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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/08/2025

A próxima pedrada no charco.

Porque está o hip hop tuga a ignorar gonsalocomc e ensemblu?

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 28/08/2025

Se houvesse justiça na música portuguesa, em 2025 já o mundo do hip hop tuga teria tomado nota da obra destes putos do Norte. Putos que dizem que não são um coletivo nem uma crew, que dizem obedecer mais a uma espécie de filosofia, uma escola de pensamento, para uma nova era do hip hop cantado em português: ensemblu. Produtores, instrumentalistas, autodidatas, espiritualistas, jazzistas. Dualus, si!va, DoisPês e, acima de tudo, gonsalocomc. Estes são os cabecilhas desta escola, entretanto adotada por outros devotos ao hip hop abstrato pintado de tons espirituais: Wugori, moisés, ocosta, Herege, parker, Sina em Órbita, entre outros.

Separar o trabalho de gonsalocomc dos restantes pares é um exercício de perfeita injustiça para com estes. Afinal, as experimentações destes compinchas alimentam a criatividade uns dos outros. Parte do potencial de Gonçalo Lopes surge precisamente do feedback que recebe dos seus amigos, do tempo que passou online e em pessoa a discutir os beats, os flows, as métricas, os tons das suas canções. Todavia, foi com a exposição de gonsalocomc — no EP Mal Passado Bem Pensado, erguido pelo produtor e beatmaker bracarense ao lado de Wugori — que nos apercebemos que uma nova escola do hip hop tuga estava a ser pensada e criada.

Quando gonsalocomc concebeu os beats de Mal Passado Bem Pensado — considerado em 2021 pelo Rimas e Batidas como um dos melhores projetos nacionais desse ano — era apenas um adolescente. Ainda nem tinha entrado na faculdade, mas estava próximo de o fazer. Tinha 17 anos e, à distância, assumiu a direção musical do curta-duração. E para quem escutou Mal Passado Bem Pensado, a qualidade da produção de Gonçalo rapidamente evidenciou-se. Se Wugori, um dos MCs mais entusiasmantes da tuga, acabou por se render e se adaptar aos beats cozinhados pelo puto prodígio, então é certo que estávamos perante algo de especial e diferente. Basta escutar como “Era Bom” derrete pelos nossos ouvidos ainda antes da palavra de Wugori brilhar. Neste curta-duração, o beat de Gonçalo manda — Wugori só teve de obedecer ao(s) seu(s) mandamentos. 

O que Gonçalo consegue transmitir com a sua manipulação de samples, lado a lado com sons de instrumentação orgânica, é uma espécie de nostalgia suburbana-deprimida. A sua produção, na verdade, resulta do processo de um jovem oriundo de Braga se ter refugiado na Internet desde cedo e ter encontrado inspiração em toda a música que lhe chegou aos ouvidos. Na sua arte, escuta-se o eco de boa malta como J Dilla, Kaytranada, MIKE, King Krule, ou Earl Sweatshirt (quantas vidas terá mudado Some Rap Songs?), escutam-se referências que vão desde a bossa nova até ao rock alternativo. O que une todos estes universos? Uma espécie de espiritualidade descentralizada, muito próxima do hip hop nortenho (em particular, o portuense). Este dado transforma Gonçalo (e ensemblu) em herdeiros de Dealema, Riça, Minus & MRDolly, ou Conjunto Corona (com Edgar Correia, Gonçalo editou o estranho EURO EP, em mais uma prova da relação de continuidade entre os sujeitos), mas que não esquecem nem ignoram o impacto que projetos de “culto” como Nerve, L-Ali ou COLÓNIA CALÚNIA tiveram em si.



Contudo, apesar das suas já enumeras colaborações e instrumentais perdidos pelo Soundcloud, é a beat tape XpecialXpacial — editada em 2023 pela Slow Habits — que melhor serve de exemplo até agora do som — e potencial — de Gonçalo. Como Leonardo Pereira assumiu sobre XpecialXpacial na rubrica Burburinho, este é um projeto onde as malhas funcionam como um “cafuné bem feito” capaz de nos embalar “até um mundo de sonhos” onde “nada pode correr mal”. 

Em XpecialXpacial, Gonçalo não precisa de muito tempo para transmitir o ethos que inspira o seu hip hop. Apenas uma das 12 malhas da tape — “2222”, com Dualus — ultrapassa os três minutos de duração, e apenas duas outras ultrapassam os dois minutos. Em menos de 120 segundos, Gonçalo leva-nos em odisseias psicadélicas que nos remetem para a ideia de que um beat de hip hop não precisa de se ficar apenas pelos 808s que governam a estética comercial da cena atual em Portugal. Uma batida de hip hop pode ser muito mais do que isso. Pode inspirar, pode mudar vidas. Tal e qual como Dilla ou Earl Sweatshirt mudaram a vida de Gonçalo, este também pretende mudar a vida de quem escutar as suas criações. 

É por isso que não existem barreiras sonoras para o que pode ser o hip hop de gonsalocomc e dos seus compinchas de ensemblu. A fronteira é apenas a imaginação e a viagem libertária (mais uma vez, há aqui um ethos muito jazzístico e espiritual presente) que a sua música propõe. Quando escutamos a desconstrução de “tele-carta d’amor”, apaixonamo-nos. Em “a sereia na garrafa”, choramos. A ambiência de “dxcolagem”, logo a abrir a tape, surge para nos fazer levitar. A música de Gonçalo é muito assim. São beats que flutuam, que nos fazem voar, que nos fazem imaginar um universo alternativo, onde o tempo simplesmente se move mais devagar (também há BADBADNOTGOOD na génese de gonsalocomc).

Numa entrevista concebida ao lado dos seus camaradas de ensemblu para a primeira edição física da revista nova-iorquina No Bells, Gonçalo assumiu que quanto mais experimenta e pensa fora da caixa, melhor se consegue exprimir. Numa altura em que o hip hop tuga, em todas as suas dimensões e feitios, apesar da sua popularidade, se encontra numa fase monótona de excitação artística — quantos discos após o lançamento de The Art of Slowing Down mudaram efetivamente o game? —, a existência de produtores como Gonçalo e os seus amigos deveria entusiasmar. É aqui onde os ouvidos de uma quanta malta deviam estar, porque pode ser muito bem daqui que irá sair o próximo The Art of Slowing Down ou o próximo MIXTAKES. Se o hip hop tuga precisa de uma nova pedrada no charco, a linha condutora de ensemblu oferece respostas que mais nenhum local no país parece estar a dar de momento.

E se no seu — para já — curto percurso artístico a experimentação já trouxe Gonçalo até aqui, quem sabe até onde as suas experiências futuras o vão levar. Se justiça houver, será muito longe. Se justiça houver, ele — e os seus amigos — são os futuros grandes produtores do hip hop nacional. Foquem os ouvidos e escutem. Com atenção. Pode ser que encontrem algo que vai mudar o rumo da vossa vida.


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