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Ilustração: Riça
Publicado a: 07/08/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #34: Serpente / Kyron / Vitor Joaquim & Draftank

Ilustração: Riça
Publicado a: 07/08/2020

A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.



[Serpente] Fé/Vazio / Ecstatic

Este é o segundo álbum de Serpente (alter ego de Bruno Silva, que também assina como Ondness e é parte de Sabre, entre outros projectos) na Ecstatic de Alessio Natalizia, aka Not Waving, sucedendo a Parada, a oblíqua vénia a Prince que o produtor lisboeta lançou o ano passado. E se Parada era uma carta de amor carimbada para Minneapolis e escrita no teclado de uma LinnDrum, este novíssimo registo complica um pouco mais as coisas ao cruzar coordenadas: o título remete para um clássico do hardcore que a Dischord lançou no arranque dos anos 80, o pulso determinado evoca a Detroit futurista de finais dos anos 80, as caóticas polirritmias parecem trazer algo do libertário abandono do free jazz, mas, na precisa escolha de alguns dos sons – tanto das percussões como dos sintetizadores – pode adivinhar-se o estudo atento dos mundos possíveis que Jon Hassell projectou a partir da sua prodigiosa imaginação. A qualidade comum que pode encontrar-se em todas essas distintas referências aqui de alguma maneira evocadas é a de uma clara exaltação espiritual, um imenso poder catártico que tanto se manifesta no mosh pit como na pista de dança montada numa qualquer nave industrial abandonada da Motor City, que tanto é relevante no loft nova-iorquino da era pós-Movimento dos Direitos Civis, como no estúdio que nos anos 80 se afirmava como laboratório de ensaio do futuro. Bruno Silva tem vindo a desenvolver uma altamente personalizada visão musical, desligada de correntes mais amplas, mas profundamente conectada com uma labiríntica memória onde tudo parece caber: África e o cosmos, electricidade amplificada e electrónica digital, cadências lineares e ritmos cubistas, ruído abrasivo e ambiências pacíficas. É desse caos que extrai a sua harmonia. E é desse passado que parte para encontrar o seu próprio futuro.



[Kyron] Starlit Remembrance / Miracle Pond

João Branco “Kyron” tem uma fascinante história que recua até ao Brasil, país em que viveu e onde deu os primeiros passos na música, integrando a “contra-cultura” new wave dos anos 80 do Rio de Janeiro que mais directamente se ligava com o espírito tropicalista da tradição local. Em Portugal, onde se fixou mais tarde, fundou os Hipnótica, grupo de que orientou os destinos entre 1998 e 2010 e com o qual lançou meia dúzia de álbuns. Já na recta final do projecto Hipnótica, fez ainda trabalho paralelo como O Maquinista. E depois, claro, em 2013 estreou a nova aventura Beautify Junkyards, um grupo com que parece sintetizar todas as suas experiências passadas e que, entretanto, se ligou à britânica Ghost Box, etiqueta com que deverá editar novo longa duração ainda este ano.

Mas em jeito de interlúdio, Kyron lança agora, através da igualmente britânica Miracle Pond, o álbum Starlit Remembrance, compilação de material inédito recuperado para o presente mercê de um bem vindo gesto de arqueologia pessoal: a música agora lançada foi encontrada numa cassete datada de 1999 em que Kyron resguardou algumas das suas primeiras experiências no domínio da electrónica mais solitária, numa era em que, como o próprio admite, vivia mergulhado em cinematografia de ficção científica e nas respectivas bandas sonoras. No ano em que a música agora revelada foi criada, os Hipnótica lançaram o seu segundo álbum, Enter, registo em que a sua pop informada por Stereolab e pelas mais exploratórias experiências dos terrenos pós-rock já arriscava a convivência com as ferramentas da electrónica que aqui foram por Kyron aplicadas até ao limite.

Curiosamente (ou talvez não…) não há exactamente algo que date a música de Starlit Remembrance. Este trabalho poderia, na verdade, ter sido gravado em 1983, 1999 ou 2020, e isso acontecerá, porventura, por resultar de um conjunto de referências muito particular, coleccionadas na tal “dieta” de cinema de ficção científica e nas suas respectivas bandas sonoras. O interessante, é como João Branco revela aqui um agudo antecedente para o trabalho desenvolvido com os Beautify Junkyards, grupo que combina uma devoção pelo psicadelismo e um certo pendor tropicalista com um aturado estudo da história da electrónica mais “assombrada” por ideias de futuro que entre os finais dos anos 60 e finais dos anos 90 do século passado sustentaram algumas das mais interessantes discografias para que a Hauntology hoje remete (Broadcast, Plone, Boards of Canada, etc). Há 21 anos, Kyron já revelava muita sintonia com essa música que resgatava o passado através de memórias pessoais e de experiências nitidamente geracionais. E a música de Starlit Remembrance, com o seu carácter lo-fi, apoiada em programações rítmicas algo musculadas, mas sobrevoada por um ambientalismo descaradamente “cinemático”, com interessantes gestos de gestão de tensão dramática e com algumas ideias de sound design manifestadas na mistura “espacializada” que já denotava uma certa ambição narrativa (confirmada pelos títulos carregados de referências aos “elementos”: “Sun”, “Asteroid”, “Fire”, “Water”, “Comet”…). Tudo isto organizado em temas de diferentes durações, alguns curtos apontamentos que quase  nos fazem pensar nas “cues” tão comuns em discos de library music, micro temas que serviam para sublinhar imagens de documentários, filmes ou reportagens. A Miracle Pond edita este Starlit Remembrance em cassete, formato apropriado já que foi numa cassete que esta música ficou a aguardar que o futuro a descobrisse.



[Vitor Joaquim & Draftank] At Fonoteca Lisboa 2005 / Ed. de autor

Depois da edição de Nothingness em finais de 2019, este é já o terceiro título da Live Series que resulta do mergulho de Vitor Joaquim nos seus arquivos pessoais de performances ao vivo, todas (até agora…) datadas da mesma era, 2005/2006: At the Splitz London documentou o seu encontro com Simon Fisher Turner e At ZDB Lisboa uma noite de especial diálogo com Carlos Zíngaro. O registo que agora aqui se apresenta foi feito na já desaparecida Fonoteca Municipal e o modelo é o mesmo: Draftank, aka Nuno Moita, apresentou-se como executante de leitor de CDs (foi esse o seu instrumento na apresentação de 1 de Julho de 2005 na sala que então funcionava no edifício Monumental, no Saldanha, em Lisboa), com o sinal da sua performance a ser repartido entre a mesa de mistura que enviava sinal para o PA e a placa de som de Vitor Joaquim que assim recebia matéria sónica para ser tratada, processada e manipulada em tempo real. O que se escuta, e que, como Joaquim cuida de sublinhar, não foi alvo de qualquer edição, representando na essência a performance dessa noite, é um longo improviso (a peça ultrapassa os 35 minutos), de ruídos abrasivos, com um carácter percussivo abstracto, granular, como se o duo fosse capaz de expor os próprios pulsares eléctricos que certamente injectariam vida nas suas máquinas. Isto é glitchtronica altamente intrigante, livre, que parece mostrar o som oculto da própria tecnologia em funcionamento, música sem princípio nem fim, que habita uma dimensão tecnológica paralela, normalmente inacessível aos ouvidos humanos, mas trazida aqui para primeiro plano, tal como acontece quando se projecta uma imagem de uma qualquer estrutura atómica ampliada milhares de vezes por um potente microscópico. Curioso pensar que este é o som de tecnologia entretanto caída em desuso (os leitores de CDs, a placa de som e certamente o computador que Vitor Joaquim usaria à época) registado num lugar que se estabeleceu como um espaço para a preservação de memórias musicais e que, entretanto, desapareceu do mapa. Isto é, por isso mesmo, o registo de um lugar que foi vítima de opções políticas de gestão municipal e de máquinas que o tempo capitalista atirou para o aterro da civilização.

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