferente para os SAULT, fora a já mencionada mudança de sonoridade, é também uma espiritualidade que, apesar de ter estado sempre presente na música do coletivo, surge muito mais evidente ao longo deste disco. 

A espiritualidade em AIR não aparece só de forma semelhante na medida em que é comunicada pela música de uma Alice Coltrane– bem presente em “Heart” – um Sun Ra ou, mais recentemente, um Kamasi Washington, mas também pela ligação que aparenta apresentar à natureza. Não é à toa que a capa alternativa de AIR seja de uma pessoa (ou uma entidade?) a vislumbrar a nossa “casa” e que várias das canções de AIR apontem para conceitos elementares: “Reality”, “Solar”, “Heart”. De certa forma, é como se AIR fosse uma ópera sobre a nossa própria existência e sobrevivência futura – de como podemos coexistir, daqui para a frente, com um planeta e uma mãe-natureza que parecemos determinados a destruir (e não teremos ninguém para culpar excepto nós próprios na altura de ajustar contas). Um wake-up call mui-necessário, diga-se. Dessa maneira, os arranjos de algumas faixas de AIR relembram a importância e beleza (imensa e eterna) da mãe-natureza: os coros floreais de “June 55”, a sensação flutuante e orgânica da faixa-título do álbum (que puxa à cabeça as composições de Joe Hisaishi para os filmes do Studio Ghibli) e a viagem cósmica de “Solar”, que, nos seus quase 13 minutos de extensão, é a composição mais arrojada e grandiosa que os SAULT já apresentaram até ao momento. Num segundo, “Solar” está próxima do minimalismo de um Philip Glass e, nos momentos seguintes, podemos encontrar algo que se assemelha às explorações de jazz espiritual de um John Coltrane e a uma banda sonora há muito tempo perdida (de um sci-fi épico) composta por um John Williams. “Solar” tem tanto de esperançosa e triunfante como de emocionalmente devastadora, e o balançar entre estes dois moods é um truque que os SAULT alcançam com máxima eficiência uma e outra vez ao longo de AIR.

Contudo, se “Solar” é o epicentro musical de AIR, diria que a peça fulcral para tentar entender o sexto disco dos SAULT é “Time is Precious”, a quinta faixa do longa-duração. O tema, tal como outros momentos ao longo de AIR, é jogada no universo eclético entre um minimalismo cósmico e orquestras que soam megalómanas, mas eventualmente irrompe naquele que é o momento mais próximo da sonoridade que commumente associamos aos SAULT. Um conjunto de vozes vai repetindo as seguintes estrofes em forma de mantra:

“Don’t waste time ’cause time is precious
It’s your only time you’ve got here
Life will always bring it’s pressures
Use it wise and keep those treasures

Don’t waste time ‘cause time is precious
It’s your only time you’ve got here
Life will always bring it’s pressures
Use it wise and keep those treasures”

A mensagem encapsulada nos cantarolares de “Time is Precious” (que, como cada mensagem, será inteiramente subjectiva ao ouvinte o que significa) carrega a esperança que abunda ao longo de AIR. Se este até pode ser o disco menos imediato dos SAULT a nível de sonoridade, é também aquele que usa mais o sentimento e o coração na manga, elevando-se a si mesmo aos céus que a sua música parece invocar. Se em 2021, sobre Nine, o João Mineiro escrevia, tendo por base os trabalhos sobre a ideia de política de Hannah Arendt, que a música dos SAULT é a “verdadeira operária do milagre e da mudança que está a chegar sempre que a construímos”, em AIR a ideia que fica no ar com cada audição do disco é a mesma que se concluía sobre Nine (e que quase se pode concluir sobre grande parte das obras dos SAULT até agora), mas com uma camada extra: a urgência de um milagre é ainda maior em AIR e a música utilizada para o pedir soa mais grandiosa e bela que aquela que a precedeu. 

Se AIR nos alimenta a esperança de que pode haver um milagre para existir mudança, também nos relembra que esta só pode vir através do gesto colectivo que a pode construir. E nisso os SAULT são exímios. O repertório que continuam a construir entra cada vez mais num nível a que poucos conseguem chegar e se AIR é um rejuvenescer criativo (e, quiçá, espiritual) para o colectivo só podemos ficar excitados para ver o que vem a seguir. Até lá, a nossa função é a seguinte: ouvir, escutar e tentar fazer cumprir milagres humanos que parecem tão longe de alcançar. Não desistamos.


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