Em Burburinho, Leonardo Pereira olha pelo retrovisor e oferece destaque aos discos — muitas vezes não tão óbvios — que mais o marcaram ao longo do mês anterior, com especial enfoque para tudo aquilo que se vai colhendo nos campos do hip hop. Sem restrições ao nível da estética, por aqui vão cruzar-se propostas que vão desde o mais clássico boom bap às cadências soulful que aproximam o género do r&b, não esquecendo nunca as reformulações mais modernas do som nascido em Nova Iorque, que hoje gera infindáveis ecos a partir de qualquer cidade à volta do globo, através das visões gélidas do trap ou do drill.
[Sleepy Hallow] Boy Meets World
Boy Meets World, o 3º projeto de Sleepy Hallow, chega-nos dois anos depois de Still Sleep?, um hiato já pouco comum para o status quo da indústria — neste caso, causado também por um aprisionamento em maio. Chega-nos, no entanto, polido e detalhado, notando-se que o tempo foi usado para limar arestas e fazer com que o conjunto de faixas nos soe o mais perto possível da visão ideal que o artista tinha para ele. Diretamente de Nova Iorque, foi-se fazendo conhecer por um drill que se cede a instrumentais muito mais leves do que o habitual neste género, carregando também uma lírica mais emocional e introspetiva, quase amorosa em partes. Estas escolhas de temas e de beats acabam por nunca destoar da esfera a que estamos acostumados no drill, pois a violência vai estando presente, apenas em setores da vida menos bélicos e mais sentimentais.
Esse lado está também presente na voz de certos convidados, como Fivio Foreign, TaTa e Lil Tjay, enquanto outros adicionam toques mais ecléticos ao disco — Doechii canta um refrão maravilhoso em “A N X I E T Y”, uma das faixas que destacamos do disco, 347aidan ajuda no coro de “Die Young”, e Mikey Bands e Jay Bezzy entram no delírio house de “Perky Man”, uma inclusão absurda no álbum, mas que nos obriga a dançar um bocadinho — quem diria que até do drill sairia um four on the floor orelhudo? A produção ficou a cargo de Boone McElroy, Great John, Marshmello, Nephxw & Project Kidz, que escolhem o caminho do ecletismo, mas que — fique registado — nunca recusam uns 808s encorpados, embora escolham acompanhá-los de guitarras minimalistas, sintetizadores etéreos e um trabalho de samplagem maravilhoso. Anotámos para nós como especiais o refrão de “Lift Me Up”, de Rihanna, em “All The Way”, e de “Somebody That I Used To Know”, de Gotye, em “A N X I E T Y”. Ninguém fica com sono com Sleepy Hallow.
[gonsalocomc] XpecialXpacial
A competição para a beat tape do ano tem um novo participante, e é português. Gonsalocomc já começa a ser um nome conhecido do underground tuga, ele que exibe no currículo o EP Mal Passado Bem Pensado, com Wugori, de 2021, e sucessivas colaborações com vários up and comings do panorama nacional, tendo lançado também, em agosto último, o EP EURO com MC falabaixinho (Edgar Correia, de MONA LINDA e dos Conjunto Corona). Desta feita, vai à conquista sozinho pela 3ª vez na sua curta carreira e apresenta-nos um conjunto de 12 faixas maravilhosas, que esvaem groove e obrigam a abanar a cabeça ao ritmo de uma percussão cozinhada pelas mãos de um chefe de inúmeras estrelas Michelin, com todos os hi-hats, snares, kicks e claps a saberem a algo diferente, tudo tendo o seu lugar específico e adequado na refeição. O trabalho de samplagem é um cafuné bem feito que nos embala até um mundo de sonhos em que nada pode correr mal. Todas as alegorias elogiosas a este disco seriam difíceis de encaixar aqui, portanto sugiro-vos que imaginem as vossas depois de o ouvirem. E a vontade é ouvi-la repetidamente.
[Sick Wid’ It] HOGGISH NIGHTS
A transição entre verão e outono este ano parece estar a demorar muito. Foi um setembro em que realmente começou a cheirar a castanhas assadas, mas sentimos que ainda podíamos estar a comê-las na praia. Este atraso transicional talvez se deva ao calor que esta edição causou no mundo — HOGGISH NIGHTS é a última compilação editada pela Sick Wid’ It Records, uma label californiana fundada já em 1989 por E-40. Já com umas centenas de discos no catálogo, é difícil perceber quantas compilações já estão cá fora com este selo — no Discogs são 9, na Wikipedia são 6, e no Spotify são 3. De qualquer maneira, pouco interessa para nós — o que nos interessa aqui são as puras vibrações hyphy da baía da Costa Oeste. Instrumentais melódicos e paisagísticos, graves pesados e ribombantes, lírica relaxada num storytelling casualíssimo pintado de autotune, os artistas da Sick Wid’ It puseram tanto sol neste disco que era impossível o outono chegar com força. E porque seria feio não nomear aqui alguns dos artistas que E-40 escolheu para o acompanharem (sim, ele também se faz ouvir no disco) e cativar-vos para o melhor que apresentam, fica aqui uma lista resumida: Cousin’ Fik leva-nos imediatamente para os anos 90 no gangsta rap de “What We On”; B-Legit, Clyde Carson e Work Dirty materializam-se no pináculo da ostentação em “Casino”; Choose Up Cheese desenrola um flow maravilhoso de treinador em “I Got Plays”; e em “Quakin’”, The Mossie e DecadeZ escolhem a violência na faixa mais potente do disco.
[MONEY MOGLY] GOATWXLVEZ
A voz de MONEY MOGLY é a de quem sabe perfeitamente quão bem soa quando está a rimar. A ginga com que viaja através das frequências de som transporta a certeza que está a destilar talento em todas as batidas de TeV95, produtor que se encarrega de todos os instrumentais do disco. Os floridianos juntaram-se neste GOATWXLVEZ para criar um projeto com uma aura que puxa de tons mais assombrados, juntos com samples que vão colorindo uma ambiência obscura. As líricas e o flow apontam para um underground menos explosivo, menos espalhafatoso — é um hip hop com frases enunciadas, um vocabulário narrativo mais poético, mais cerebral, com um conjunto de referências históricas e culturais que complementam bem o cenário que se está a tentar montar. Perdoem a comparação, mas a unicidade de MOGLY parece estar na mistura das qualidades dos seus pares: com uma voz que relembra a rouquidão de Meechy Darko, uma cadência à Joey Bada$$, uma escolha de temas mais parecida com a de rappers mais diretos na sua comunicação como a escola da Griselda e um à vontade para brincar no beat que podemos equiparar a Open Mike Eagle. Talvez vos estejamos a recomendar o próximo favorito dos fãs deste segmento do game.
[Monzy The Terrible & Dylan Land] PERMANENT//PROSTHETIC
Monzy The Terrible é uma nova voz de Chicago a dar os seus primeiros passos no hip hop, tendo escolhido para esta sua travessia uma direção na sua lírica mais intelectual, filosófica, quase religiosa. Mas não se fica apenas por temas etéreos, optando também por utilizar a sua poesia como um veículo para uma crítica social bem mordaz. Como narrador, é cativante, e como rapper, exibe um controlo sobre a linguagem que é dos mais interessantes que ouvimos este ano. No seu segundo disco acompanhado de Dylan Land, produtor e engenheiro de som que instrumenta um jazz contemporâneo maravilhoso nas batidas, parece estar na sua praia. O seu flow aproxima-se da spoken word, tal é a maneira que se recusa a que qualquer uma das suas profecias não seja captada na íntegra. Até através da Bíblia Monzy conta as suas histórias. Este é para estudar e decifrar.