Cassete / Digital

Menino da Mãe

20 20

Extended Records / 2021

Texto de Francisco Couto

Publicado a: 19/05/2021

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Por entre os destroços de uma cidade em ruínas, onde o caos e a desordem imperam, um jovem vestido de fato de macaco, com uma luz de mineiro na testa, mullet (que tinha já antes do ProfJam a tornar fixe), uma garrafa de whiskey numa mão, e um aspirador na outra, vive no seu habitat natural. Na verdade, é assim que Menino da Mãe vê o mundo em que vivemos, é assim que a sua mente se situa nesta sociedade que tanto espera e tão pouco dá de volta, e é assim que vai tentando viver o seu dia a dia. Em Felácios. Falésias. Falácias, EP lançado em 2019, Bernardo Bertrand mostra-nos um pouco de si: o artista vive ou, melhor, sobrevive dentro da sua própria mente destrutiva, entre o “erro que cometeu” ao ir estudar Filosofia e não haver “nada que lhe dê mais alegria”, sempre à beira do precipício e living on the edge, enquanto se afunda dentro de prazeres hedonistas para persistir nesta cidade que dá cabo de si. Dois anos depois, Bertrand apresenta-nos 20 20, o seu álbum de estreia, que prossegue o caminho ruidoso do seu projecto anterior e nos mostra mais um pedaço da sua relação com o que está à sua volta.

Como o título denuncia, este trabalho é dedicado ao último ano, apesar de algumas das suas músicas já existirem antes (podem ouvir “Ressaca” e “Bloco na Rua” nos concertos que disponibilizou no seu Bandcamp, por exemplo). 2020 ficará para sempre marcado como o ano em que conhecemos uma nova realidade ligada ao isolamento e ao medo — e sem esquecer a incompetência de vários órgãos governamentais que, espalhados pelo mundo, acabaram por não corresponder às necessidades a que isto obrigava, muito por culpa da ganância e do sistema capitalista onde estamos cimentados.

Em “Doi me o Rabo de Estar Sentado”, o álbum é iniciado com batuques descoordenados que se vão preenchendo com ruído por trás, aparecendo inclusive o barulho de um aspirador — para quem o viu recentemente ao vivo, este instrumento tão incomum já lhe é familiar, e faz tanto sentido aqui, entregando o ruído e a energia DIY ideais para a sua estética. Por entre o sons que criam uma camada drone de noise, Menino da Mãe explora a sua vontade de destruição tanto para dentro – ruir – como para fora – destruir. O isolamento a que 2020 nos habituou, a somar à quebra de rotinas de sair à noite, consumir cultura, conhecer caras novas e viver a cidade, levam a que o músico lisboeta sinta na pele o que é estar tanto tempo sozinho consigo próprio, com um “cérebro que não está a contribuir”, enumerando as várias coisas que não consegue fazer a sós. A ambiência é, tal como a letra, de ruir e destruir por entre o barulho dos sons, que culminam num batida pesada que nos liberta energia e raiva.



Em “20 20 (parte II)” podemos ouvir caos vocal e camadas de glitch, misturados com samples de notícias, que nos furam os ouvidos com agudos que quebram repentinamente para o primeiro descanso dado aos nossos ouvidos. E é aí que entram as melodias uplifting de “Ressaca”, que são acompanhadas por um ritmo mais concreto e nos fazem finalmente encontrar algum tipo de estabilidade mais convencional no álbum. A entrada da voz muda a energia da música e dirige-se para os prazeres hedonísticos de sair à noite e beber até de madrugada, para a sua auto-sabotagem e para, ao mesmo tempo, tentar dar razão às suas acções, dizendo que “Não há bem sem inclinação/ E a minha tende para o fundo da garrafa”, afirmando querer “a plenitude do ser/ Comer, fumar e beber”. E que mal é que isso tem? É essa a pergunta que fica no ar enquanto o beat se desvanece e entra a guitarra de “Ruir e ser Normal”, em que é aberto algum espaço para o silêncio, e a raiva e hostilidade se transformam momentaneamente em melancolia e tristeza, reflectindo sobre o valor que dá a si próprio, e que por vezes nem sente ter “o direito à depressão”, enquanto gritos lunáticos, quase como se fossem partes revoltadas de si mesmo, acompanham os leads.

A meio do disco, Menino da Mãe invoca um “Minuto de Silêncio” pelo ano que passou, e por todos os outros anos “tão antigos e tão velhos quanto este”, pela decadência moral da sociedade onde nada funciona e onde os valores estão trocados e retrógrados. Percebemos, acima de tudo, que Menino da Mãe é um filho parido pelo degredo de uma sociedade que não se preocupa com quem faz efectivamente parte dela, que tantos sonhos promete, que tanto exige, e nada devolve, deixando-nos à mercê do existencialismo, do desespero de uma vida que não nos faz felizes, da discriminação por qualquer parte de nós que não seja normativa, do trabalho que não gostamos, nos paga mal, e nos consome quase todo o tempo que temos vivos; e do quão difícil é dar a volta a tudo isto. Menino da Mãe é um projecto algo caricaturesco da frustração da população a que é “vendida” a ideia de se ter tudo para estar bem, apesar de vermos cada vez mais um problema sistémico de saúde mental, revoltas dos jovens para com o futuro que os aguarda, e como se não bastasse tudo isso, agora, num contexto pandémico, viu-se sem os pequenos momentos que lhes faziam tão bem, deixando-os isolados numa rotina de acordar, trabalhar e esperar que o dia acabe para recomeçar. Mais uma vez.

Não será certamente estranha a Bertrand a experiência de estar “No Lodo”: nota-se isso na sua capacidade incrível de, juntamente com o baterista Raphael Soares, conseguir recriar essa experiência através de música. Quando a bateria ganha chão, é acompanhada por ruídos indistinguíveis que apagam qualquer melodia e se coordenam entre o drone e o ritmo. Tal como estar no lodo, só há aqui caos e sentimos não haver nenhum sítio para onde nos possamos possas virar e prestar atenção com algum sossego — sempre aquela sensação de ter de estar ao mesmo tempo a pensar em mil e uma coisas… Quando a melodia aparece, não oferece nada a não ser mais caos, que não pára de crescer até ao ponto de se tornar insuportável. Se estes nove minutos nos conseguem fazer isto ao cérebro, imaginemos como é trabalhar nas horas de ponta de um bar ou restaurante, onde este barulho é acompanhado por tarefas e responsabilidades e dezenas de vozes que se misturam entre elas.     

A última música (na versão oficial de Bandcamp) é um cover de “Eu Quero É Botar Meu Bloco Na Rua”, do cantor e compositor brasileiro Sérgio Sampaio, que poderá, no futuro, se tornar um hino quando voltarmos a sair à rua sem máscaras. Menino da Mãe entrega a esta música uma energia cheia de desespero e raiva, onde quase implora para voltar a estar na rua com quem ama, e um bass potente a acompanhar os gritos descoordenados e a flauta de Violeta Azevedo, que mais parece uma guitarra.

No Spotify, o álbum é encerrado com “20 20 (part I, II e II), uma malha de 13 minutos em que ouvimos a fusão de elementos de noise com um piano dramático que mais parece vindo de uma banda sonora de um blockbuster, prosseguindo caminho a partir daí para a parte já ouvida no início do alinhamento e concluindo-se na variação entre o glitch, o piano que vai e vem, o sample de discursos, percussões metálicas e ríspidas, sons de sirenes — que resumem o que este ano simbolizou para todos nós –, uma imensidão de camadas desalinhas geradas por violência, por conflitos, por mortes, por uma nova forma de vida e pelo suspense do que aí vem.

20 20 não é um álbum fácil de digerir. Os elementos DIY, tanto no som como na composição em si, a energia in your face de Menino da Mãe, as extensas camadas de ruído violento que se estendem por quase todos os 54 minutos (à exceção do minuto de silêncio, que mesmo assim é um momento de tensão), criam todo um ambiente de desconforto, quase catártico, que faz disto uma experiência auditiva que, quer se goste quer não, não dá para ficar indiferente. Pode ser relacionável para alguns, pode ser demasiado edgy para outros, mas uma coisa é certa: é um disco difícil de esquecer para quem o ouve e um retrato de uma época caótica.


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