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Texto: ReB Team
Ilustração: Rita Magdala
Publicado a: 12/01/2022

De Pedro Mafama a Dianna Excel.

Os melhores álbuns nacionais de 2021

Texto: ReB Team
Ilustração: Rita Magdala
Publicado a: 12/01/2022

No final de contas, as listas (tal como qualquer processo que seja democrático) não são mais do que um reflexo das pessoas que votam, das suas escolhas e daquilo em que acreditam. No caso do Rimas e Batidas, e isto deve aplicar-se a qualquer outra revista/orgão de comunicação social/blogue que se proponha a estes exercícios, a selecção final fez-se a partir dos critérios de mais de 15 pessoas diferentes para que se chegasse a um conjunto plural e diversificado de discos e que reflicta aquilo que somos e que, no fundo, aquilo de que gostamos e que nos entusiasma.

Não vamos analisar com profundidade o resultado que vão encontrar de seguida — vamos deixar isso para aqueles que queiram deixar a sua “bicada” sobre isso –, mas estes 25 discos, juntos, traduzem uma série de coisas:

a) Os “desfados da nova pop” são, mais do que um exercício vazio, algo realmente palpável;
b) A juventude também é um posto (veja-se os casos de Silly, João Não, Raquel Martins, DJ Lycox ou gonsalocomc);
c) Num exercício de “o que é mais ouvido também tem de ter qualidades”, o rap mais popular feito em português é valorizado;
d) Estamos tão bem servidos de novos autores preocupados com a palavra e a forma como é entregue como de produtores de música electrónica dos mais variados quadrantes que estão num altíssimo nível;
e) DJ Lycox dá mesmo bué show.

Mas chega de conversa. Fiquem com os favoritos do ReB da produção nacional do ano passado.



[Pedro Mafama] Por Este Rio Abaixo

“Novos fados”. Não um rótulo colado à música de Pedro Mafama contra a sua vontade, mas uma ideia que o próprio reclamou, em Dezembro de 2017, quando pela primeira vez falou ao ReB e procurou explicar ao que vinha: “Uma batida de trap diz-me Atlanta e eu quero falar de Lisboa, da minha cidade e do meu país”. É disso, exactamente, que trata Por Este Rio Abaixo. Se o histórico disco de Fausto, que este ano assinala quatro décadas, procurava reflectir, como por aqui tão bem explicou João Mineiro, “sobre a partida, a viagem e a chegada a África”, já o “reverso” de Mafama pretende transformar em nova canção quem permaneceu, quem nunca viajou mais do que o olhar alcança a partir dos miradouros pendurados sobre o Tejo, quem sempre conviveu com a África que por cá existe há séculos. Dessa procura e dessa vontade nasceu um disco sério que reflecte não uma atitude seguidista de alguma vaga de fundo internacional, mas uma genuína criatividade que não teme nem olhar para dentro, nem escutar o que veio de trás, afinal de contas a única forma de desbravar novos caminhos.

– Rui Miguel Abreu



[Bruno Pernadas] Private Reasons 

Private Reasons é uma empreitada de fôlego com assinatura de Bruno Pernadas, um músico de múltiplos recursos e com ideias muito claras quanto ao sentido estético da música a que se dedica. Neste novo álbum, o músico conjuga, com doses generosas de subtileza e requinte, o seu virtuosismo técnico com a sua inventividade estética, oferecendo-nos um objeto artístico que afirma a sua grandeza naquilo que o torna mais transcendente: o impulso por fugir à catalogação numa qualquer região estética preestabelecida; a fuga ao enrizamento a um qualquer território sonoro preconcebido ou vinculado a um “espaço nacional”; a pulsão por desbravar territórios sonoros que escapem ao próprio tempo social da sua criação. Private Reasons é, como ilustra a sua brilhante capa, um disco de todas as cores e para atravessar todas as fronteiras. Um objeto luminoso que nos serviu para superar a dureza deste tempo, mas que levamos no bolso para outros futuros que se antecipam nos lugares secretos onde o arco-íris acaba e outros mundos começam. 

– João Mineiro



[Rita Vian] CAOS’A

No meio do caos na casa que é o corpo e a mente de Rita Vian, as canções brotaram afadistadas, poéticas, donas de toda e de nenhuma razão. Quando ouvimos a voz e tomamos atenção às letras, os labirintos que se personificam à nossa frente não são mais do que o reflexo de uma artista a (tentar) resolver-se em verso. Num EP, CAOS’A, que é aperitivo guloso para aquilo que um álbum poderá significar (tanto para o seu percurso como para o decurso da música portuguesa), a produção de Branko não é sinónimo de aumento automático de qualidade, mas, sim, prova de fogo para Vian declarar que o tom sóbrio que entrega em cada música não precisa de ser recebido com a austeridade de uma plateia sentada — dá, na verdade, para o auditório e para o clube.

A versão original de “Sereia”, estes cinco temas, “Carmen” (com Mike El Nite) e o trabalho nos Beautify Junkyards podem ainda ser pouco para muitos, mas, para nós, são prenúncio de um maravilhoso futuro imediato.

– Alexandre Ribeiro



[L-ALI] Raramente Satisfeito

O título Raramente Satisfeito diz muito sobre o artista que L-ALI é. Começou por criar uma linguagem única no panorama do rap nacional, para agora, sem a preterir, se reinventar junto da Superbad — depois da curta mas decisiva escala feita na estação espacial da Think Music — através de um novo EP fortemente cunhado por Lunn, Here’s Johnny e Holly Hood. Em apenas seis faixas, o MC conseguiu deixar um rasto (circular) por caminhos verdadeiramente desconhecidos e deixar-nos com a cabeça às voltas a tentar segui-lo. 

– Paulo Pena



[Maria Reis] A Flor da Urtiga 

“Ontem, parece que foi ontem, estava junto à Júlia a sentir”. É assim que começa Flor de Urtiga de Maria Reis. O tempo não pára e leva com ele a nossa vida e obriga-nos, felizmente, a não estarmos parados. Parece que foi ontem que víamos as manas Reis a destruir qualquer palco que pisavam com a sua energia punk e a deixar marca em qualquer jovem português que gostasse de ouvir música com uma energia potente e genuína. Mas já lá vão cinco anos desde que as suas vidas se separaram nas artes, acabando por florescer daí o trabalho a solo de Maria, que vimos tornar-se nos últimos anos uma das melhores cantautoras portuguesas. Sem papas na língua como sempre, Flor de Urtiga é, nas palavras de Maria, “canções sobre a família, o amor, o abismo emocional e a integridade – e outras coisas pelo meio”. Co-produzido por Noah Lennox, o disco começa e acaba da mesma forma, de coração aberto com duas faixas que fez para cada uma das suas sobrinhas, mas pelo meio sentem-se as frustrações com homens, com os nossos erros, com ser difícil ter energia que não existe para saírmos de um sítio mau. Mas tudo é falado com naturalidade, sem grandes romantismos, somente um despejar quase sem filtros do que sente. E sempre foi isso que nos fez apaixonar por Maria Reis.

– Francisco Couto



[Gonsalocomc x Wugori] MAL PASSADO BEM PENSADO

O hip hop na sua fórmula mais pura tem vindo a mutar por esse mundo fora e Portugal também tem tido direito à sua devida dose de inovação. Um dos grandes culpados nesse campo é Wugori, MC e produtor da Amadora que tem assinado raps dos mais íntimos a que assistimos envoltos em samples que acusam cada vez menos a dependência de uma batida mais vincada. Quem também quis pegar nesse mesmo testemunho foi o beatmaker de Braga gonsalocomc, que assume a direcção musical da Mal Passado Bem Pensado e possibilita que o pulso de Wugori se foque apenas na trajectória da caneta, ele que neste disco alcança o mesmo grau de confessionalidade com que Osíris, por exemplo, tingiu os seus manuscritos.

Mais do que um álbum de hip hop, Mal Passado Bem Pensado é um manual didático para a vida no geral e pode até servir de lanterna na hora de reflectir sobre as dores e mazelas causadas pelo crescimento e procurar escapatórias que nos permitam abandonar essa complexa teia de raciocínio sem grandes perdas ao nível da sanidade.

– Gonçalo Oliveira



[DJ Lycox] LYCOXERA 

Sempre que uma capa amarela nova aparece no Bandcamp da Principe Discos, precisamos da nossa máxima atenção, pois isso significa DJ Lycox; e Lycox significa, muito resumidamente, bops. 29 de Outubro foi um dia marcante para os fãs da Príncipe, que viram, num espaço de poucas horas, ficarem disponíveis dois novos discos para ouvir (sem ainda saberem que menos de três semanas depois já sairia outro). Num desses discos, Lycox apresenta-nos uma nova era que veio ficar: a LYCOXERA. Se em 2017 Sonhos e Pesadelos nos mostraram a energia uplifting e de festa do produtor, e Kizas do Ly nos deu em 2020 uma faceta mais emocional e a BPMs mais baixos, LYCOXERA veio mostrar a ambição do produtor em criar algo superior e intemporal, e com uma confiança nas suas capacidades: só assim poderia começar logo com “Eu Mbora Dou Bue Show”. É um álbum menos alegre que os antecessores, que mistura a energia de uma rave com os movimentos desenfreados do kuduro modernizado. Desde a texturas industriais de “Rapaz Sinistro” ao romantismo de baile de “Momentos Únicos”, ao kuduro mais puro e duro de “Southside”, Lycox parece estar num contínuo crescimento artístico enquanto continua a sua epopeia e vai, onde passa, conquistando os seus desafios e as pessoas que o ouvem.

– Francisco Couto



[Sensible Soccers] Manoel

Os títulos desempenham uma função especial na música dos Sensible Soccers. Temas como “Missé Missé” e “Sob Evariste Dibo” foram baptizados em homenagem a dois emblemáticos futebolistas e a icónica faixa “Zaire 1974”, que conheceu a sua primeira edição física no findo ano de 2021, faz referência a um dos mais caricatos episódios dos campeonatos do mundo da modalidade. Manoel, por sua vez, partilha o primeiro nome do histórico cineasta português Manoel de Oliveira, cuja obra está na origem do quarto longa-duração da banda nortenha. Criado originalmente como acompanhamento para dois filmes do malogrado realizador, Manoel vai muito além da banda sonora imaginária, encapsulando as diferentes fases do grupo ao longo dos seus 10 admiráveis anos de carreira, da contemplação sintética de 8 às propriedades lúdicas de Villa Soledade e os impulsos tropicalistas de Aurora.

– Filipe Costa



[Dino D’Santiago] BADIU

Talvez não seja o final da viagem, mas BADIU, de Dino D’Santiago, é uma espécie de fechar de um ciclo que o músico inaugurou com Mundu Nôbu, em 2018, que continuou com KRIOLA, em 2020, e que agora atinge o seu maior amadurecimento sonoro, estético e até político. Neste novo álbum, o músico encontra uma forma serena, mas não menos implicada, de tratar a inquietação, num trabalho que coloca em diálogo o seu processo de autodescoberta pessoal e identitária, com a urgência das lutas em que se foi implicando e a que quis dar corpo, voz e espaço. Um álbum onde se exorcizam os fantasmas do passado com a mesma convicção com que se investe nas utopias possíveis e realizáveis. BADIU é um álbum em tom de manifesto, não panfletário, mas profundamente íntimo, onde Dino conecta a música e a palavra, o sofrimento e a esperança, a serenidade e o desassombro, procurando todas as esquinas e todos os encontros que antecipam o porvir. 

– João Mineiro



[Fogo Fogo] Fladu Fla 

Em 2014, os Fogo Fogo revelaram-se ao mundo com o intuito de celebrar o funaná através de residências mensais na Casa Independente, em Lisboa. Sete anos depois, contando já com três EPs e diversas actuações a nível nacional, os Fogo Fogo editam o seu primeiro longa-duração, que deposita o seu potencial máximo em cima da mesa. As composições musculadas que o grupo registou em Fladu Fla poderiam perfeitamente advir de nomes conceituados como Bulimundo ou Ferro Gaita, o que não deve, porém, ser entendido enquanto ponto fraco do disco, antes pelo contrário: se no passado os Fogo Fogo procuravam revisitar o cancioneiro de titãs do funaná – aspecto esse que ainda não desvaneceu por completo, dadas as inclusões de “Labrada (Didi Di Réz)” de Catchás e “Ka Bu Frontan” de Menu Petcha -, agora aumentam a parada, a assimilar o seu percurso de aprendizagem desta tradição musical através de canções igualmente sólidas a nível musical e lírico. A performance segura e destemida deste quinteto faz-se notar em todo o disco, e a homenagem prestada à música que executam não se restringe a uma mera cópia do que já se fez no passado – “Hora Di Bai” vê o seu refrão complementado por coros em vocoder, “Quê Q’bô Crê” é um instrumental orelhudo que caminha em conjunto com conversas e ruídos de fundo, e “Fladu Fla” representa o auge da mestria deste grupo, especialmente através da propulsão assertiva da sua secção rítmica, tudo isto ampliado pelo tom de contemporaneidade conferido pela produção de Alexandre Kassin. A diversidade da música lusófona apresenta um nível de vivacidade cada vez menos inescapável, e Fladu Fla foi um dos discos que comprovou esse facto em 2021.   

– João Spencer



[Odete] The Consequences of a Blood Language

A mente visionária de Odete abre novos horizontes. Não será de agora, mas em 2021 deixou um contributo maior que sedimenta ideias e perspectivas outrora assinaladas. Se o conceito de composição já era denotado, com The Consequences Of A Blood Language emana uma natureza quase orquestral. Cada pormenor surge elementar e passível de uma multiplicidade de dimensões. Temas como “Arrepio” ou “O Chão Treme” trazem uma construção rítmica inteligente e igualmente vibrante. Sem academismos ou pretensões, Odete logra em assumir-se como uma das artistas de vanguarda mais pertinentes, capaz de transformar a pop numa identidade tão vaga quanto intrigante. De resto, fá-lo reunida de uma imensa comunidade com que colabora.

Um dos sinais perfilares de Odete é oferecer um objecto musical que, realmente, desafia os padrões estéticos convencionais. A tentativa de categorização sobre o que aqui se encontra seria uma tarefa sempre incompleta e ingrata, para além de nos desviar para o que realmente interessa: a experiência da escuta. Álbum que apela ao corpo sim, mas que pega na mente – e no seu potencial – como elevação sensorial. Artista além do som, Odete tem-se distinguido pelas artes performativas e pela escrita, tudo meios que, de uma forma ou de outra, encontram paralelos nestas canções descarnadas.

– Nuno Afonso



[IKOQWE] The Beginning, The Medium, the End And The Infinite

Quando a originalidade musical é resultado da simples fusão há sempre o risco de ficar com um sabor de um prato de bacalhau com iogurte de ananás. Pedro Coquenão e Luaty Beirão sabem-no e em IKOQWE fundem elegantemente referências, oferecendo-as como um completo cabaz alimentar.

Os samples de field recording angolano deram a ignição para o disco The Beginning, the Medium, the End and the Infinite mas na realidade é fácil nos perdermos — no bom sentido — pelas suas latitudes sónica: se ao terceiro tema “Falta Muito?” parece que recuámos três décadas até um armazém em Chicago, já a faixa “The End (Kamicasio)” é marcada pelo uso do lendário padrão rítmico do reggae, sleng teng, vindo de uma máquina revolucionária como a Casio MT40.

A peculiaridade de um projecto como IKOQWE vai para além de uma dupla mascarada com baquetas na cabeça, e é preciso observá-lo como um recipiente de sabores diversificados onde cabem desde as danças variadas cozinhadas por Coquenão ao activismo pós-colonial de Luaty Beirão. Este disco lançado num ano em que os destinos estavam presencialmente limitados acabou por ser inteligentemente apresentado numa dúzia de rádios pelo globo, em jeito de homenagem ao alcance hertziano.

– Eduardo Morais



[Vasco Completo] Wormhole

Primeira pergunta: não vos parece sempre que “Lullaby for the Inebriate” começa com a tag de Pharrell Williams? Segunda pergunta: o que é a esfera ao centro? Planeta, bola de espelhos ou berlinde, suga-nos. O grão fragmenta a imagem, dá-lhe fricção, estaciona algures entre a dissolução e movimento — não é difícil imaginar a artista responsável, Beatriz Passos, a tentar ilustrar a música de Vasco Completo. Na sua estreia em longa-duração, o músico e redator do ReB procurou escancarar uma fenda espacial.

Essa é uma das traduções possíveis para Wormhole (e temos a confirmação de um certo Doc Brown). Outra é ambient ritmicamente desenvolto e texturalmente faminto, com o tempo de latência do trip-hop. Mais uma será a total coincidência de exploratório e acessível. O sintetizador desfere o primeiro golpe sobre o firmamento; a guitarra eléctrica vem depois, para um namoro indefinido no tempo e no espaço. Espíritos à procura de harmonia, num movimento que dissolve a fricção. Tudo à volta de um berlinde, uma bola de espelhos, um planeta sonoro.

– Pedro João Santos



[Moullinex] Requiem for Empathy

Requiem for Empathy, para além de um magnífico disco de música eletrónica, povoado de vozes e camadas sonoras pujantes ou melancólicas, foi também o álbum de que mais precisávamos nesta longa travessia pandémica. Desde logo pelo sinal de esperança que nos ofereceu, lembrando essa força transformadora que é dançar em conjunto, antecipando os encontros futuros e espalhando uma banda sonora para nos acalentar os corpos, que tanto desejo guardam para voltar a estar juntos, sem medos ou constrangimentos. E como se isso não bastasse, este é um álbum que sonoramente celebra a empatia e a reunião nesta era de polarização e de ódio, no mesmo gesto com que abraça a melancolia e a fragilidade, transformando-as em catarse e libertação. Um trabalho de emoções fortes que militantemente nos recorda a mais importante das lições: aconteça o que acontecer, temo-nos sempre uns aos outros, uma pista por celebrar e muitas revoluções por fazer. Depois deste disco de Moullinex, ficámos menos sozinhos. 

– João Mineiro



[Beautify Junkyards] Cosmorama 

Com o lançamento do seu quarto álbum, os Beautify Junkyards consolidam a identidade hauntológica que permeia a sua folk psicadélica e electrónica. A começar por “Dupla Exposição” — que nos cativa imediatamente através do embalo da flauta providenciada por Helena Espvall –, Cosmorama oferece-nos um conjunto de canções em que todos os elementos que as constituem se encontram em perfeita harmonia, seja a entrega vocal, a subtileza dos samples e beats utilizados, ou a ambiência pastoral transparecida pela instrumentação acústica. Embora este seja o primeiro registo do grupo após a saída de Rita Vian, a sua ausência é facilmente colmatada com a presença de outros nomes a dividir as lides vocais com João Branco Kyron, destacando-se a participação de Nina Miranda (cuja ligação aos Smoke City demonstra não se tratar de uma artista alheia a navegar em correntes musicais mais introspectivas) em “Reverie”, “Parangolé” e o tema-título deste álbum através de uma interpretação delicada que se coaduna à sonoridade apresentada nas canções em questão. Os Beautify Junkyards nunca esconderam a forma como encaram simultaneamente as características sónicas do passado e do futuro no seu repertório, mas Cosmorama é, até à data, o álbum onde a linha que as separa parece ser quase imperceptível.

– João Spencer 



[João Não & Lil Noon] Terra-Mãe

Enquanto todos olham para Lisboa e para os seus subúrbios como palco das maiores revoluções musicais em território português, dois jovens gondomarenses sugerem uma alternativa, metem o pé com força na conversa e dão-nos uma descomprometida compilação de canções que diverte na mesma medida que assegura que estamos perante dois sérios casos na escrita e na produção. João Não e Lil Noon, quais Bad Bunny e Tainy do Norte de Portugal, reclamam a linha da frente em Terra-Mãe enquanto o mais promissor duo romântico. Do mais fresco que se fez por cá em 2021.

– Alexandre Ribeiro



[David & Miguel] Palavras Cruzadas 

Apesar de algo concorrida, foi tudo menos uma escolha consensual. A verdade é que (alerta confidência) Palavras Cruzadas, o disco que juntou David Bruno e Mike El Nite, em nome da dupla romântica David & Miguel, depois do primeiro encontro em “Interveniente Acidental, foi um dos projectos mais discutidos entre a redacção do ReB — entre quem pressente o acusar de sinais de desgaste na fórmula e quem se vê rendido à química da parelha (cruz neste quadrado). 

Ainda assim, também é verdade que, independentemente de ambos terem convencido mais uns do que outros, juntos conseguiram, mais do que caricaturar, vestir as peles de quem faz e de quem procura um tipo de música que diz muito a tanta gente por esse país fora. Com alguma leveza e despreocupação, é certo. Mas, se assim não fosse, não teria tanta graça — e boa música também pode ser isso.

Amados por uns, incompreendidos por outros. Haverá algo mais romântico que isto? 

– Paulo Pena



[Raquel Martins] The Way 

The Way pode ser resumido em duas palavras: ambicioso e fervilhante. Mas ainda que seja de rápida descrição, não é de rápido consumo. A estreia de Raquel Martins introduz-nos a esta guitarrista, cantora e produtora com muito e calculado espalhafato. Neste EP, ouvimos arranjos musicais ricos, cheios de vida e de instrumentos, que saltam todos à vista (leia-se audição), em temas modernos, confortavelmente assentes no jazz e que confluem de forma natural e eficaz com outros ambientes sonoros. A jovem artista de 21 anos mostra-se focada e incisiva, ao leme de quatro músicas que dão gosto desvendar de uma ponta à outra, canções em que transparece a sua intenção e talento musical enquanto compositora. Depois de ouvirmos The Way, torna-se claro que o caminho é mesmo por aqui, ao som de Raquel Martins.

– Miguel Santos



[Silly] Viver Sensivelmente

Foi em Novembro que Maria Bentes (aka Silly) se estreou com o EP Viver Sensivelmente. É um trabalho curto, mas denso, que capta bem – acreditamos nós – a essência da autora. Alguém que está num processo natural de auto-descoberta, e que parece exprimir mais do que retrai, parece sentir mais do que pensa. Ou seja, este EP soa profundamente como algo orgânico e pouco calculista.

Desde que apresentou os primeiros temas que Silly mostrou ser bastante poética, com uma vertente abstracta que lhe permite ser impressionista e explorar devaneios, tornando-os flores bonitas do seu campo — afinal, Viver Sensivelmente tem uma ligação assumida à natureza.

São cinco canções com melodias graciosas, com produção de qualidade (e não é difícil perceber de que forma quando olhamos para os nomes de Pedro da Linha, Charlie Beats, EU.CLIDES e Deekapz nos créditos), e com letras dotadas de uma enorme sensibilidade artística. Silly floresceu, mostrou que tem coisas para dizer e sons para mostrar, e Viver Sensivelmente é o primeiro capítulo de uma história que acreditamos que vá ser muito agradável de se continuar a ouvir.

– Ricardo Farinha



[OCENPSIEA] Oceano-Mar

Ainda no meio da mui católica Braga, vamos sendo desafiados ao longo dos anos pelas peças musicais que Mão Morta, Ermo ou, mais recentemente, OCENPSIEA nos brindam para contrapor à vulgaridade. Os “putos fixes” vão arrecadando fãs dentro e fora de portas — notando o facto de BADBADNOTGOOD terem selecionado o tema “Ruído” para as suas playlists Spotify e Apple Music — com o terceiro álbum Oceano-Mar: um apanhado de 10 músicas que mostram todas as qualidades técnicas dos quatro elementos que formam a banda e o seu tremendo bom gosto. Com a escolha de convidados como PZ, David Bruno ou Gileno Santana, os jovens bracarenses vendem assim versatilidade e diversão – humor de “Bicho Mau” e tradição TV portuguesa de “Goucha’s Eleven” com sampling, grooves rap, sintetizadores abrasivos, mas também com o lirismo dos sopros — aliados à fluidez que o jazz permite. Mas cuidado ao associá-los ao jazz. Eles querem mais de si e nós esperamos mais deles. OCENPSIEA são a “banda” que querem ver e ouvir em 2022.

– Rui Correia



[Luca Argel] Samba de Guerrilha

Num tempo em que tantas vezes a esperança sucumbe ao pessimismo, em que o ódio bloqueia a solidariedade, em que os muros erguem novas fronteiras, ouvir a música de Luca Argel é uma experiência libertadora. Samba de Guerrilha é um álbum de linguagem universal e comum, transportando muitas das memórias silenciadas do Brasil, da violência social a que o seu povo foi e tem sido sujeito, para o nosso tempo e para as lutas do presente. Lutas do povo brasileiro e que são também nossas, que sabemos que nem os oceanos, nem as fronteiras, dividem combates e patrimónios comuns. O samba de Luca Argel não tem fronteiras, nem geográficas, nem estéticas. É homenagem e reinvenção, tradição e rearranjo. Em Samba de Guerrilha oferece-nos uma música que se faz manifesto e compromisso, nunca perdendo a poesia, a sensibilidade e a comoção que são tão característicos deste poeta e músico que, para nosso privilégio, fez também de Portugal a sua casa, e que tão bem fica na lista de melhores álbuns portugueses. 

– João Mineiro



[Conferência Inferno] Ata Saturna

Dois anos volvidos de Bazar Esotérico, os Conferência Inferno, actualmente formados por Francisco Ferreira, Raul Mendiratta e José Miguel Silva, reuniram oito novo temas de uma pop sintética e esotérica em Ata Saturna, a estreia do grupo em longa-duração. Informado pelas festividades da Antiga Roma em honra ao Deus Saturno, o disco é, no entanto, um retrato titilante do Porto misantropo e da sua emergente cena musical e artística. O lado hedonista da cidade, alimentado pelo pulsar das batidas e dos teclados, é coberto por uma paleta monocromática e saudosista de um velho Porto que já não mais existe, narrado pelo poeta profético e niilista que cobiça o ócio e que anseia pelo dia em que os escravos tomarão o lugar dos seus governantes.

– Filipe Costa



[Julinho KSD] Sabi na Sabura

O sonho de se profissionalizar na música sempre esteve presente mas a oportunidade chegou-lhe de forma inesperada e logo numa escala muito maior do que aquela que alguma vez imaginou. “Sentimento Safari” foi o tema que dominou por completo a segunda metade de 2019, catapultou Julinho KSD para um pedestal dentro da nova música portuguesa e fazia antever um 2020 de afirmação plena para o jovem artista de Mem Martins. A pandemia conseguiu adiar todo esse processo mas não por muito tempo, já que Sabi na Sabura, o álbum de estreia do rapper, chegou por intermédio da Sony Music Portugal no passado mês de Setembro. Hip hop tuga (com recurso tanto ao português como ao crioulo), funaná, afro-pop e até mesmo alguns laivos daquilo que temos presente como sendo parte da estética da canção nacional cruzam-se num novo hino à multiculturalidade do nosso país sem defraudar a importante missão que Julinho carrega aos ombros — a de se manter como uma das principais vozes no renovado panorama da música pop portuguesa.

– Gonçalo Oliveira



[Wet Bed Gang] Ngana Zambi

É verdadeiramente estranho o silêncio mediático em torno de Wet Bed Gang. O álbum português mais rodado no Spotify em 2021 não mereceu olhar crítico de nenhum dos órgãos de comunicação social “de referência” e a voz do grupo de Vialonga não ecoou em entrevistas como seria suposto ter ecoado tendo em conta que a sua música é uma das mais vincadas marcas da presente geração. Na entrevista que nos concedeu em nome do seu grupo, Zizzy ofereceu uma possível explicação para essa “resistência” quando se referiu à dificuldade em recolher reconhecimento por parte da própria indústria que integram: “Ganhar é complicado porque nós não damos nada a ninguém. Nós somos independentes. Nós somos blacks. Jovens que não têm problemas de dizer como são e mostrar que são como são. E aos olhos do mundo ainda somos os pretos do bairro”. Por aqui, uma vez mais, não regateámos o aplauso, com Manuel Rodrigues a deixar tudo bem explicado: “O que mais impressiona no álbum de estreia dos Wet Bed Gang nem é o universo de beats e temáticas abordadas, mas sim a forma como tudo está misturado. Os timbres, a organização por frequência, as camadas que gentilmente se sobrepõem sem tropeçarem nas restantes. E isso estende-se ao campo das intervenções dos protagonistas. Tudo ordeiro, sem atropelos, com os efeitos a serem minuciosamente aplicados e a beneficiarem a dinâmica da canção, como o exemplifica a catadupa de delays em ‘Balenciaga'”. Conteúdo e forma em perfeita harmonia. Coisa rara.

– Rui Miguel Abreu



[Dianna Excel] XL 

Nos anos 70, Wendy Carlos abriu o precedente para que ninguém estranhasse a mulher transgénero na música electrónica. Na idade ultra-contemporânea de SOPHIE, Arca ou Lotic, a correlação passou a significar um domínio natural da cena, tipicamente em registo de implosão violenta, extensível em português a Aurora Pinho, Linn da Quebrada ou Odete. 

A batida mercenária no início de XL, como uma chibatada industrial, pode dizer-nos o que esperar — se já tivermos lido a biografia de Dianna Excel. Terá ela uma vontade semelhante a outras mulheres trans na electrónica, de violentar os circuitos integrados do estilo? De vez em quando, a sugestão paira, mas a sugestão não é vinculativa. Dianna Excel age bem a tempo de não cairmos numa comparação sem nexo, uma expectativa sem corpo. 

Não é que XL fraqueje em intensidade, ou deixe de estudar emoções raramente postas em disco: basta darem conta de “How does it feel like?”, doce e destrutiva euforia de um querer saber que é, na verdade, uma vida a eclodir. Mas o som assertivo de Dianna Excel não derruba forçosamente nenhum limite: é, aliás, mais liminar do que impositivo — está entre horizontes. Depois de baby sura, cujas melodias de cloud (t)rap ainda emergem, a artista forma uma bolha segura de desconstrução e franqueza. Música de um estômago tão habituado a borboletas quanto a murros.

– Pedro João Santos 

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