Depois de lançado o seu mais recente trabalho The Inflationary Epoch em Outubro, e por muitos considerados o disco de estreia (embora não o seja), Rita Silva aglomera no seu portfólio musical trabalhos e experiências que têm vindo a narrar a sua própria perspectiva daquilo que é a expansão do Universo através do sintetizador modular. Por entre rumos decisivos e travessias académicas até à Holanda, onde reside de momento para estudar no Instituto de Sonologia, a produtora ultrapassou todas as expectativas que a perseguiram durante um período de incerteza. Chegada a um lugar preenchido de arte e com decisões a tomar, a artista tem-se vindo a firmar cada vez mais dentro do universo da electrónica, e é essencialmente sobre ele que falamos.
Há uns dias li uma entrevista em que explicas que Inflationary Epoch é o nome de uma teoria que descreve como o Universo se expandiu exponencialmente durante os primeiros tempos. Comparas este álbum a esses primeiros tempos, ao meio, ao fim, ou só a uma dessas partes?
Eu acho que o incluía no início, de facto. Pelo menos para mim, a forma como eu comecei a tocar e a estudar música foi muito recente, foi fruto do COVID, [o que é] engraçado. A partir daí foi tudo tão rápido que às vezes até é um bocado chato falar com outros colegas da área que se calhar já estão nela há muito tempo, mas que me contam que ser músico é um processo muito lento, ou seja, compor, editar um disco, começar a tocar ao vivo. E eu sinto que no último ano, quando comecei a tocar concertos a solo como Rita Silva, houve um crescimento exponencial porque fui conhecendo imensa gente – o colectivo Casa Amarela, o Bruno e a Mafalda, que me convidaram para fazer concertos com o colectivo, ir à Madeira dar um workshop de synth… Foi tudo tão rápido, e ainda a questão de ter vindo para Holanda, que aconteceu há poucos meses.
Considerando o Inflationary Epoch o princípio da tua expansão artística, que impacto está o facto de, ao mesmo tempo, estares em Haia, no Instituto de Sonologia, a estudar?
Um impacto brutal, isto é um sonho. O Instituto de Sonologia é um marco histórico no mundo da música electrónica, é muito conceituada no meio. Acontecem workshops que constroem um meio incrível para trabalhar e fazer colaborações. O meu professor, o Rui Dias, é que me falou nesta escola e desde esse momento fiz tudo para conseguir entrar aqui em Erasmus. Tudo isto tem tido um impacto brutal, é uma inspiração incrível para quem está no meio electrónico e desta veia académica — estou num epicentro da cultura electrónica.
Onde começou a tua vontade de fazer música? Antes de Castelo Branco, durante a pandemia? Quando nasce este impulso criativo?
Desde criança, desde que me lembro, sempre gostei de música. É aquela história mais comum de ser adolescente e tocar guitarra, ter uma banda de rock ou de covers, tocar na escola, fazer uns ensaios numa garagem duvidosa… Passei por isso. Mas acho que não havia uma compromisso tão grande [como o] que tenho agora, e eu não sabia muito bem o que queria fazer com a música. Eu sabia que não queria ser guitarrista, para mim foi sempre ponto assente. Não sou nada técnica com guitarras, nem costumo dizer que toco guitarra, mas acho que a vontade da música electrónica surgiu há coisa de 10 anos quando conheci o gnration. Eu estava a morar em Braga na altura, em 2013, e foi o gnration que me proporcionou os primeiros concertos de electrónica, mais dentro da cena experimental. Lembro-me que estava a trabalhar e foi quando descobri coisas como Tim Hecker, Autechre, estive alguns tempos colada em Brian Eno e, eventualmente, fui parar a Suzanne Ciani. Isto eram tudo nomes que estavam sempre relacionados com Braga, gnration, Semibreve. Então, comecei a criar um bichinho, e pensei o quanto adorava colocar as mãos num Buchla, mas para mim era impossível por ser super caro. Então foi ficando numa gaveta, escondido, até que inicialmente fui estudar cinema de animação e fui para o meio do Alentejo. Durante a pandemia, enquanto estava neste curso, estava super deprimida sem saber o que fazer à minha vida, só queria ter os meus sintetizadores e as minhas guitarras e compor a minha música. Acho que foi o melhor do COVID, a pandemia obrigou-me a estar em casa isolada do mundo e fez-me perceber o que queria na realidade. Uma pessoa começa a pensar na vida… 2020 foi um ano super radical porque percebi que não estava a fazer nada em cinema de animação, que a minha cena é música e tinha que aceitar isso e tentar fazer algo com isso. Já sabia que era música electrónica e experimental, daquilo que vinha de Braga.
Há sempre desafios na aprendizagem no que diz respeito à produção digital ou analógica e à engenharia do som, ou mesmo dos sintetizadores modulares. E, não tendo nenhum background nesta parte da matéria, não foi estranho teres-te introduzido do nada a estes temas? Sentiste que foi fácil?
Por incrível que pareça, eu senti que foi super natural. Logo no primeiro ano de licenciatura, em Castelo Branco, eu não tinha material. Então, começou tudo com a ESART, que tinha um sistema modular, um semi-modular, e eu passava lá os meus tempos. E quando não tinha aulas, arranjava sempre forma de reservar os materiais para mim — e isto foi mal entrei. Naquela altura passava imenso tempo naquelas salas sozinha a descobrir como aquilo funcionava. Depois, as aulas dão-te esse tipo de conhecimento, e o resto é vontade da pessoa em aprender, ler livros, ver vídeos que ajudam imenso na aprendizagem. Também existem alguns softwares, como é o caso do VCV Rack, que costumo referir por ser gratuito e simula o comportamento e funcionamento de um sintetizador modular. Eu passei o meu primeiro ano, quando ainda não tinha dinheiro para investir em hardware de sintetizadores, fosse férias ou fim-de-semana, em casa de volta desses softwares e de livros para aprender. Até que, eventualmente, comprei o meu primeiro case, portátil, com o essencial mesmo, e a partir daí foi escrever, gravar, escrever, gravar. Foi quando as coisas começam a crescer.
No entanto, também mencionas o teu trabalho como fruto da improvisação e, na margem da imprevisibilidade, como é que separas isso de toda a narrativa ponderada e reflexiva do The Inflationary Epoch? Senti que este álbum tinha um princípio-meio-fim e, desta perspectiva, como é que organizas a apresentação do teu trabalho?
O The Inflationary Epoch foi gravado, uma boa parte do disco, em one take. Sem edições, não há cortes nem nada. O que está gravado é o que está lá. E gravei MIDI também, já a ponderar que se gostasse, era importante ter um MIDI daquilo para eu saber o que fiz e saiu dessa improvisação. O que eu costumo fazer, para tocar ao vivo, é pegar nessas faixas MIDI e fazer pequenas edições, criar alguns loops. Eu tento ter algum controlo, para não correr o risco de chegar ao vivo e as pessoas sentirem que não estão a ouvir o meu disco. Houve uma espécie de compromisso de minha parte em que há alguns parâmetros que são improvisados, de facto, mas há algum controlo principalmente na estrutura das minhas músicas e na forma como elas funcionam a nível melódico que eu estou a tentar manter nos concertos. Talvez já não esteja a ser tão improvisado como era há uns meses, em que tocava só com o patch preparado, sem saber muito bem o que ia tocar. Começava sempre com um pace mais lento e a partir daí ia desenvolvendo, E quando acabo, tento reduzir elementos. Apesar das minhas peças serem minimalistas em termos melódicos, conseguem ser muito maximalistas no sentido em que há tanta coisa a acontecer ao mesmo tempo e que acaba por ser o oposto. A questão do minimalismo é bastante profunda — filosofia do som, reverberação dos corpos e a sua recepção do som. Isto tem margem para uma dimensão espiritual bastante densa que ultrapassa o minimalismo. Por isso tecnicamente sim, ele existe. Mas e o resto? Toda a dimensão que os padrões e os sintetizadores alcançam são de uma complexidade profunda. E percebo que a beleza da improvisação em palco também seja essa…
Falaste nos artistas que mudaram a tua vida, e em algumas entrevistas que já deste acabas por mencionar algumas mulheres que mudaram a música electrónica. Quem são as tuas maiores referências? Costumas mencionar a Laurie Spiegel, pelo que te pergunto se a considerarias uma delas.
Spiegel é, para mim, a maior referência de electrónica que existe. Não interessa se é mulher ou se é homem. Ela é incrível. E há um fenómeno engraçado com ela que é o facto de a história a ocultar muito, ou seja, não conheço muita gente fora deste meio académico que conheça Laurie Spiegel. E ela vem do mesmo tempo que Suzanne Ciani e Delia Derbyshire, a questão é que ela era uma pessoa mesmo muito académica, era uma cientista, programadora. Trabalhou com o Max Mathews na altura dos Bell Labs e criou um disco em 1980, quando editou o Expanding Universe, feito maioritariamente com peças que utilizavam composição algorítmica (ou seja, ela fazia o código) — e aquilo é super melódico. Se eu não te dissesse que era composição algorítmica, tu ias associá-la a outras artistas, porque há semelhanças. Acredito que a Caterina Barbieri, por exemplo, te diga que a Laurie Spiegel inspire, dado o tipo de materiais que ela usou e na altura em que ela utilizou, o que é fantástico. Esta mulher é qualquer coisa, que é, e ainda está viva. Ela trabalhou com o próprio Buchla, teve algum tempo a trabalhar com outros modulares, trabalhou com alguns dos nomes mais sonantes da música electrónica, foi pioneira. Spiegel tem uma música a pairar no espaço: quando a Nasa chamou-a para escrever uma música que fosse para o Voyager (uma nave lançada para o espaço com registos musicais de várias épocas), ela foi a escolhida para a música electrónica. Portanto, é assim! Não há ninguém como ela e tenho um respeito tremendo pela Laurie Spiegel. Eu ouço os discos dela praticamente todos os dias e quase que já sei cada peça de cor. O The Inflationary Epoch é sobre um período de expansão e, sobre a temática do universo, meio que foi emprestado para uma ode ao trabalho dela.
Começaste por dizer que não interessava se ela é homem ou mulher, para o facto de ser uma referência para ti. Mas achas que não há coincidência para o universo da música contemplativa ser uma das áreas/géneros da música onde há mais mulheres artistas?
Não sei se é coincidência. Não sei números ao certo. Mas derivado de toda a história, de tudo aquilo que as mulheres passaram, acho que há uma certa sensibilidade e uma certa reflexão que nós fazemos muitas vezes e que eu faço no meu processo, que é “eu faço música e sou mulher, tenho sorte” — há muitas que querem fazer música e não podem. E é por isso que gosto de referenciar estas mulheres, porque gostava que houvesse mais unanimidade na quantidade de homens e mulheres a fazer música e gostava que as mulheres tivessem o destaque merecido. Posso afirmar que não têm porque tenho aulas de História da Música Electrónica, e sei que nas minhas aulas não vou ouvir falar da maior parte delas.
Foste tu que procuraste sozinha estas referências?
Eu sou bastante curiosa por natureza e gosto de História. A partir do momento em que comecei a estudar electrónica fui à procura do que havia. Algumas artistas que não conhecia cheguei lá por causa de um documentário chamado Sisters with Transistors, que é sobre a história da música electrónica no feminino e que é incrível. Mas, sim, o meio em si ajudou-me a descobrir mais artistas, apesar de muitas ficarem sempre escondidas. Aqui não sinto tanto isso, no Instituto de Sonologia, mas em Portugal senti bastante.
É preciso continuar a lutar contra isto. E relativamente à tua estadia na Holanda, como é ser artista num país que não aquele onde passaste a maior parte da tua vida?
É mais difícil, não vou mentir. Até porque vim para um país onde esta cena experimental está muito mais avançada do que em Portugal. Tens muitos mais espaços e muitas mais coisas a acontecer, e nem todos os artistas são holandeses. Ou seja, como eu estou cá, conheço portugueses que estão cá, e tem gente de todo o mundo. A competição acaba por ser absurda. Eu tive a sorte de conseguir dois concertos cá na Holanda, e estou a tentar mais para 2023, mas não é fácil. Em Portugal, apesar de tudo, temos um nicho e circuito porreiro onde podes conhecer mais facilmente as pessoas e surgirem oportunidades para tocar. Por outro lado, aqui já tive a oportunidade de ver artistas incríveis. Adoro consumir arte porque sei que isso me vai dar vontade de criar mais, e aqui também estás rodeado de pessoas da área com quem trocas experiências. Mesmo que não seja fácil, há aquela sensação de querer perceber como é que tudo funciona e as coisas proporcionam-se. Tenho saudades de Portugal, não vou mentir, e acho incrível estar a acontecer cada vez mais coisas a este nível — está a haver um crescimento. Festivais como o Semibreve e o Mucho Flow, ou o Space Festival, já aconteciam, mas agora está a haver um crescer que justifica o haver mais espaços em Portugal, associações e colectivos. É importante investir nos artistas nacionais, e tem que haver mais equilíbrio em dar mais oportunidades aos artistas mais pequenos face aqueles que já são grandes — se calhar para eles receber menos 100 euros não é uma catástrofe, enquanto para um artista que está a começar esse dinheiro é mesmo importante. Estas diferenças são o que me chateia mais neste meio, a parte sobre como isto funciona, o facto de ser um negócio, e sobre como às vezes não sabemos como dar o primeiro passo.