pub

Fotografia: João Descalço
Publicado a: 03/04/2024

Um retrato sonoro.

Ricardo Martins sobre Distraimento: “Não há nada gravado, é tudo na hora”

Fotografia: João Descalço
Publicado a: 03/04/2024

Quando a perícia é muita, até os actos mais inconscientes vêm dotados de grande inventividade. O Distraimento de Ricardo Martins gerou uma nova entrada na discografia do incansável baterista e consiste em 7 faixas pautadas por uma elevada dose de experimentação, onde bombo, tarola e pratos se fundem com um modular, voz e uma série de efeitos. O rock que pulsa das veias deste músico foi colhido para ensaio laboratorial nos Arda Recorders e o resultado das análises acusa devaneios electrónicos num projecto com rótulo da Revolve.

Militante de várias bandas de vanguarda na cena nacional — de Fumo Ninja e Papaya a ALGUMACENA ou Sangue Suor —, Ricardo Martins trouxe uma nova proposta de material a solo com este Distraimento e prepara-se agora para uma série de datas onde irá apresentar ao vivo esse trabalho, sendo que a única já confirmada é a de 13 de Abril, no CAE em Portalegre. Ao longo dos próximos meses, em salas ainda por revelar, o fundador da plataforma multidisciplinar Desisto deverá passar também por Lisboa, Guimarães ou Barreiro. Por outro lado, tem garantidos outros concertos: com Pop Dell’Arte (27 de Abril em Corroios), Sangue Suor (3 de Maio em Viseu), Tormenta (4 de Maio em Lisboa) e ALGUMACENA (18 de Maio em São Teotónio).

A propósito deste seu mais recente lançamento, agendámos uma chamada via Zoom para conversar com o imaginativo baterista e também designer Ricardo Martins, que além de um disco a solo esteve ainda ao lado de João Almeida em Chromelech, eles que juntos assinam como DERIVA.



Quero começar por falar neste teu Distraimento. Este não é o teu primeiro trabalho a solo, pois não?

Não. Já é o quinto lançamento. Há outros lançamentos mais pequenos, de 15/20 minutos. O primeiro saiu em 12”, foi o Furacão, que saiu por uma editora inglesa, a JEFF. A partir daí, saiu tudo pela Revolve, já digital, nesta coisa que eu tenho feito do disco sair sempre em vídeo e em áudio. Acho que, para este, corre por aí um boato de que vou voltar ao vinil [risos]. Vamos ver. Estou a trabalhar para isso.

Nesse âmbito da tua obra a solo, como é que tu integras esse Distraimento? É uma continuação de experiências anteriores ou estás a explorar novo território?

Acho que sempre que fazes uma coisa nova, acabam por surgir novos gestos. Quando comecei isto, era muito mais dentro de uma onda de loop, muito fechada — loop em cima de loop, numa construção de camada sobre camada. O que eu senti muito, depois, foi a passagem disso para concerto, em que nunca ia numa direcção onde me sentia completamente à vontade ou porque não conseguia chegar àquilo que eu imaginava na minha cabeça. Ouvia as gravações e havia sempre uma quantidade de coisas técnicas que eu queria mudar. Com o tempo, quando comecei a brincar com modulares, a usá-los para processar som em tempo real… Não há nada gravado, é tudo na hora. A partir daí foi continuar a usar os modulares e os sensores, para que as músicas sejam todas esses takes que têm aparecido nos vídeos. Basicamente, tudo o que vês no vídeo foi aquilo que eu gravei e que vai estar em concerto. Em relação às coisas novas, quando surgiu esta coisa toda de eu começar a pôr voz sintetizada — nunca é uma voz completamente crua, está sempre a passar por um synth —, esse foi um ingrediente super importante. E há muitos momentos neste disco em que eu estou mais a cantar do que a tocar bateria. Ou estou mais a processar som do que propriamente a tocar bateria. Agora, as coisas têm um equilíbrio que me interessa e mais dentro daquilo que eu andava à procura.

Isso vem do facto de, como praticamente todos os seres humanos, seres dotado apenas de dois braços e duas pernas? Precisavas de mais uma fonte sonora e, de repente, lembraste-te de que podes fazer outro tipo de ruídos com a garganta? [Risos] É um bocado por aí?

Não sei [risos]. As primeiras coisas que eu fiz a solo são, na verdade, muito antigas, de 2009, ainda com pedais de guitarra e não sei o quê. Isso já tinha voz. Acho que a voz foi um bocadinho aquilo do eu não tocar propriamente coisas com cordas ou por não poder ter um teclado ao meu lado. A voz acaba por compensar um bocadinho uma série de coisas que eu queria explorar. Acho que é só isso. Mas claro que ajuda: se eu tivesse mais dois braços, é claro que fazia mais coisas a nível rítmico. Mas também não sei se era isso que me interessava [risos]. Eu acho que ando a retirar coisas de bateria. Ando a retirar essa informação para outras coisas, que podem ser voz ou uma máquina que está a emitir som um bocadinho descontrolado — que funciona de acordo com uma série de parâmetros que eu lhe dou, mas que tem vida própria. Tenho gostado muito desse desafio. Há ainda duas coisas que surgiram neste disco, principalmente por causa da pessoa que o gravou, o Hugo Valverde. Depois de falarmos muito, houve ideias que ele trouxe para cima da mesa e que se tornaram essenciais. Como aquele microfone em pêndulo, que está suspenso e que eu atiro. Esse microfone tornou-se, assim, numa coisa bastante interessante, além de toda a componente física que pode trazer para estas músicas. A outra é uma pequena caixa que, nalgumas músicas, está em cima da tarola. Enquanto eu estou a clicar nessa caixa, ela está a abrir um sinal. Nesta gravação, abria a echo chamber dos Arda, um reverb natural, lindo, mesmo de um espaço físico. Agora, em concerto, abre um amplificador que tem lá uma série de coisas. Começaram por ser reverbs, mas agora já está aqui a surgir uma outra coisa que, se calhar, vai passar para um próximo disco ou assim [risos]. Agora tem distorções, pitch shifters e coisas assim do género.

As pessoas usam muito — e abusam — esta expressão da “música exploratória”. Mas esse termo parece-me realmente o mais adequado para esta tua música, no sentido em que, escutando o Distraimento, fica-se realmente com a sensação de que tu andas em busca de qualquer coisa. A minha pergunta é: quando estás no processo criativo e a registar esta música, os resultados aos quais vais chegando surpreendem-te a ti mesmo?

Há coisas que eu não fazia a mínima ideia de que iam acontecer. Na maior parte das vezes eu dou pouco tempo a mim próprio, porque eu acho que isso funciona melhor com a minha maneira de trabalhar. Muitas vezes acontece eu marcar estúdio sem ter rigorosamente nada. Isso aconteceu nos outros discos. Neste não, porque eu sabia que ia ser uma coisa gravada directamente para fita, ia ser misturado em fita, e isso gera todo um stress… [Risos] Então decidi ter muitas coisas já fechadas. Quando fui para estúdio, já tinha tudo fechado. Mas para as sessões de ensaio eu trouxe um ingrediente novo, que é o Reason — trouxe-o para dentro do Ableton Live, que é onde eu faço as coisas. Nesse momento aconteceram uma série de coisas diferentes a nível sonoro que nunca tinham acontecido, porque eu não usava aquilo. É um sabor novo que se juntou ali. Foi giro, porque foi completamente inesperado, e acho que o disco até ficou com um som assim, meio de lamentação, que às vezes soa quase meio metálico e que vem dessa experiência. Isso não acontecia antes e eu não estava à procura dessa forma, mas a partir do momento em que ouvi fez-me todo o sentido.

Disseste-me que foi gravado no Arda?

Foi gravado no Arda. Tivemos 3 dias para o processo todo. Primeiro foi a montagem. Depois, ao final do primeiro dia e início do segundo gravei dois takes de cada música, mais ou menos. Depois foi escolher os takes finais e apagar o resto da fita que nós não queremos. Foi lá misturado em fita e vim-me embora já com a mistura feita, a faltar apenas masterizar. Até brincávamos com isso — “O master depois resolve-se.” Mas ali já não havia mais nada para resolver.

Esse aspecto é realmente interessante, porque uma dimensão da música que se cria num ambiente digital é precisamente o facto de saber que se pode a qualquer momento acrescentar, apagar, voltar atrás, recuperar o que se apagou, etc.. O processo analógico é mais definitivo e obriga a um outro tipo de compromisso, não é?

É super fixe. Há uma música, por exemplo, em que tenho de dar um bombo quando começo, porque é o trigger para o que vai acontecer a nível de electrónica. Aconteceu logo uma coisa fixe, porque eu não queria ter esse bombo na música. Ou seja, na mistura teve de ser feito mute naquele segundo para esse bombo desaparecer. Eu achei isso super fixe. Ou a cena de fazer fade outs e fade ins. Às tantas estavam várias pessoas a fazer os fades ao mesmo tempo. Tudo o que eu tinha estado a gravar nos discos anteriores — passaram quase todos pelos Black Sheep Studios, o primeiro gravei com o Bernardo Barata — a maior parte dessas coisas já era finais. Tirando esse primeiro disco, aquilo era quase tudo final. O take que gravei foi o take que ficou, e como aquilo também está gravado em vídeo, não há truque nenhum. Se tem uma inconsistência, fica a inconsistência; se tem uma dúvida, fica uma dúvida. Mas aí havia uma coisa que era: eu posso agarrar nesse som, que é de uma certa forma, e depois posso fazer o shaping desse som durante muito tempo. Então era capaz de passar um dia inteiro a gravar, depois outro dia só a amplificar coisas, a torná-las todas mais graves, ou a passar por fitas, por delays e tudo o mais. Neste processo em particular para este disco, não houve nada disso. O que está gravado está gravado na fita. Eu ouço o disco e parece-me muito aquilo que eu já andava há procura há muito tempo. Vai-me ser difícil fazer diferente no próximo, gostaria sempre que esta simplicidade se mantivesse. Porque é uma foto, não é? Tiras uma foto ao disco. O disco foi gravado, tirou-se aquela foto e aquela foto é assim, não fomos a nenhum software pôr mais ou menos saturação. É assim que é e é assim que sai.

É, aliás, esse o significado da palavra record — é um registo. E uma fotografia é um registo.

Ya.

Tu, quando chegaste ao Arda para gravar o material, tinhas coisas já pré-compostas ou isto é resultado de um improviso no momento?

Já está tudo composto. A faixas estão fechadas. A única coisa nas minhas composições é que, mesmo quando estão fechadas, têm espaço para poder perder um pouco. Eu sei quais são as coisas principais, mas como é que eu vou chegar a elas nem sempre está definido. Foi, sensivelmente, um mês e meio muito intenso de ensaios para chegar a estas músicas. Existem 7 malhas e 3 interlúdios. Esses interlúdios foram todos feitos para uma peça de teatro e não foram usados — foram usadas outras coisas. Eu gostava muito deles, porque têm experimentações com trompetes digitais e coisas assim do género que eu queria usar. Foi literalmente fazer play e processar um bocadinho em tempo real — brincar um pouco com graves, agudos, um delay aqui e outro acolá e pouco mais. Mas as malhas que foram gravadas lá já estavam mesmo todas compostas com essa coisa de terem espaço para perder qualquer coisa.



Tu tens algum tipo de notação nessas composições? Usas algum tipo de pauta gráfica ou qualquer coisa desse género? Ou fixas as composições no ouvido através de gravações?

Eu fixo, mas depois há isto que te posso mostrar aqui em vídeo [mostra um caderno com várias anotações]. Basicamente isto diz-me como é que está cada módulo no meu modular. Diz-me o que é que eu preciso de cada modulozinho. Depois diz-me todo o caminho do som, de cada parte da música, para eu fazer sempre o mesmo caminho de som. Quando eu estou a tocar só tenho aqui umas anotações muito simples de estrutura, que me dizem, por exemplo: beat, improvisação, loopar a voz, recorrer a um módulo em particular, acrescentar esta parte ao módulo “X”, linkar, tocar mais lento… É assim uma coisa muito simples.

Mas não deixa de ser uma notação. É uma notação muito simples, mas que tu entendes para as tuas composições.

Sim. Eu estou a escrever para mim, por isso não fazia sentido ter uma notação assim, musical, para mim, porque conheço as músicas bem e não preciso propriamente disso. Como eu gravei todos os ensaios, também não havia aquela coisa de eu poder esquecer-me de algum ritmo. Eles foram todos gravados de várias formas. Há pouco tempo estava a ouvi-los e até fiquei naquela de… Há coisas que ficaram diferentes no disco e que eu adoro, mas que no ensaio estavam a ir por um caminho diferente, que é super válido e que eu, se calhar, até gostaria de ter gravado. Mas pronto, a certa altura perdeu-se esse caminho e encontrou-se outro. É basicamente isso.

Pelo que me contas, a resolução disto ao vivo, em concerto, será muito semelhante ao setup que tu tinhas no estúdio, é isso?

É igual. É a mesma coisa. É uma bateria muito minimal, com tarola, bombo e um timbalão — não uso timbalão de chão — e dois pratos — um ride sem copa e um hi-hat. Ao lado disso tenho o meu modular, o meu computador e o microfone. Isto tudo com o tal pêndulo e a tal caixa forma todos os ingredientes que eu preciso para o concerto. Pouco tempo depois de gravar fui dar um concerto a Bruxelas e já usei exactamente isto desta forma para tocar estas músicas. Ele soa igual. Não tenho a sorte de poder ter a echo chamber física dos Arda comigo, mas tenho outras coisas [risos].

Tens apresentações marcadas para cá?

Tenho uma série de concertos. Os concertos de apresentação está a Revolve agora a tratar. Eu ainda não tenho datas disso. E como estamos a tratar da questão do vinil, estamos a aguardar mais um bocadinho pelos prazos para poder fechar as coisas mais concretamente. Mas estão alguns concertos marcados e vou dar uma mini-volta por Espanha, em Abril também. Para já, são uma série de to be announced — há muitos. Já tenho uma concentração de TBAs ali na agenda [risos]. Mas eu acho que se vão transformar em concertos que vão acontecer.

Entretanto, queria falar contigo um pouco sobre este novo projecto que está a sair na Facada Records com o João Almeida. É uma gravação recente ou nem por isso?

É uma gravação do ano passado. Já tem alguns meses. Mas este resultado final que tu já ouviste ainda é muito novo para nos, porque foi acabado de misturar há pouco tempo. Aquilo é de uma série de ensaios que temos feito, em que chegamos ao Black Sheep e brincamos com uma série de máquinas de lá. É tudo improvisação em tempo real. Falamos um pouquinho antes de cada música, e se algo nos soa bem durante uma gravação, se calhar fazemos outro take da mesma. São, se não me engano, 8 músicas. Seriam 9, mas uma acabou por ficar de fora, achámos que não fazia parte do bolo. A nossa ideia foi partir para uma coisa mesmo de super-experimentação, agressiva [risos]. É a banda noise que quisemos fazer os dois. Estamos quase a tocar isto ao vivo, que também vai ser uma coisa muito fixe.

Explica-me o que é que eu estou a ouvir. O teu crédito é bastante explicativo — drums e eurorack, portanto a tua bateria e o teu modular. Mas o João Almeida tem trompete e no input. Isso significa que ele está a usar o instrumento de uma forma não convencional, não é?

O que ele tem é uma mixer onde não tem nada. Essa mixer liga-se a ela própria. Com esta coisa de estar a somar canais nos mesmos canais, a criar os circuitos de feedback internos, ele cria sons. Esse sons que está a criar nessa mesa passam por delays, distorções, uma série de coisas. É daí que vem o no input — é uma mesa que não tem lá nada ligada. O som de bateria também está todo destruído com mil distorções. Na mistura nós quisemos que isso fosse assim, muito denso, e quisemos ir para outros territórios que conhecêssemos menos sem amarra nenhuma. Já estamos com vontade de encontrar mais coisas, mas esta foi por aí.

Muito bem. É mais um projecto altamente analógico. Este sai em cassete, o teu Distraimento vai sair em vinil e foi gravado em fita. Parece haver aí uma predisposição qualquer para uma coisa que é muito física e palpável, não é?

Sim. A nós interesa-nos muito. E o objecto do CD hoje em dia é algo que nos faz imensa confusão. Já quase ninguém tem onde ouvir CD. A cena da cassete é muita louca, porque tu estás a pôr aquilo a tocar num suporte que também vai alterar o teu som. Nós achamos isso interessante. Mas além do mais, também há a cena de usar a tape para fazer coisas. Nós queríamos muito que isto saísse em formato físico e ao mesmo tempo do Abrigos, do Norberto Lobo e do Yaw Tembe.

O facto dos dois discos saírem em paralelo significa que vão existir actuações em conjunto?

Ya. Já houve uma festa em que foram as duas bandas. Queríamos muito que as coisas fossem assim. A ideia da Facada é fazermos estes concertos em que tocamos e estamos juntos, que servem de desculpa para fazermos coisas.


pub

Últimos da categoria: Entrevistas

RBTV

Últimos artigos