Digital

Wet Bed Gang

Ngana Zambi

Edição Independente / 2021

Texto de Manuel Rodrigues

Publicado a: 21/02/2021

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Passaram-se quatro anos do lançamento de Filhos do Rossi, EP que albergava canções como “Não Sinto” e “Não Tens Visto”, dois importantes passaportes para aquela que foi a primeira relevante marca artística dos Wet Bed Gang. Muita coisa aconteceu, entretanto. Da sombra do quase anonimato, o colectivo de Vialonga saltou para os holofotes do estrelato. Viram a sua música a rasgar os limites do bairro — geográficos e não só — para as playlists da rádio, dos serviços de streaming, com direito a incalculáveis partilhas nas redes sociais. No YouTube, as visualizações subiram em flecha, num ritmo alucinante que fez “Devia Ir” alcançar valores galácticos — 41 milhões de views é uma meta que não está claramente ao alcance de todos. Ainda no campo das conquistas, destacam-se as nomeações para os prémios Play da Vodafone, outra prova do raio de alcance do quarteto formado por Gson, Zara G, Zizzy e Kroa. Encheram discotecas, incendiaram festivais e encabeçaram importantes eventos musicais como o MEO Sudoeste. Na edição de 2018 d’O Sol da Caparica foram intensos, apocalípticos, ciclónicos, assinando um dos melhores momentos da história do festival no palco com a chancela da BLITZ.

Muito se teorizou em torno do prazo de validade dos Wet Bed Gang. Que não passavam de uma tendência, sensível ao desgaste do tempo e tão sazonal quanto a esmagadora maioria dos hypes que, de tempos em tempos, cruzam a atmosfera com a intensidade de um luminoso cometa, mas que, tal e qual o corpo cintilante, rapidamente se fundem com o esquecimento. Dizia-se que não resistiriam a um Verão, que não correriam mais do que uma simples recta festivaleira, que seriam um fenómeno passageiro. Mas o nervo e o sangue na guelra mostraram precisamente o contrário. Há modas que passam e outras que vêm para ficar. Esse parece, até à data, o caso dos Wet Bed Gang. Bateram quando tiveram que bater — tremor de terra de intensa escala, diga-se — e tiveram o arcaboiço para sustentar a sua estrutura artística nos anos que se seguiram. Nem eles são o Lil Nas X, nem a sua carreira se pode resumir a uma música apenas. Cavalgam nos moldes do actual paradigma da indústria mas não recorrem à manipulável equação digital para se tornarem num fenómeno. E à medida que vão libertando singles nas diversas plataformas online, os WBG deixam algo bem saliente: não obstantes os bangers construídos de forma isolada e projectados para fazer tremer sistemas de som em situações pontuais, existe paralelamente uma vontade de criar um legado, uma longevidade, uma ideia de continuidade.

E que crescidos eles estão. Crescidos na forma como pensam as suas músicas, no encadeamento de rimas e das intervenções, nas suas ideias e no olhar que lançam sobre o que os rodeia. Ngana Zambi, a estreia em formato longa-duração, editada hoje, ajuda-nos a alcançar esta ideia. Para já, o próprio título. Ngana Zambi significa “protector” ou “anjo da guarda”. Bonga, o convidado especial que trata de narrar o álbum, explica-nos, a dada altura, que “não tem forçosamente a ver com religião; porque protecção, quem te protege, pode ser o teu pai, a tua mãe, o teu avô, o teu vizinho”. E é precisamente no tema-título, produzido por El Conductor, que os Wet Beg Gang homenageiam essa protecção, colocando o coração nas mãos e dedicando versos aos seus entes mais queridos, naquela que é, talvez, a canção mais sentida e profunda do repertório do colectivo. Ainda que a ostentação e a exaltação do material seja uma das temáticas centrais no discurso dos Wet Bed Gang, como se ouve em “300” ou “Balenciaga”, há sempre espaço para respirar fundo e deitar cá para fora belas palavras de homenagem e agradecimento que se colam de forma melosa ao papel, ao instrumental e, claro, ao ouvido. Balenciaga, Versace e Gucci são algumas das marcas que entraram no vocabulário — e no roupeiro — do quarteto, contudo, como Zizzy disse em conversa com o Rimas e Batidas, “aquilo vai virar pano daqui a um tempo. Curto muito mais do facto de poder ajudar a minha mãe. Esse é um extra fixe, mas não damos valor a isso”.

Ngana Zambi conta com a produção de nomes como Lhast, Holly, Lazuli, o já referenciado El Conductor e, como não podia deixar de ser, o omnipresente Charlie Beats, figura central na caminhada dos Wet Bed Gang, uma espécie de Dr. Dre ou Rick Rubin nos comandos da máquina do colectivo, já que o seu contributo vai muito além da mera criação de instrumentais. É o fio-condutor que une as texturas e vibrações do disco, mesmo nos temas que não são por si assinados. E há muito por onde escolher. “Head Na Glock” para contaminar audiências em festivais; “300” para ouvir no afinado soundsystem de uma discoteca e sentir o gravalhão wobble a massajar o peito; “Depois da Chuva”, a versão 2.0 de “Devia Ir”, para dar um tempero agridoce a relações conjugais; “Bairro” para puxar fogo ao cachimbo e levitar; “Ngana Zambi” para reflectir sobre a importância dos laços familiares, mais ainda numa altura em que o distanciamento social causado pela COVID-19 nos mostra aquilo que é realmente importante. Mas o que mais impressiona no álbum de estreia dos Wet Bed Gang nem é o universo de beats e temáticas abordadas, mas sim a forma como tudo está misturado. Os timbres, a organização por frequência, as camadas que gentilmente se sobrepõem sem tropeçarem nas restantes. E isso estende-se ao campo das intervenções dos protagonistas. Tudo ordeiro, sem atropelos, com os efeitos a serem minuciosamente aplicados e a beneficiarem a dinâmica da canção, como o exemplifica a catadupa de delays em “Balenciaga”. E se em tempos remotos se chegou a sentir uma certa discrepância entre os volumes das vozes de Gson, Zara G, Zizzy e Kroa, Ngana Zambi faz-se valer do rigor do fio de prumo para acertar tudo ao milímetro.

Para muitos, Ngana Zambi poderá não soar a uma completa novidade, por algumas das músicas que o integram já terem rodado vezes sem conta nos auscultadores ou até no rádio do carro dos fãs e seguidores. Poderá até haver quem diga que este trabalho não acrescenta muito à caminhada de um colectivo que, até à data, tem vivido sobretudo de EPs e singles soltos. Não obstante, se olharmos para a sua estrutura e para a aura que o envolve, rapidamente percebemos que este álbum assume maior relevância interna do que externa, por se tratar de um marco importante na carreira do colectivo — o facto de ser editado a 21 de Fevereiro, dia em que João Rossi sopraria mais uma vela, mostra que estamos perante um artefacto de elevado valor sentimental, com um sublinhado simbolismo. Rossi, os teus filhos estão crescidos.


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