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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 12/10/2023

A recriação do clássico Charlie Parker With Strings.

Ricardo Toscano na Culturgest: a eternidade soa melhor com cordas

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 12/10/2023

Quantas mortes já teve o jazz? Morreu quando saiu de Nova Orleães e se espalhou pelo mundo? Ou terá sido quando se reduziu à escala da Minton’s Playhouse? Talvez tenha falecido quando reclamou liberdade e entrou pelo cosmos dentro… Ou, se calhar, não resistiu ao choque quando se ligou à corrente e se fundiu com outros mundos. Terá perecido naquele dia frio de finais de Novembro de 1949 quando o alto de Charlie Parker encontrou a moldura perfeita nas cordas arranjadas e dirigidas por Jimmy Carroll? Se tivesse morrido nesse dia, teria, certamente, ido direito ao céu, já que celestial foi a música que daí resultou. Ontem, esse paraíso voltou a materializar-se no palco da jovem Culturgest, que resolveu festejar o seu 30º aniversário convidando Ricardo Toscano — que nasceu no mesmo ano que esta instituição — para recriar o clássico Charlie Parker With Strings.

No palco posicionaram-se, sob a direcção do maestro Pedro Moreira, 18 elementos da Orquestra de Câmara Portuguesa: David Costa (oboé), César Luís (trompa), Salomé Pais Matos (harpa), Vasken Fermanian, Xavier Pereira, Sofia Ruivo, Sofia Leong, Amélia Pack (violinos 1), Witold Dziuba, Maria Francisca Azevedo, Cristiana Herculano, Joana Mendonça (violinos 2), João Álvares Abreu, João Diogo Santos, Sara Ramalho (violas), Kirill Kalmykov, Tiago Azevedo e Silva (violoncelos) e Raquel Leite (contrabaixo). Um pouco mais recuados e ao centro encontravam-se o pianista João Pedro Coelho, o saxofonista Ricardo Toscano, o contrabaixista Romeu Tristão e o baterista João Pereira. Um coro de mãos e braços, muitos pulmões e pelo menos 4 pés.

Uma nota de apreço pela luz “invisível”, de bom gosto e nada intrusiva, com pequenos e muito deliciosos pormenores — como quando se projectou no fundo do palco uma sugestão do skyline de Manhattan —, e também pelo som límpido que ofereceu perfeito recorte ao tom já reconhecível de Toscano e definição clara ao restante quarteto e diferentes secções da orquestra. Aplauso ainda para a projecção dos títulos e autorias das diferentes peças do reportório interpretado à medida que o programa da noite se ia desenrolando.

Começou-se com “They Can’t Take That Away From Me” dos Gershwins e foi-se por ali fora até “What is This Thing Called Love” de Cole Porter, já com a fonte luminosa do claustro interior do edifício da Caixa Geral de Depósitos tornada visível com a abertura dos panos do palco que revelaram a imensa parede de vidro que lhe serve de fundo. O relógio, no final, sugeria que já não faltavam muitos minutos para as 11 da noite, o que deveria, quase de certeza, ser engano já que apenas um instante parecia ter passado desde que, ainda sem acompanhamento, Toscano se mostrou tão disponível para dançar com as notas que se soltavam do seu saxofone como Fred Astaire, que bailou igualmente solitário no deck do ferry que o levava através do nevoeiro de Nova Jérsia para Manhattan no filme clássico de 1937 Shall We Dance, momento em que “They Can’t Take That Away From Me” se escutou pela primeira vez. E depois, maravilhamento.

“East of The Sun (and West of the Moon)” (Brooks Bowman), “I’m in the Mood For Love” (Jimmy McHugh e Dorothy Fields), “Easy to Love” (Cole Porter), “Summertime” (Gershwins), “Just Friends” (J. Klenner e Sam M. Lewis), “Stardust” (Hoagy Carmichael), “Rocker” (Gerry Mulligan), “Everything Happens to Me” (Tom Adair e Matt Dennis), “Repetition” (Neal Hefti), “Laura” (David Raksin e Johnny Mercer), “Ezz-Thetic” (George Russel), “Embraceable You” (Gershwin) foram os standards escutados de permeio, com orquestra, maestro e quarteto em perfeita sintonia e mostrando-se perfeitamente capazes de transportar a muito atenta plateia para a era clássica de Hollywood e da Broadway, um tempo em que as canções se erguiam como autênticas catedrais feitas de nuance romântica, harmonias celestiais e melodias memoráveis. 

Pedro Moreira dirigiu o colectivo com requintada elegância, colocando ao serviço da música o seu entendimento natural do tempo, do swing, das delicadas curvaturas das melodias. Explicou, quando se dirigiu em tom bem-humorado ao público, que conhece bem a obra de Charlie Parker e confessou aos presentes que a noite tinha um sabor especial para si já que há precisamente 30 anos por ali se apresentou, na aberura daquela sala, com a orquestra do Hot Club de Portugal.

Houve muitos momentos mágicos: Ricardo Toscano não resistiu e soltou uns tímidos passos de dança em “East of the Sun”, tão empolgado estava com o que escutava, enquanto sorria como uma criança numa loja de doces. João Pedro Coelho brilhou várias vezes com solos armados como peças de relojoaria, complexos, mas capazes de se mover com o tempo desejado. A orquestra mostrou ser um único instrumento em “Repetition”, respondendo ao ritmicamente complexo arranjo com destreza absoluta, com João Pereira a funcionar como bem oleada locomotiva, como aquelas desenhadas por Raymond Loewy.

Ricardo Toscano, por seu lado, cumpriu com excelência o que dele se esperava, espraiando-se em solos reverentes ao tom das peças e do contexto, mas com detalhes que espelham a sua inventiva personalidade: em “Summertime”, por exemplo, meteu a alma toda em jogo, mas não deixou que nos esquecêssemos que nasceu em 1993 em Portugal e não em 1920 em Kansas City — ele é, definitivamente, um artista deste tempo presente, mas dotado de um olhar telescópico que lhe permite alcançar e compreender um tempo e um lugar muito diferentes. É dessas capacidades que se faz o génio.

A meio do espectáculo, houve tempo para os focos apontados aos membros da orquestra se apagarem deixando apenas o quarteto iluminado para a interpretação de “Gipsy” (Billy Reid) e “Cherokee” (Ray Noble). No primeiro tema, Romeu Tristão evidenciou-se com um belíssimo solo de fluência clássica que lhe permitiu exibir o tom amadeirado do seu instrumento. E depois, na fabulosa “Cherokee”, escutou-se um diálogo de eloquência impressionante entre João Pereira e Ricardo Toscano. Como explicou o saxofonista quando falou a meio do concerto, estes são músicos que se conhecem há muito, que já tocaram tanto em conjunto que se entendem de forma natural e telepática, uma qualidade ou capacidade ontem colocada em perfeita evidência, com o quarteto a soar coeso e solto ao mesmo tempo. E ali, reduzidos a duo, os dois companheiros encaixaram-se de forma perfeita, com o piano de Coelho a juntar-se-lhes depois para mais um momento de fulgor de cortar a respiração. Se a orquestra ontem se ergueu como arranha-céus, o quarteto foi aquele remate de classe, como o topo do Chrysler Building, cromado e reluzente e de linhas absolutamente perfeitas.

O jazz já morreu muitas vezes? Certamente. Morre sempre que a canção termina, mas renasce logo depois quando a orquestra volta a soar, quando o solista volta a inventar paraísos no momento, quando carregamos no play. A eternidade não se explica. Mas escuta-se. Nesta música de sopros e cordas, de brisas e melodias, por exemplo.


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