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Ilustração: Riça
Publicado a: 16/05/2020

Techno, house, hauntology e outras ondas.

Oficina Radiofónica #24: Tózé Ferreira / Nídia

Ilustração: Riça
Publicado a: 16/05/2020
A Oficina Radiofónica é a coluna de crítica de música electrónica do Rimas e Batidas. Música Electrónica? Sim. Techno e footwork, house e hauntology, cenas experimentais, ambientais, electro clássico e moderno, drum n’ bass e dubstep, dub e o que mais possa ser feito com sintetizadores e caixas de ritmos, computadores e osciladores e samplers e sequenciadores e outras máquinas que façam “bleep”, “zoing”, “boom” e “tshack”.
 

Wasser Bassin Release: Tózé Ferreira – viagem de inverno – WB 013LP

Wasser Bassin proudly presents, “viagem de inverno“, Tózé Ferreira‘s first vinyl release in more than 30 years!
[Tózé Ferreira] Viagem de Inverno / Wasser Bassin Em retrospectiva, é fácil argumentar, beneficiando da incrível vista que se tem aqui do alto de 2020, que a estreia de Tózé Ferreira em 1988 com Música de Baixa Fidelidade (lançado na Ama Romanta de João Peste) foi auspiciosa, tamanho o arrojo do disco. Na verdade, o disco que na sua prensagem original de vinil se tornou uma modesta peça de colecção (as cópias disponíveis no Discogs neste momento oscilam entre os 50 e os 100 euros), passou entre os pingos da chuva crítica da época, tendo, aliás à semelhança de outro álbum igualmente inscrito no catálogo da Ama Romanta em 1988, Plux Quba de Nuno Canavarro, ficado injustamente esquecido nos labirintos da memória. Só que, ao contrário do registo de Nuno Canavarro que foi relançado na Moikai de Jim O’Rourke logo em 1998 e, mais recentemente, na Drag City, Música de Baixa Fidelidade não beneficiou de um mais amplo reconhecimento póstumo e só viria a merecer uma modesta, ainda que importante e oportuna, reedição em CD em 2002 através da Plancton. Um par de anos antes, em 2000, Tózé Ferreira lançou Músicas Fictícias na AnAnAnA e depois disso apenas silêncio. Um longo silêncio só interrompido num discreto regresso à Plancton em 2018 com a edição “artesanal” em CDr de Lullabies For a Troubled World. Por isso mesmo, o anúncio pela Wasser Bassin da edição em vinil de Viagem de Inverno oferece uma imperdível oportunidade de nos reencontramos com a extraordinária música de Tózé Ferreira. É possível compreender as tranquilas derivas desta Viagem de Inverno, trabalho em que o compositor parece retomar as mesmas premissas ambientais e exploratórias da sua estreia de há mais de três décadas, como um desafio ao tempo. As suas delicadas paisagens de timbres sépia arredam-se de uma noção de progressão temporal e surgem como mantos aurais que simplesmente se estendem sobre a nossa percepção, ricos de detalhes preciosos, de pinceladas fugazes de electrónica computorizada e subtis sombreados sintetizados, de ecos subliminares de piano e de texturas que resvalam entre planos mais agrestes, como a introdução do derradeiro tema do alinhamento, “Electronix”, que soa como o registo de um radar que capta sinais radiofónicos vindos dos confins da galáxia, e outros mais suaves feitos da reverberação harmónica do cristal como a que se apresenta em “Fagood”, a peça que nos atira para dentro desta Viagem de Inverno. “Max Tot”, por seu lado, é filigrana concreta, uma delicada escultura de ressonâncias que se oferece, abstracta e esplendorosa, aos nossos ouvidos, enquanto “Strange” é toda nervo, a banda sonora para um thriller estranho em que se vislumbram apenas difusas silhuetas. Tózé Ferreira confirma neste novo trabalho que é uma peça crucial do puzzle da nossa electrónica mais ambiciosa e exploratória, uma mente altamente criativa que desenha música que se faz de intrigante inquietação, de exploração crítica das possibilidades que a manipulação sonora com ferramentas digitais oferece ao compositor moderno. Tózé Ferreira “esperou” 12 anos para editar o seu segundo trabalho e mais 18 para nos trazer o terceiro. Talvez o facto de “apenas” dois anos terem, entretanto, passado até que esta Viagem de Inverno nos fosse proposta signifique que haja mais música a caminho. E se assim for, como de resto sucede na sua música, Tózé Ferreira terá conquistado o tempo. Dedos cruzados, deste lado.
[Nídia] Não Fales Nela Que A Mentes + Badjuda Sukulbembe / Príncipe Em 2017, Nídia assinou o verdadeiro triunfo Nídia É Má Nídia é Fudida e nas voltas do calendário que se seguiram pudemos assistir em directo a um justo reconhecimento do poder da sua visão, com aplausos a estenderem-se da Pitchfork à Rolling Stone e daí à DJ Mag. Agora, este estranho 2020 (re)compensa-nos com dupla adição de material de Nídia ao catálogo cada vez mais crucial da Príncipe: o álbum Não Fales Nela Que A Mentes e o single Badjuda Sukulbembe que merecem em ambos os casos correspondentes prensagens em vinil, como é, de resto, norma na editora lisboeta. Se as contas não falham por aqui, Nídia é, depois do colectivo Niagara que recentemente lançou Pais & Filhos, a segunda artista a assinar mais do que um álbum no catálogo da Príncipe, pormenor relevante tendo em conta a extensão de um catálogo que em quase uma década já soma três dezenas de edições. E a verdade é que escutando Não Fales… se justifica plenamente essa aposta no material com que Nídia vai dilatando a sua obra. Confirmando o seu domínio das ferramentas de criação que elegeu, Nídia estende a sua visão no álbum por 10 momentos distintos, ainda que complementares. Há três “raps”, um tríptico de faixas em que a produtora aborda uma cadência que, de facto, poderia receber rimas em cima: L-ALI poderia adornar com a sua rebuscada ginástica verbal o pulsar de “RAP Complet”; seria maravilhoso escutar a vibração juvenil de Nenny na mais luminosa “Raps” que até inclui uma daquelas melodias que é meio-refrão; e “Rap Tentativa” poderia certamente acomodar o flow sinuoso de alguém como Landim e ser um daqueles bangers que inundam “ear pods” brancos em hora de ponta. Nada mais justo. E Nídia mostra igualmente refinada mestria na forma como gere a tensão sensual dos padrões mais lentos, alinhando em “Popo”, “Royal” ou, e talvez sobretudo, “Emotions” argumentos que reforçam a originalidade da sua visão, com a gestão dos pulsares rítmicos (sempre imaginativa, diga-se, com Nídia a aplicar uma ideia de “arranjo” mesmo aos elementos percussivos) a ser somada a uma clara dimensão emocional exposta no plano melódico e feita em iguais partes de melancolia (“Popo”) e de uma certa exuberância de prazer (como em “Emotions”). As pistas em pico horário (lá voltaremos) também encontram por aqui combustível com alta concentração de refinadas octanas, como é o caso do imparável “Tarraxo do Guetto” (com Gamboa) ou de “Capacidades”, tema em que Nídia explora o reluzente cromado pós-R&B capaz de deixar o sangue a ferver a qualquer um quando o passo acelera no refrão. Neste seu duplo regresso, Nídia propõe igualmente dois lados de maior experimentação no single Badjuda Sukulbembe: no lado A surge a infecciosa “Tarraxoz Academy” que carrega provavelmente a mais feliz aliança de um simples fraseado de piano com um grave que parece capaz, subindo o volume, de rebentar woofers mais incautos; e, no lado oposto, “Cheirinho” é uma pequena pérola que servida pela garganta de alguém como Solange poderia escalar os tops dos nossos corações com a mesma facilidade com que a água nos escorre por entre os dedos. Não há exuberância barroca na arquitectura sonora de Nídia que parece ainda assim capaz de erguer o equivalente sonoro a espartanas catedrais que parecem quase só feitas de vidro e metal, expondo a sua força e ao mesmo tendo sendo plenamente transparentes na sua componente emocional. Adornos mínimos, sofisticação rítmica máxima e imaginação na forma como se gere dramaticamente o espaço de cada canção. Nídia é boa. Nídia é – mesmo – lixada.

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