Texto de

Publicado a: 27/01/2016

pub

nuno_canavarro_plux_quba_review

[TEXTO] Rui Miguel Abreu

Num artigo de 2002, Mark Richardson, da Pitchfork, escreve que chegou a pensar que Nuno Canavarro seria uma ficção, um delírio conceptual saído da cabeça de algum “hipster”, talvez como aconteceria mais tarde com Ursula Bogner (aka Jan Jelinek, em 2008) ou Jurgen Muller (na verdade Norm Chambers, aka Panabrite, em 2011), fantasias ou molduras conceptuais que sustentaram mergulhos no passado enformados por um conhecimento contemporâneo. As parcas referências online que Richardson então encontrou convenceram-no, embora não totalmente, de que Canavarro seria real (“uma partida em duas línguas seria demasiado elaborada”, conclui). É real, podemos afiançá-lo.

A dúvida de Richardson traduz, enfim, alguns resquícios de mentalidade colonial (“como pode uma coisa tão genial ter acontecido tão longe de Londres ou Nova Iorque?”, parece perguntar-se, nas entrelinhas), mas também aponta para o facto da música secreta e electrónica portuguesa ser ainda um continente distante que importa descobrir e explorar. Para lá de Canavarro há António Sousa Dias (Os Abismos da Meia Noite…), Telectu (chegou a falar-se de uma caixa retrospectiva massiva da obra do duo de Jorge Lima Barreto e Vítor Rua a cargo da Vinyl On Demand, mas esses planos parecem para já ter sido abandonados), Filipe Pires, Anar Band e tanto mais que mereceria certamente atenção por parte das etiquetas que nos últimos anos se têm dedicado a mapear as regiões mais remotas da memória electrónica.

Que Plux Quba teime em agarrar-se ao presente é, claro, por si só, indicador da sua monumentalidade. Depois da sua edição original em 1988 pela Ama Romanta, edição entretanto extremamente valorizada no mercado de coleccionismo, o álbum de Canavarro voltou a merecer reedições em 1998 (em CD e LP, através da Moikai de Jim O’Rourke), nova prensagem em vinil em 2004 (de novo com carimbo Moikai), regressando agora em 2015 aos escaparates por mão da Drag City (que volta a recolocar esta obra em vinil depois de já ter feito o mesmo com os dois primeiros álbuns de Carlos Paredes – importante saber que à frente dos seus destinos na Europa a Drag City colocou o português Fred Somsen, responsável em tempos pela histórica e incontornável Ananana).

Esta oportuna reedição mereceu distinção por parte de algumas importantes publicações: a Fact, por exemplo, inclui Plux Quba entre as melhores reedições de 2015 ao lado de trabalhos de Gigi Masin, Savant, Alessandro Alessandroni, Else Marie Pade ou Fingers Inc.: “um LP com um longo e mítico estatuto entre ouvintes ávidos”, garante a publicação britânica que ainda aponta este trabalho como sendo precursor de importantes obras de Fennesz, Boards of Canada ou Aphex Twin. Tudo justas comparações e, uma vez mais, pistas para que se atribua a esta obra a sua real dimensão.

A primeira impressão que se obtém ao recolocar PLux Quba no prato (e esta é já a 4ª ou 5ª versão a submeter-se ao meu Thorens, depois de duas prensagens originais e da primeira versão analógica da Moikai que beneficiou de nova masterização a cargo do enorme Rafel Toral) é a de que estamos perante um disco que esconde de forma hábil as quase três décadas que já carrega nos seus ombros. Plux Quba podia ter saído ontem e ser assinado por um dos incontáveis exploradores das possibilidades infindas do universo da electrónica que se alargam entre Helsínquia e Marfa e explodem a sua criatividade em cassete, bandcamp ou vinil. Exactamente porque o seu centro não passa pelas ferramentas usadas (DX7? Jupiter 8?), mas pela forma como se submetem às ideias singulares de Nuno Canavarro, mais interessado em explorar um espaço emocional do que uma paleta de timbres ofecida pela tecnologia da época.

Nuno Canavarro fez parte dos pioneiros Street Kids, banda que também sustentou os primeiros passos de Nuno Rebelo, passou fugazmente pelos Delfins e, depois de Plux Quba, ainda registou uma colaboração com Carlos Maria Trindade, o teclista dos Heróis do Mar, em Mr. Wollogallu, outro pioneiro trabalho de 1991, este lançado pela União Lisboa. O facto de Plux Quba representar um singular momento da sua brevíssima carreira artística – sem o contexto colectivo dos Street Kids ou Delfins, sem o aspecto colaborativo da obra realizada com Maria Trindade) – ainda acresce ao seu fascínio continuado. Este disco pouco ou nada tem que ver com o que veio antes em termos de electrónica (seguramente nada, se considerarmos apenas o contexto português) e tanto parece explicar do que chegou depois. Que não tenha tido real continuidade é um mistério que só contribui para o seu inabalável estatuto.

Não é displicente o seu precoce impacto junto de gente como Jim O’Rourke ou, como explica Richardson, Jan St. Werner, o homem dos Mouse on Mars. Ambos terão descoberto este disco algures à entrada dos anos 90 e ambos terão acusado o seu peso em explorações próprias subsequentes: tanto os Oval, projecto de St. Werner com Markus Popp, como as experiências electrónicas do guitarrista Jim O’Rourke parecem ser resultados mais ou menos directos da exploração das direcções apontadas em Plux Quba. E tanto mais nos anos 90 poderia ligar-se a esta visão da electrónica.

Canavarro ergueu aqui uma pessoalíssima visão de um universo distinto, feito de micro-pulsares, de abalos invisíveis, de pequenos estremecimentos, com a electrónica e as field recordings de uma aparente bonomia doméstica (escutam-se vozes, algumas supostamente de bebés, quase como se algumas peças tivessem sido gravadas com um microfone aberto e esquecido num canto), feita de luz, de sol, que parece apontar para o laboratório de Cascais que o músico mantinha na época. Ouvido hoje, Plux Quba soa como uma suite, uma única e envolvente peça que tem o mérito de se apresentar completamente despida de marcas de um tempo. E esse carácter intemporal parece sustentar o seu contínuo regresso ao presente: foi um trabalho extraordinário nos anos 80, lançado por uma visionária Ama Romanta que este ano completa três décadas sobre a inauguração do seu catálogo; foi incrível nos anos 90, servindo de farol a tanta da mais exploratória música que essa década criou; voltou a fazer sentido na primeira década deste século, quando a indºústria da memória começava, timidamente, a apontar faróis para registos mais esotéricos e exploratórios; e agora, através deste relançamento da americana Drag City, volta a fazer a diferença num presente que não se tem cansado de explorar a memória electrónica – das derivas new age aos experimentalismos pioneiros, das prensagens privadas e obscuras de origens geográficas exóticas à produção mais aventureira das etiquetas de library. E mesmo perante um tão vasto e generoso cenário reimpresso em vinil, Plux Quba permanece absolutamente único, irrepetível e resolutamente genial.

 

[“O Fundo Escuro de Alsee”]

[“Wask”]

[“Crimine”]

pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos