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Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/06/2020

Do trip-hop à moda do Egipto ao cruzamento Houston-Barcelona.

#ReBPlaylist: Maio 2020

Texto: ReB Team
Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/06/2020

Neste momento, nem a música parece um refúgio para o que de mais grave se vai passando no mundo e com tão dramática urgência nos Estados Unidos da América. Estas são escolhas de quem tenta manter-se à tona com bóias de som que servem tanto aqueles que procuram um estímulo para a revolução como outros que procurem alienação.


[Dijit] “Babaakh” feat. AC Ghazy

Dizem que é trip-hop feito no Egipto, mas isto pode parecer uma nomenclatura perigosa: porque o trip-hop está muito enraizado num período específico, e porque, em boa verdade, Dijit vai um pouco além de geografias e de fronteiras genéricas. Faça-se justiça: as cadências são, de facto, lentas e a presença de MCs que injectam novas vidas na sua produção são, em primeira análise, elementos partilhados com o género tornado famoso em Bristol; mas o pedigree do Cairo é outro — na língua, nas progressões harmónicas e nas texturas invocadas.

Hyperattention – Selected Dijital Works Vol.1, de onde esta “Babaahk” é retirada, é um bom compêndio do trabalho do produtor do Norte de África, e prova, mais uma, da cena borbulhante que a capital do Egipto alberga, e que vai muito além do Chaabi e das suas variações incandescentes. Selado com a qualidade crescente da editora de Manchester YOUTH.

– André Forte


[slowthai] “BB (Bodybag)”

De volta aos singles, e com a confirmação revelada pelo próprio acerca da iminência do seu novo álbum, slowthai volta às canções em seu nome, enchendo, em “BB (BODYBAG)”, o saco das três faixas sequencialmente lançadas (“ENEMY” e “MAGIC”, as duas primeiras). Em registos cada vez mais irreverentes e distintos, e apesar de “BB (BODYBAG)” cruzar umas quantas esquinas com o drill, slowthai caminha, com passada larga, para um altar onde o culto desta figura sublime é transversal a qualquer crença ou seita musical. Não há saco que cubra este corpo artístico, e à medida que escava o subsolo britânico, o rapper – se assim se pode redutoramente caracterizar – ilumina o trilho de quem segue a sua jornada por canais subterrâneos sombrios.

Aliado a conceitos estéticos, Tyron Frampton dá vida à persona de slowthai, cruzando os vários universos que o definem, e este single não foge à regra. Com um vasto elenco devidamente creditado no vídeo que acompanha a faixa, a visão do britânico materializa-se numa moeda de duas faces, oscilando entre os cenários cinematográficos, neste em particular a fazer saltar à vista eventuais referências visuais como Bronson, Snatch ou Trainspotting (este último assumidamente incontornável), e, por outro lado, ostentando todos os maneirismos (renascentistas à sua maneira) inerentes a um rapper influenciado pelo cenário grime do Reino Unido.

De resto, alicerçado numa batida hipnotizante, qualquer verso cantado sob a pronúncia de Northampton pede por mais, enaltecendo o poder de cada punchline pela forma como é dita. Se é o mensageiro ou a mensagem que mais relevam, não nos cabe a nós decidir. Felizmente, por aqui cabem ambos no mesmo saco, já que slowthai é um artista dos pés à cabeça.

– Paulo Pena


[Ellen Allien] “True Romantics”

A capacidade de transmitir a vibração de uma espaço, neste caso de uma cidade, é algo simplesmente belo, como um notável trabalho de tradução. Em 2020, Ellen Allien não apenas volta a transmitir, de modo sempre intrínseco, a alma de Berlim como evoca toda uma urgência global face as acontecimentos actuais — ou pelo menos assim nos faz imaginar. “True Romantics” capsula, como só ela sabe, o minimalismo maquinal e aquele pulsar emocional em que a melodia desoladora penetra no betão — e encontra luz néon. Essa cápsula vitamínica condensa-se aqui numa expressão que inegavelmente apresenta o seu cunho, mas que se digna a cruzar noutros campos. Há vocoder no meio e muitas implosões que de resto só contaminam a curiosidade para o que aí vem. E o que aí vem chama-se AurAA, novíssimo álbum com data prevista já para o dia 12 de Junho. Num mundo tão sobrepovoado como é o do techno, Ellen Allien mantém-se uma voz com porte e inesgotável fascínio.

– Nuno Afonso


[Tristany] “acliclas” feat. Julinho KSD, Blade e Chullage

Diz-se que o melhor fica para o fim mas no caso de Tristany a coisa não é assim tão linear. “Acliclas”, o último avanço de Meia Riba Kalxa, a postos para ser editado esta semana, apesar de forte trunfo é também produto da mesma estética dos seus antecessores e não é mais urgente do que “O Meninu Ke Brinkava Com Bunekas” ou “Rapepaz”, por exemplo. Mas se os perfis de Tristany nas redes sociais já valem seguidores como ProfJam, Bispo, Pedro Mafama, Mike El Nite ou Sam The Kid (que até o apontou como promessa num dos episódios de Três Pancadas), ter agora Julinho KSD e Chullage nos créditos de uma das suas músicas só vai tornar o botão “follow” ainda mais difícil de escapar a um aperto.

Tudo isto pode até soar a campanha de promoção mas a colaboração é das mais orgânicas e genuínas que podemos encontrar por aí. E isso é audível. Esquecendo o facto de “acliclas” já levar com uns bons dois ou três anos nas costas, as rimas da coqueluche dos Instinto 26 mostram-nos o seu lado mais raw, seguramente registadas numa sessão de estúdio pré-“Sentimento Safari” ou até “Hoji En Sa Tá Vivi” e fruto de um laço entre ambos os artistas e o inegável amor à camisola de Algueirão-Mem Martins. A presença de Blade, outsider da crew Trvp $ociety, reforça essa ideia de círculo fechado, uma união que se traduz em arte mas que parte de todo um historial de relações interpessoais entre estes jovens. Já Chullage pode mesmo ser considerado uma espécie de padrinho para este mais ambicioso avanço na carreira de Tristany, já que o acolheu em alguns dos seus espectáculos ao vivo e inclusive tem o seu nome cravado na mistura de algumas das faixas de Meia Riba Kalxa. A sua entrada em “acliclas” distancia-se até de todo o percurso que trilhou enquanto rapper, com a voz a dançar ao som do funaná, como quem se deixa levar por um newcomer que vem a acompanhar com carinho e em quem confia plenamente ao ponto de arriscar fórmulas menos rotineiras.

E o que é “acliclas” ao certo? Uma marca contrafeita que emula o design da Adidas, vendida no início do milénio em feiras e mercados quase ao preço da chuva. É também marco importante no processo de afirmação social de um jovem que cresceu bem entranhado no ambiente da Linha de Sintra, em que o dress code é em si mesmo um uma forma de diálogo entre aqueles que coabitam na mesma zona. Antes de conseguir poder envergar o símbolo da gigante alemã ao peito, “acliclas” é quase como um estágio que nos permite abrir algumas portas, que vão desde os degraus iniciais naquilo que é a hierarquia das ruas ou a atenção das primeiras mulheres, podendo também funcionar como uma certa camuflagem, mecanismo de defesa para quem circula no coração da selva. Modo de usar? Com a meia acima da calça, preferencialmente.

– Gonçalo Oliveira


[Yung Lean] “Starz” feat. Ariel Pink

2020 foi ano em que vimos a dream pop fundir-se com o emo trap. Yung Lean, pioneiro de toda uma geração de SoundCloud rappers, juntou-se a Ariel Pink para produzirem Starz, faixa que “rouba” o título do seu mais recente álbum. Jonatan deixa a ostentação e o glamour de lado e fala sobre uma pessoa que, por mais tempo que passe, não lhe sai da cabeça. Os clichés que já foram ditos inúmeras vezes por inúmeros artistas (querer voltar atrás no tempo, desejar nunca ter conhecido a pessoa, etc.) ganham uma nova dimensão com a energia de Lean que parece mais encolhido e fechado que nunca. A sua voz não tem força, limita-se a deambular ao longo da música numa atitude de quem parece demasiado desligado da realidade para lidar com ela. O beat não o ajuda a levantar, limitando-se a funcionar como uma espécie de atenuante (lembra-nos aqueles que o rapper bem conhece), oferecendo melodias mais soft que pairam indefinidas no ar, anestesiando uma mágoa mais forte, mas nunca a conseguindo tirar de lá. Submergimos dentro da cabeça do rapper através dos seus sintetizadores envergonhados que também não se libertam mas ao mesmo tempo também não estão presos, cria-se a sensação que Lean também vive numa falsa liberdade dada por estados alterados de consciência.

Ao mesmo tempo, esta música simboliza o caminho percorrido pelo artista até agora. Apesar de toda uma geração que fora influenciada por ele e elevou o género a um patamar respeitável, ultrapassando as críticas que questionavam a sua credibilidade, o rapper sueco continua em constante mutação e a ultrapassar já a estética que popularizou, tentando levá-la mais além, fundindo-a com a dream pop e o shoegaze, que se diluem como açúcar em água e funcionam numa harmonia louvável.

– Francisco Couto


[JPEGMAFIA] CUTIE PIE! 

Apesar de 2020 estar a ser um ano que todos queremos apagar da memória, JPEGMAFIA está empenhado em absorver o máximo de inspiração. Depois de ter deixado a sua marca no ano passado com o “desapontante” All My Heroes Are Cornballs, “CUTIE PIE!” é o quarto singleeditado pelo rapper norte-americano neste lúgubre período. Desta vez, Barrington Hendricks optou por uma portentosa improvisação escrita acompanhada por um throwback ao glorioso boom bap de outros tempos, uma homenagem de curta duração e efeito duradouro.

O seu flow é descontraído mas as suas palavras denotam alguém focado, de língua afiada e pronto para qualquer cenário (“Good manners or the damage, a nigga might tip”). O artista distribui braggadocio e confissões introspectivas fruto dos tempos que correm (“I can’t take this livin’ all alone, I’m Phyllis Hyman”) sempre com uma entrega simples, sem grandes inflexões vocais ou mudanças de timbre, e complexa em jogos de palavras e cadências fonéticas. A batida “suja” do drum loop granulado e baixo ditador revela-se a companhia perfeita tanto para o disparo quase sem interrupções de Hendricks como para o característico abanar de cabeça provocado por qualquer bom instrumental da golden age do hip hop.

Mas o destaque do tema vai definitivamente para o seu outro psicadélico. A transição acontece sem espinhas e, se anteriormente o beat servia como máquina do tempo, agora é foguetão fora de órbita, a viajar ao inaudível som de um sample vocal transfigurado e perpetuado por um phaser galáctico que instantaneamente nos transporta para o centro de uma supernova. Se não fosse o instrumental progressivo, “CUTIE PIE!” seria “só” um dos mais ambiciosos freestyles de 2020. Neste caso, é (mais) uma música de JPEGMAFIA para recordar neste ano para esquecer.

– Miguel Santos


[SHANGE] “HEADSPACE”

Mudanças não são sempre fáceis, mas para Gonçalo Lemos iniciar o seu percurso na electrónica soa a descobrir o lugar a que pertence. Um músico experiente — professor, com vários projectos no mundo do rock e do metal, inclusive já tocou com Pedro Abrunhosa ou Blind Zero –, SHANGE pisou (este complicado) 2020 com um novo projecto, editado pela Chilli Pepper Fields.

Em “EMBRYO”, lançada em Janeiro, ouvimos o produtor a aproximar-se das sonoridades do influente Aphex Twin e do exímio Floating Points, numa nave IDM, olhando para o que se faz por cá, como o mais experimental e abrangente Dragão Inkomodo, ou até ZZY, mesmo que estejam mais afastados. “HEADSPACE”, segunda investida de SHANGE, encontra uma maior individualidade sónica do produtor, aliando os seus lados mais glitchy e ambient a um design sonoro e estrutural bem conseguido, com uma ténue mas muito bonita catarse. À luz do que as suas influências fizeram também. Os sintetizadores arpejados juntam-se a um piano reverberado — um piscar de olhos ao incontornável PLAY de Moby — e a uma batida groovada, da qual tanto os irmãos Mike Sandison e Marcus Eoin (Boards of Canada) como Richard D. James se orgulhariam de ouvir.

Num ano de tantas mudanças, atentar a SHANGE parece das adaptações menos difíceis que tivemos de fazer. “HEADSPACE”? “EMBRYO”? São só o início, esperamos.

– Vasco Completo


[DJ Ride] “Morph” feat. Dead End

A melodia que guiava From Scratch, sob o signo da paz e do ritmo, foi reduzida a escombros. Da “Surprise Box” só resta “Fumo Denso”, para anunciar a chuva ácida e uma maré de vidro. No fundo, o novo disco de DJ Ride é uma viagem, só que não é a panorâmica: é o ziguezague de zarpar para o futuro. Violência sem ser gratuita.

“Morph”, a faixa-título do EP, só é monstruosa na potência do volume; de resto, a estrutura é fácil de apanhar. A primeira fase joga com uma caixa negra de sons: a estática suspensiva conta os últimos segundos antes de um ataque aéreo, a voz escondida faz pensar nisto como uma versão extrema de “Saxon” dos Chase & Status, mas teria que ser mais jungle, e aqui os breakbeats alucinantes não têm espaço para as sementes do reggae.

Inevitavelmente, rebenta – é essa a segunda secção. Não há surpresa nisto, porque Ride queria fazer bass music; como já escrevi, é “Odete sem facas e Amnesia Scanner levado ao limite”. Ainda assim, prefiro o que disse um ouvinte no Bandcamp, que saúda Ride (de quem nos temos que lembrar mais vezes como compositor): “É bom ver artistas a fazer música apocalypse-friendly”. Talvez não tanto a abraçar a catástrofe, mas a reconhecer que existe, e a evocar o que será a paisagem sonora num país sob bombas, ou às mãos de uma longamente esperada revolução – o único sítio onde  o desfigurar pode ser a arma de quem procura uma nova forma rumo à esperança, e depois cair nas mãos de quem cega jornalistas.

– Pedro João Santos


[Rosalía] “TKN” feat. Travis Scott

“TKN” é uma bomba de honra, de balanço, de força e de resistência, de classe urbana, de cadência digital soluçante e irresistível. E confirma Rosalía como um portento global. A catalã já se tinha cruzado com o texano Travis Scott em “Highest in the Room”, mas neste tema, que resulta da produção colaborativa da própria Rosalía com El Guincho e ainda Sky Rompiendo el Bajo (nome lindo), Tainy e Teo Halm, a fasquia sobe até ao último andar da torre. O tema é uma lição de concentração de esforços, fala da ideia de família, da noção de honra mafiosa, numa deliciosa fantasia a que Travis oferece o seu flow cubista, adornado de cosmética de zeros e uns. Não vale a pena olhar para mais lado nenhum se o que procuram é o melhor da pop neste estranho 2020.

– Rui Miguel Abreu


[COLÓNIA CALÚNIA] “LOGO #05 (LADO NENHUM)”

Quando Pedro Mafama e Pedro, O Mau (aka VULTO.) se encontraram pela primeira vez em “Torneira”, faixa lançada em Dezembro de 2017, vivíamos num mundo pré-Mundu Nôbu, El Mal Querer, Adoro Bolos e #FFFFFF, ou seja, toda a linguagem musical do EP Má Fama soava a terreno desconhecido que só podia ser traduzido por alguém que vivia tão perto de kizombas e kuduros como de fados e traps.

Houve um caminho percorrido por ambos entre esse primeiro encontro e “LOGO #05 (LADO NENHUM)” é uma marcha romântico-espiritual-niilista que serve de segunda (e feliz) reunião entre um pinga-amor que namora a paixão e a morte com a mesma intensidade e um produtor de primeira liga que parece disposto a permanecer sombra, mesmo que isso não o impeça de se fazer ouvir em alto e bom som (a composição do instrumental é um tratado de beleza e subtileza dos pormenores).

O quinto volume da série de COLÓNIA CALÚNIA é uma cantiga de desamor (ou desencanto); e se B Fachada cantava “tu podes ser bastante querida mas não é preciso dor para provar o desamor”, Mafama diz-nos: “E eu adoro quando o rabo dela dobra sobre as costas/ quando se deita na minha cama é qualquer coisa/ Mas não me leva a lado nenhum”. Perdidos de amores, em amores e por amores.

– Alexandre Ribeiro

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