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Ilustração: Riça
Publicado a: 25/02/2021

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #53: Serpente / Diogo / Steve Moore

Ilustração: Riça
Publicado a: 25/02/2021

Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Serpente] Irmãs / Alien Jams

Começa a ganhar regularidade conceptual, este output de Bruno Silva como Serpente: em 2018, na Sucata Tapes, uma edição repartida com Ondness, outro dos alter-egos do produtor, recebeu o título Celas Death Squad; Parada e Fé/Vazio, de 2019 e 2020, respectivamente, saíram ambas com carimbo da Ecstatic de Alessio Natalizia; e agora, já com 2021 em velocidade de cruzeiro (kind of…), na londrina Alien Jams sai este Irmãs.

O novo trabalho, que conta com edição física em cassete, opõe os temas “Da Clara” e “Para Celeste”, dois intrigantes mantras percussivos que prosseguem onde Fé/Vazio nos parecia ter deixado: a propósito desse registo, mencionei coordenadas distintas como o libertário techno de Detroit, o revolucionário free jazz ou o utópico quarto-mundismo de Jon Hassell. É lícito dizer que essas coordenadas não foram exactamente apagadas para este novo título, e que tanto a hipnótica cadência propulsiva como as suas invasivas polirritmias que parecem aleatoriamente sobrepostas (certamente com o intuito de nos confundir os sentidos e nos fazer perder o norte de “pista” enquanto nos mergulha numa realidade paralela) podem remeter para esses potentes legados do devir musical afro-americano mais exploratório. Por outro lado, nas colorações sintetizadas “DX7ianas” continua a sentir-se o eco do nevoeiro “exótico” em que Hassell sempre fez por se perder, como a luz que vence a copa das árvores e espalha vida pelo solo da floresta tropical. Aqui as percussões parecem representar esse emaranhado de vida que se vai entrelaçando em matéria orgânica e os sintetizadores a luz que faz crescer essa flora exuberante.

Ambos os temas se confundem, num torpor hipnotizante que nos impede de perceber onde começa um tema e termina o seguinte, como se fossem verso e reverso de uma mesma ideia, dentro e fora da pele, dentro e fora da luz. E há um exercício muito curioso (e até simples de realizar: eu consegui-o com dois browsers diferentes, cada um a debitar, em simultâneo, um dos temas) que consiste em escutar ambas as peças em simultâneo, sobrepostas, como se fossem uma só: o dobro do poder imersivo, o dobro do efeito hipnotizante. Bom mergulho!



[Diogo] Ruff Trax, 2021 / Extended Records

A ideia de “trax”, com raízes nos primórdios da cultura house de Chicago, muito graças à Trax Records, mas não só, sempre traduziu uma ideia de “funcionalidade” na música de dança, reduzindo o impulso criativo a um objectivo simples, ainda que nobre: criar combustível para a pista de dança. A quantidade de artistas, editoras e, claro, faixas que usam a palavra “trax” (obviamente “adaptação” da palavra “tracks”) traduz bem esse encaixe num continuum que se mantém vivo até aos dias de hoje.

Claro que, num 2021 ainda pandémico, reclamar essa ideia das “trax”, música para a pista, assume toda uma dimensão de activismo, com tanto de utópico quanto de político, que merece ser realçado. Mas isso encaixa na perfeição com a personalidade de Diogo Vasconcelos, DJ, documentarista da memória portuguesa da cultura de clubes, director da revista Pista e homem do leme da Discos Extendes, selo paralelo da Extended que agora lança este seu disco. Para ele, dançar é uma causa. E Ruff Trax, 2021 a devida consequência, uma tradução urgente e aguda de uma paixão desmedida.

São cinco peças que percorrem o caminho que se estende (lá está…) entre o funcionalismo electro-tecnóide de “Get On Your Knees”, o pulso hip-house-mutante de “Try Again”, o drum n’ bass full on e breakdélico de “Gil Vicente St.”, as fantasias pós-bass de “Keep Smiling” e o abstraccionismo house de “Altered State”. E em todas essas diferentes nuances, Diogo espalha uma total segurança e autoridade, com arranjos que são tão esparsos como eficientes, tão fisicamente propulsores, quanto espiritualmente estimulantes. Exactamente o que se quer de “trax” feitas a pensar nas pistas das nossas vidas que não tardarão a abrir de novo, precisando, pois claro, de matéria fresca para voltarmos todos a experimentar a sensação de levitação que só é possível no centro do clube, quando tudo – comunidade de corpos, DJ, frequências agudas, médias e graves, luz, energia… – se combina numa tempestade rítmica perfeita.



[Steve Moore] Analog Sensitivity / KPM-Be With Records

Não há um tempo para um disco como este Analog Sensitivity: as ferramentas usadas colocam-no algures numa era pré-MIDI (portanto pré-1985) e referencialmente estamos em terrenos explorados em etiquetas como a KPM e Bruton que entre finais da década de 70 e inícios dos anos 80 do século passado aproveitaram as possibilidades tecnológicas emergentes para lançarem no mercado discos com música que se prestava a genéricos de telejornais, a ilustrar documentários, para publicidade. Música funcional, algo discreta, mas profundamente eficaz a traduzir novas ideias: um novo mundo ligado electronicamente, indústria, ciência, laboratórios, comunicações. O espaço sideral!

Na entrevista que nos concedeu, Steve Moore, autor deste Analog Sensitivity, metade dos norte-americanos Zombi e criador de inúmeras bandas sonoras – electrónicas, pois claro – para modernos filmes de terror, explica que usou uma série de máquinas muito específicas neste disco: “Os sintetizadores que normalmente não posso utilizar para fazer bandas sonoras porque não têm conectividade MIDI ou CV. Como o meu Freeman String Symphonizer, que uso para as cordas em algumas faixas, e o meu Moog Minitmoog, que é muito semelhante ao Moog Satellite. Montes de sintetizadores de cordas diferentes neste disco: Logan String Melody II, Solina String Ensemble, Crumar Orchestrator. E muito Korg CX-3”.

Com essas ferramentas, Moore diverge um pouco da linguagem mais sinistra, sombria e gótica que parece marcar o seu output cinemático e este Analog Sensitivity soa mais tranquilo, etéreo, dreamy até a espaços. Ele mesmo sugere que poderia servir para ilustrar algum documentário sobre o fundo do mar ou sobre vulcões, ou seja, é música que espelha uma certa pulsão natural, desligada da acção humana, mais abstracta, sensível, mas não necessariamente emocional. Não se conta nenhuma história aqui, apenas se ilustra uma paisagem, de profunda beleza natural, poupada à presença humana. Em tempos de confinamento, entende-se a atracção por esse tipo de imagens. Música perfeita para escape via auscultadores, carregada de nuvens melódicas envoltas em reverb, sem marcações percussivas, toda poeira cósmica e luz reflectida em partículas de água suspensas. Às vezes é mesmo disto que precisamos.

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