Pontos-de-Vista

Eduardo Morais

Twitter

pub

As irmãs reunidas.

Sisters With Transistors: a irmandade na luta pela visibilidade na composição electrónica

A cronologia musical que conhecemos hoje não é totalmente fiel à verdade. Nas últimas décadas, o mercado da memória, através de reedições ou documentários, tem trazido à superfície novas leituras sobre como alguns movimentos realmente (ou parcialmente) aconteceram.

Como documentarista musical, sempre pretendi entregar ao público um filme em forma de livro aberto, no sentido em que, se a partir de uma fala um(a) espectador(a) for pesquisar mais sobre o assunto, o meu objectivo foi cumprido. Há uns anos questionava-me muito se a história musical poderia ser reescrita, e até hoje ainda não sei responder com certezas.

Quanto mais consciência coloco no passado musical, mais me questiono o quanto as mulheres — assim como as minorias — foram geralmente apagadas da música ocidental. E entenda-se “minorias” não como em número ou quantidade, mas pelo acesso aos mesmos direitos que a maioria.

Olhando à distância, facilmente podemos afirmar hoje que os homens dominavam (e dominam…) a indústria discográfica: das rádios às editoras, das salas às promotoras de espectáculos.

O contornar dessa via foi possível às mulheres presentes no documentário Sisters With Transistors a partir da electrónica, pois apresentavam-se por outros meios que não os convencionais, como videojogos, exposições, programas de televisão ou artes performativas. E foram esses os caminhos que lhes deram a liberdade de chegar ao público que queriam — show business tradicional “rejeitava as mulheres que não cantavam”, como diz Suzanne Ciani no documentário.

O arquivo do documentário Sisters With Transistors torna-o numa peça única e necessária nos dias de hoje para a compreensão da música electrónica do ontem, estruturalmente apresentada de forma cronológica saltando de compositora em compositora com o devido contexto social de cada: ver imagens caseiras e recuperadas de apresentações na década de 30 daquele instrumento que quem o tem não lhe toca há anos e mesmo assim não o vende — o theremin por Clara Rockmore; as peças sonoras de Daphne Oran com aquela característica voz hipnótica, editadas com as movimentações urbanas inglesas; ou as animações visuais que, deslocadas do seu contexto original, fazem de uma edição destas um processo semelhante ao do sampling com uma dinâmica perfeita para um filme de 90 minutos.

É explicada ainda como a sonorização da energia eléctrica do pós-guerra despertou um sem fim de novas possibilidades sonoras, como na vontade de Delia Derbyshire em criar sons que não existiam antes teve como inspiração bizarra os bombardeamentos alemães ao Reino Unido, que a compositora ainda na infância ouvia pela rua sem entender de onde vinham.

As fórmulas únicas de criar sons de cada uma das pioneiras são agradavelmente ilustradas ao longo de todo o filme questionando sempre o descrédito na composição e autoria que as mesmas sofriam.

Esse descrédito torna-se difícil de engolir quando Éliane Radigue refere que era caracterizada pelos homens de “positivo para o estúdio” porque melhorava o aroma da sala, mas é apoiado na luta feminista de Pauline Oliveros quando escreve sobre a necessidade de eliminar o termo “mulheres” compositoras (NOTA: na língua inglesa “composers” aplica-se a qualquer género).

Já bastante — e ainda bem! — foi escrito e falado nos últimos anos sobre o papel da mulher no pioneirismo electrónico ao olhar mais atento. Quero acreditar que uma certa honra está a ser devolvida às compositoras menosprezadas, sem deixar de me perguntar se este reconhecimento, a ser atempado, teria evitado o fim de vida destrutivo de Delia Derbyshire ou a reclusão eremita de Wendy Carlos.

Disponível para ser alugado no Vimeo, Sisters with Transistors é um filme obrigatório para que a função “composer” deixe de ser recorrentemente associada a — e parafraseando Laura Spiegel  — “homens brancos que já faleceram”. A música electrónica tem cada vez mais documentos que solidificam a revolução feminina na sua cronologia, e cabe-nos a nós, homens, a tarefa mínima de compreender que se tratou e trata de uma luta com muitos mais obstáculos que a masculina.


pub

Últimos da categoria: Pontos-de-Vista

RBTV

Últimos artigos