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Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 02/06/2021

Pôr tudo cá fora.

Menino da Mãe ⟡ Dianna Excel no NOVO NEGÓCIO: uma questão de identidade

Fotografia: Vera Marmelo
Publicado a: 02/06/2021

Na semana passada, mais concretamente no dia 25 de Maio, a Galeria Zé dos Bois levou-nos até ao NOVO NEGÓCIO, um armazém na Rua do Açúcar, em Marvila, para um serão com dois artistas que têm ganho espaço no panorama artístico underground português e que, por mais distintos que possam parecer à primeira vista, acabam por ter pontos de união.

Dentro de um armazém escuro e com um aspeto poeirento (mas só o aspecto) esperava-nos uma plataforma com uma mesa, um computador lá em cima, alguns instrumentos MIDI e um microfone. Vindo de trás do público, um vulto alto com dois cornos e um véu apareceu para tomar conta das atenções durante uma hora. Dianna Excel subia assim pela primeira vez ao palco para apresentar XL, o seu primeiro e único álbum até agora, no qual, segundo o Bandcamp, “reflete o que sente como mulher trans, navegando pelo início da sua jornada de transição hormonal”. A artista, que se tornou recentemente membro da família Au Largo, apresentou as músicas pela ordem do álbum (apesar destas terem sofrido algumas alterações ao vivo), e transportou-nos numa viagem em que sensibilidade e poder se cruzam nas melodias cintilantes dos seus pads e synths, nos poderosos kicks e no auto-tune aplicado na sua voz.

As densas camadas de “Tudo o Vento Levou” inauguraram a noite, uma música onde o ambiente fundido com o deconstructed club imperam, seguindo para os sinos inocentes, mas sombrios, que cooperam com batidas poderosas em “Chuva Cai”, onde a voz de Dianna se emerge enquanto canta sobre o seu corpo celeste. As emoções ficam à flor da pele com a entrada de “7 Words From The Cross”, com uns coros dramáticos e reverberados que se vão transformando cada vez mais em noise (apesar de não abdicar da delicadeza), na qual a artista enumera: “sete palavras da minha cruz, que me pregaram e levarei atá ao fim”.  “Giroflé Giroflá (non binary)” abre espaço para uma espécie de deconstructed dubstep que ajuda Dianna a descobrir-se enquanto caminha “para a hora da verdade”; “Fantasyah” mostra-nos melodias mais ligadas ao electro e ao mundo que Dianna criou para se proteger — com cores lindas, roupas da Humana, muitos cheiros e magia.

Os primeiros segundos de “Alterna” chegaram para o público reagir com gritos, que fizeram Dianna sorrir e soltar um pouco mais o seu corpo em palco ao som do trance pesado que criava uma base para expurgar o sentimento de sentir que este mundo não é para si, culminando num “alternas até ao fim”. Seguiram-se “Borboletas (love song)”, “Growing My Wings”, “How Does It Feel Like?”, onde mostrou o seu lado mais ousado, terminando com “Semente”, onde se questiona sobre qual o seu corpo perfeito e sobre como a semente dele está finalmente a crescer. O final vem com “Corpo Transparente”, que termina com toda a gente a dançar.

À esquerda de Dianna, uma sombra criada pelas luzes do palco criavam uma segunda persona da artista, ainda maior e mais poderosa, com uma estatura e postura imperial, quase como se, por coincidência, pudéssemos ver o lado da artista que não pareceu estar ainda totalmente confortável com estar em palco, o que também não é fácil quando a arte tem um conteúdo tão pessoal e não há uma envolvência com um público sentado e distanciado, que não permite criar um ambiente de comunicação entre espectador e artista — aquele que torna uma sala de concertos um lugar tão especial e intenso. Acrescenta-se ainda a isto a natureza dançável das músicas que nos davam vontade de nos levantarmos e ir dançar juntos e celebrar as canções de Dianna, que são um símbolo puro e duro de liberdade. Ficámos, no entanto, com expectativas elevadíssimas para uma próxima oportunidade de a ver tocar numa altura em que o bass dite as regras do movimento dos nossos corpos, e não um vírus.



Ao entrarmos no NOVO NEGÓCIO para o segundo concerto, ao som de uma versão orquestrada de “Gymnopédie No.1”, notamos um ambiente diferente. A dimensão industrial do espaço cresceu, o ar ficou mais pesado. No centro da sala, vemos alguém no ar pendurado por uma corda. Na cadeira onde nos vamos sentar, vemos um guião de oito páginas que descreve detalhadamente O que teriam ouvido se estivessem calados, a performance de Menino da Mãe que estaríamos prestes a testemunhar. É desta forma que o artista lisboeta, que lançou recentemente o seu primeiro longa-duração, 20 20, se estreia no mundo das performances, e não poderia ter sido num ambiente melhor: organizado pela ZDB, que tem já uma relação próxima com Menino da Mãe, e num armazém que parece o playground perfeito para o agente do caos que ele é.

No texto introdutório no guião, diz que o oferece por não ter nada a esconder, que temos a liberdade de o levar para a casa, e que tudo o que foi escrito para a peça fazem parte de um livro que lançará em breve com todos os seus “escritos e poesias em noites de quarentena, em todos eles ébrio”. Por mais detalhado que esteja o guião, é impossível replicar um décimo do que foi a performance, muito por culpa da atitude in your face de Menino da Mãe, da sua postura e da sonoplastia feita por ele e por Peak Bleak, duo composto por Sal Grosso e Aires.

No princípio havia o drone. E foram daí que nasceram as primeiras palavras de Bertrand: “Eu não sou estranho, eu faço a mais do que tenho/ A anomalia é o vício, a anomalia é que nos move/ Eu não sou estranho, eu faço a mais do que tenho/ A felicidade surge no intervalo, a infelicidade é por si só o nosso estado constante/ A dança daqueles que cavalos querem ser”. Com a ajuda de um harmónio, o performer entra por entre o fumo e com uma luz apontada pela pessoa pendurada. Enche a cara com magnésio em pó e começa a deambular à volta do público, com um olhar que deixa todos os presentes desconfortáveis, enquanto, utilizando apenas um hoodie, duas meias e uma bota, cospe o que vai dentro de si, todo o caos e toda a dor de viver, grita mais e mais alto o quão difícil é simplesmente conseguir estar bem com toda a carga e bagagem que carrega na sua mochila, que foi fundida a si sem que ele pedisse. O ritmo aumenta, enquanto varia entre gritos puros e alguns mais melodiosos, enquanto as camadas sonoras se intensificam até que a luz se apaga.

Menino da Mãe reaparece no topo de um escadote, onde grita até não conseguir mais “Isto é tudo sobre mim, mas vocês decidiram vir”. Na verdade, é exactamente este o tema central das suas obras, isto resume todos os espetáculos que apresentou: Menino da Mãe utiliza a arte para conseguir purgar os seus demónios, mesmo que eles sejam uma parte inseparável dele, e encontra no palco (e no meio do público) um espaço onde sente ter liberdade para poder soltar tudo sem restrições, para se deixar totalmente de merdas porque ali, naquele momento, os moralismos canónicos não entram. Na performance pode andar nu, pode berrar mais alto que nunca, pode desabafar sobre as coisas mais pesadas que sente dentro de si, e os espectadores pagam para ver porque há um lado deles que é representado ali — e também há, claro, uma pequena inveja da liberdade que aquela pessoa está a sentir naquele momento. O objectivo do performer é deixar-nos desconfortáveis, e não é por isso que alguém arreda pé até ao fim da performance, tamanho é o hipnotismo da sua arte. Na verdade, e por mais que queira isso, nem tudo é sobre ele.

A gritar em plenos pulmões enquanto está pendurado no meio do ar a contorcer-se, o artista dirige-se finalmente ao palco, de costas para nós, e inicia a segunda parte do espetáculo. O transe criado pelos drones transforma-se em ruído puro que quase nos rebenta os tímpanos, onde conseguimos ver a fúria de Bertrand versão sonora, enquanto este recita a carta que escreveu ao amor da sua vida quando esta esteve internada no hospital por choque anafilático. É aí que declara todo o amor que sente por ela e como é a única coisa que precisa na sua vida, num acto de desespero de quem sente estar a perder a pessoa que mais importa: “Como um bom solipsista, tenho-me portado bem” — “o limite da minha linguagem é o limite do meu mundo” — “O meu mundo és tu”.

O caos vai progressivamente acalmando, os nossos ouvidos vão agradecendo (se bem que um pouco de noise nunca fez mal a ninguém, muito pelo contrário), até que as luzes em strobe acalmam e se tornam claras e o ruído se transforma numa voz serena em auto-tune protagonizada pelos dois músicos que o acompanham. Menino da Mãe vira-se para o público com um sorriso desconfortável estampado na cara e percorre, tal como fizera no início, a sala às voltas, sempre com essa expressão, um ar ébrio, como se tivesse finalmente excomungado todo o mal de dentro de si, entrando num estado alucinado em que se fecha num mundo fictício e consegue, finalmente, escapar à nossa realidade. O espetáculo termina com ele deitado no chão, nu, entre as cadeiras do público, que o aplaude incessantemente.

Numa noite que teve dois espectáculos completamente diferentes, ambos foram marcados por um tema: a identidade. Enquanto Dianna afirma nas suas músicas estar finalmente numa viagem para poder ser verdadeiramente ela própria, Menino da Mãe faz o oposto e tenta fugir de quem é e daquilo que o persegue. Mas, para ambos, a arte torna-se um espaço onde podem abertamente falar sobre si, sem medo de represálias, acabando por criar uma ligação com quem ouve e encontra algo relacionável consigo. Para es artistas, o palco é quase terapêutico e um instrumento de comunicação por vezes mais claro que próprias palavras. E o impacto dessa honestidade torna impossível que o público tenha saído igual do NOVO NEGÓCIO. Resta-nos agradecer aos artistas pela sinceridade nas suas palavras e acções, e por conseguirem dizer aquilo que por vezes nos custa tanto a nós.


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