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Fotografia: Pedro Roque
Publicado a: 10/10/2021

Novas frequências no Barreiro.

OUT.FEST’21 – 9 de Outubro: devotos da descoberta

Fotografia: Pedro Roque
Publicado a: 10/10/2021

Na décima sétima edição do OUT.FEST, o Barreiro voltou a receber alguns dos artistas mais essenciais da música exploratória. Num ano em que o evento teve dois momentos, um primeiro em Junho, e outro agora em Outubro, esta parece ter sido a resposta da organização após um ano pandémico que deixou muito suspensão. Um regresso que acontece com um pouco mais de contenção, já sem as festas pós-concertos, mas sempre com um cartaz que busca o melhor do momento em diversas vertentes musicais. 

O dia 9 de Outubro trouxe visões urbanas em fogo lento e demonstrou que a decomposição sonora poderá abrir portas a novas dimensões. No take final do evento, a tarde começou cedo na Sociedade Democrática União Barreirense – Os Franceses. The Humm foi o título da apresentação de João Sarnadas que ao longo de duas horas ecoou na sala. Uma experiência sensorial feita de tonalidades e texturas, como antídoto à vertigem da semana. Sarnadas cristalizou esse momento e extraiu dele uma sensação de bálsamo, encarnação drone dada naturalmente a percursos imaginários nos confins da mente. O aparente hermetismo desta abordagem ganha sempre pelas possibilidades infinitas que alcança e pelo facto de cada momento se definir como irrepetível. Transe real e um mote perfeito para o que se seguiria.

Já no anfiteatro do parque Paz & Amizade, o cenário era bucólico. A fauna e flora circundante conferiram uma aura beatífica de fim de dia, ideal para dialogar com a linguagem urbana e confessional dos Space Afrika. No último ano, o duo de Manchester logrou criar uma personalidade própria, tida como uma das propostas mais refrescantes do momento. Honest Labour é, em boa parte, o álbum responsável por esse fascínio que se tornou unânime. Uma reinterpretação sentida da electrónica britânica na última década alinhada com um sentimento de melancolia e saturação os tempos modernos. A natureza noctívaga dos Space Afrika faria imaginar um concerto num qualquer edifício fabril abandonado, contudo, a leveza e a sucessão acidental dos sons em redor do parque também se revelaram pertinentes na sua actuação. Com alguns contratempos técnicos no início do concerto, pouco tardou para que o manto sub-sónico nos envolvesse a todos. Mais que canções ou improvisação pura com destino incerto, o formato em palco dos Space Afrika apresenta-se como uma exposição viva de quadros sonoros que se criam, movimentam e se desbotam em matéria. Não estaria errado descrever as suas actuações em algo como uma instalação em tempo real. Na verdade, são peças que vivem de si: a cadência dos ritmos resgatados ao hip hop ou dubstep, as gravações de campo pela metrópole e o modo de enlaçar o cosmos nesta tentativa de traduzir as ruas e a essência humana. Honest Labour traça em muito estas inquietações e aqui, Joshua Inyang e Joshua Tarelle, manejaram as suas máquinas numa viagem introspectiva, sem propriamente início ou fim  – pois a música de Space Afrika não cede a estes limites formais, quase que continuando na cabeça de cada um, mesmo quando se calam e o público se levanta dos assentos. É um sinal de empatia e profunda conexão, pessoal e intransmissível. Mas entendida no colectivo. 

Com o avançar da noite, os abraços e reencontros com novos e velhos multiplicaram-se. Parece menor, mas não: festivais como o OUT.FEST também proporcionam esta dinâmica que se justifica pela devoção à música e aos momentos de descoberta. O Auditório Municipal Augusto Cabrita, localizado a poucos metros do anfiteatro, albergou os restantes concertos da noite.

Gustavo Costa foi o primeiro a invocar magia. Figura ultra-activa no Porto, e não só, foi ele o mentor do espaço Sonoscopia e autor de uma série de aparições em formações e discos. A percussão é a sua esfera de exploração, recorrendo a referências várias e soluções pouco convencionais para extrair mais e diferente energia de uma bateria e outros instrumentos percussivos (de menor ou maior dimensão, pois em seu redor disponha de um manancial invejável). Respeitando o silêncio como propulsão, pontuação ou detonação, Costa partilhou uma fascinante lição rítmica. O leque de ambientes criado é apenas possível a quem há muito se encontra neste caminho para sempre inacabado da improvisação. A visão panorâmica em extrair elementos ao jazz, ao metal ou às possibilidades da electro-acústica, conferem um léxico mestiço em constante formação. Impossível de atracar num porto seguro, é na travessia das ondas que a sua expressão musical ganha rubor e genuína existência. Por vezes ritualista, outras tantas mais próximo do meditativo, o momento em fluxo que foi a presença de Gustavo Costa no OUT.FEST, sarou feridas e abriu brechas. A natureza em estado bruto – e tudo o que isso possa implicar.

Noutras latitudes, onde a bateria e guitarra eléctrica se cruzam para dar espaço à voz, a inquietude dos Still House Plants é impagável. Foram uma autêntica lufada de ar fresco quando em 2020 apresentaram o primeiro disco e obtiveram atenção imediata da revista Wire. O trio que se conheceu na sempre fervilhante Escola de Artes de Glasgow é, talvez, uma das formações que melhor entendeu a volta que o rock actual necessitava de dar. Meta-punk sem querer ser, visceral e doce, o trio desmantelou a estrutura e a essência tradicionais para encontrar uma liberdade a seu uso. Esboços de canções que se transformam enquanto as escutamos. Porque as suas peças buscam aquela beleza do objecto incompleto, lacónico até, a banda serpenteia por tempos, ritmos e melodias ainda sem identidade. Vê-los ao vivo é igualmente uma experiência de escuta activa em que somos levados para a sua própria libertação. A voz de Jessica Hickie-Kallenbach é desesperadamente urgente, irrompendo num clímax fugaz entre a simples e complexa teia que os restantes músicos tecem. A forma DIY com que a devolvem é a única forma possível para fazer resultar tamanho desafio. É sem compromissos e de atitude frontal, com nos envolvem nessa partilha. A actuação primou por ser nada mais que certeira; espaço para quase-canções-pop e outras manifestações abstractas cuja fragilidade e força se sustentam em constante dinâmica. Facilmente o público se entregou a tamanha demonstração de criatividade. Os Still House Plants trazem certamente ecos de Deerhoof, Young Marble Giants ou Dirty Projectors, mas trazem bem mais que isso; trazem a lembrança de que o rock deve ser (também) isto: sem espinhas. 

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