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Fotografia: João Peixoto
Publicado a: 04/11/2023

Corpos sedentos por mais.

Mucho Flow’23 — Dia 2: da dream-pop de Evita Manji à eletrónica dilacerante de Amnesia Scanner

Fotografia: João Peixoto
Publicado a: 04/11/2023

Inauguradas as odes do Mucho Flow, o segundo dia arrancou com a devida suavidade. Naquele que é o berço do país, a vontade e a escuta atenta foram constantes desde o princípio até ao final da noite. Aclamada por sedimentar ideias vanguardistas sobre a música, a programação do festival começou com Miguel Pedro no seu experimentalismo inato e sombrio. Nas garagens do festival, um dos fundadores de Mão Morta subiu ao palco para cruzar o instrumentalismo com a natureza do dia-a-dia. Numa cidade onde o vento e a chuva não cessavam, dentro do festival parecia que os ruídos da rua ecoavam através do músico português.  Ao explorar a fisicalidade dos seus instrumentos, acompanhado pela distorção de uma guitarra tocada por Jorge Coelho, Miguel Pedro inquietou o público na medida certa. Terminado o espetáculo, todo o cenário mudou.

Não demorou muito até que a afluência de público arrastasse com ele a primeira constatação de entusiasmo festivaleiro — era cedo quando na grade da frente já haviam pessoas sentadas à espera de Evita Manji. Música e vocalista, a filha mais recente da rave culture fez levantar algumas questões. Ler e ouvir Evita Manji permite que toda a sua experiência sónica ande em torno da existência, das alterações climáticas, da física quântica e da morte. No entanto, a maior pergunta que surge é sobre o impacto que a artista grega terá no destino da música synth e onírica que descende de gente como Elizabeth Fraser ou, se quisermos até, de Lena Platonos. Associar Evita Manji apenas ao dream-pop seria ingrato, no entanto a sua estética é tão hedonista que torna difícil não desvincular este conceito. Ainda que não seja um dream-pop derivado do shoegaze mas sim da música trap, a presença de Evita em palco é absorvente e pueril, fazendo-nos acreditar que este é o futuro da música que está a tocar. A ingenuidade a que se prende para performar é um traço delicado e, ao longo do seu concerto, encarou o público e cantou como se declamasse poesia aos nossos ouvidos. Não é difícil imaginar que o palco podia ser o quarto da artista e que, embora diante de si estivessem tantas pessoas, isso não a impediria de dançar como se ninguém a estivesse a ver. Sem dúvida que foi o concerto mais íntimo do festival até então.

O mesmo não se pode dizer de Lost Girls. O duo noruguês constituído por Jenny Hval e Havard Volden subiu ao mesmo palco para lutar contra alguns desafios que, apesar de parecerem técnicos, também refletiram alguma falta de animosidade no concerto que estavam a dar. Disperso na expectativa de mudar de venue, no fim da atuação o público começou a caminhar em direção ao CCVF.



No Grande Auditório, a aguardar por uma das atuações mais esperadas do festival, uma multidão juntava-se no centro do palco já pronta para ver Heith. Numa viagem guiada até aos mais variados espectros da música, Daniele Guerrini começou pelo seu ambient característico, indo de forma ligeira até ao folk e terminando na alta intensidade que lhe é inata. Com uns visuais que fizeram jus à natureza da sua identidade sonora, o espetáculo de um dos artistas de maior referência na música eletrónica underground de Itália foi a porta que se tinha que abrir para o que veio depois.

Por entre brechas de luz intermitentes, Amnesia Scanner foi um vulcão que entrou em erupção em Guimarães. Apesar de ter sido a segunda vez que atuou no Mucho Flow, a dupla finlandesa comprovou que a sua desconstrução sonora é o principal potenciador da sua própria renovação. Num espetáculo impróprio para as mentes mais frágeis, as mensagens não vinham só da tela diante do público. Em tudo o que respira, o impacto da apresentação de STROBE.RIP (o seu mais recente trabalho), foi incomparável e dilacerante. Numa viagem até aos cantos mais recônditos do seu reportório, a eletrónica intensa e ritmicamente quebrada marcou a diferença. Poderia ter sido uma colagem sonora e lírica aleatória, mas não, foi a prova de que até no dadaísmo podemos encontrar narrativa. E esta não fica por aqui.

Depois da cidade ter sido inundada pela lava de Amnesia Scanner, deu-se início à primeira noite de clubbing. Preparado para aliviar as mentes saturadas pela densidade atonal, o Teatro de São Mamede abriu as portas para receber o momento de libertação que não podia deixar de ser a cereja no topo do bolo do segundo dia do festival. LCY estava na cabine a tentar passar despercebide, mas a não conseguir desviar os olhares de si. A contar mais uma das suas histórias sobre ficção científica e fantasia, a mente por detrás de He Hymns, abriu a pista de dança e deixou-a bem preparada para o DJ set de OK Williams. A segunda noite do Mucho Flow foi longa e encerrada com as mensagens subversivas e emancipatórias de King Kami, que deixou todos os corpos sedentos por aquilo que virá no terceiro e último dia do Mucho Flow.


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