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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/12/2020

Dores de um crioulo na América.

June Freedom: “Eu tento sempre levar Cabo Verde comigo para cada sala onde entro”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 30/12/2020

Poucos são os vestígios musicais que encontramos de June Freedom nesta era em que pouco ou nada escapa a tudo e a todos. Ainda que tenha dedicado os últimos anos à produção e à escrita para outros artistas, o músico tem sobretudo procurado uma identidade que se constrói na simbiose da cultura cabo-verdiana, da qual bebeu durante a infância e a pré-adolescência, com a cultura americana, na qual cresceu. No meio dessa procura, June recusa pertencer a uma só, fazendo da sua musicalidade um retrato fiel do percurso curioso que leva. 

Este ano, June Freedom lançou “Dor D’um Kriolu”, tema com participação de Nelson Freitas, e, ainda no passado mês de Novembro, “Sugar Cane” ao lado de Stacy Barthe. Para além de questões de identidade e musicalidade ficou também lançada a novidade de um primeiro trabalho de estúdio a solo, Baby Anchor, que pretende não só fundir os ritmos cabo-verdianos com a música pop contemporânea como dar a conhecer os batuques de liberdade criativa de June Freedom.



Aos 15 anos partiste para os Estados Unidos, levando Cabo Verde contigo. De que modo essa experiência influenciou a tua musicalidade? 

Dos 3 aos 15 anos vivi em Cabo-Verde e aos 15 regressei aos Estados Unidos e levei muito de Cabo Verde comigo. Ainda que nos Estados Unidos ouvisse mais r&b e hip hop, encontrava sempre espaço para a cultura cabo-verdiana. E é isso que eu sou: uma mistura de ambas culturas. E é o que eu pretendo fazer na minha carreira: levar sempre a cultura comigo, a todos os cantos do mundo. 

Foi no restaurante Cesária, em Boston, que dividiste o palco com Ildo Lobo. Conta-nos um pouco como se deu esse momento e de que forma foi sentido por ti.

Ildo Lobo tem sido, para mim, uma das maiores inspirações — e desde criança que faço imensos concertos. Em 2000, a minha mãe abriu um restaurante no Fogo, em Cabo Verde, e ela tinha bandas a tocar todos os fins-de-semana, e eu andava sempre à procura de maneiras de subir ao palco e cantar e a minha mãe só me dizia, “sai, sai daqui, deixa a banda trabalhar”. E foi aí que comecei, desde cedo, com as mornas e as coladeiras. E o Ildo Lobo era tudo para mim, eu cantava as suas canções numa espécie de American Idol de Cabo Verde, que ganhei no Fogo e em Brava e fui ainda representar Cabo Verde em Portugal, com talvez 13 anos. E eu ainda uso os chapéus que ele usava, e para mim, conhecê-lo e atuar com ele foi uma honra. E a última vez que ele esteve em Boston, antes de morrer – que Deus abençoe a sua alma – pude actuar com ele no Cesária, e ainda abrir o seu último concerto. E o que posso dizer? Ele é praticamente a razão pela qual comecei a minha carreira. Ele não tem sido mais do que uma bênção na minha vida e na vida de tantas pessoas, sabes? Para muitos, ele tem sido uma âncora para os nossos ritmos tradicionais.

A tua lista de colaborações não tem cessado de crescer, conta-se o nome de Nelson Freitas, Djeff e ainda o mês passado, lançaste um single com Stacy Barthe. Pela frente, seguir-se-ão os nomes de Akon ou ainda Spotless… de que forma estas colaborações são uma mais-valia no teu percurso? 

Para mim, a música é uma coisa que flui livremente e quanto mais natural vier mais longe vai a relação que dela surge. E tem sido assim com os artistas com quem tenho feito colaborações e com quem tenho trabalhado e não tem sido mais do que respeito pelo trabalho de cada um e conhecer e apreciar o processo de cada um e com todos esses artistas tem sido bastante natural para mim. Combinar forças e fazer colaborações, para mim, é a simplicidade de fazer algo com que ambos nos vinculamos e temos em comum. Eu adoro colaborar com outras pessoas, permite partilhar energias e quando é uníssono, quando é natural, simplesmente flui livremente e eu aprecio imenso isso. 

Tenho colaborado com artistas realmente incríveis e estou ansioso para que ouçam todo o trabalho que temos feito porque ainda só lancei alguns singles e tenho cerca de 200 ou 300 músicas que ninguém ouviu… Isto porque, diria, nos últimos sete, oito anos, estive mais do lado da produção, à procura de escrever para outros artistas e tornar-me um melhor artista e também conhecer-me enquanto artista. Mesmo que me considere sempre um artista, mas procurei colocar-me em certas situações, certas salas, procurei sempre produzir ou apenas ser a mosca na parede para ver o processo desses artistas e foi óptimo. 

E eu tento sempre levar Cabo Verde comigo para cada sala onde entro: desde mostrar certos artistas como Dino [D’Santiago], Nelson [Freitas], ou ainda Cesária [Évora] e Ildo Lobo, e toda a gente fica “o que é isto?”. Muitos não conhecem a música e a cultura cabo-verdiana e o que trazemos para o mundo, e acho que ainda vamos causar um grande impacto no mundo. 

E quando poderemos esperar algo do June Freedom a solo? 

Eu tenho uma boa lista de colaborações que tenho vindo a fazer ao longo dos anos, mas vou lançar um álbum que se chama Anchor Baby, que vai ser praticamente a solo e talvez com algumas parcerias também. Mas tenho tanto conteúdo que agora tenho de decidir o que fazer com cada. Tantos projetos, tantas coisas diferentes: algumas em inglês, algumas em crioulo, outras em crioulo tradicional, coisas mais de mornas e coladeiras, mas também r&b. É apenas liberdade! 

Vais fazer deste álbum uma biografia: meter as tuas raízes, as tuas expressões em línguas diferentes e a essência da cultura cabo-verdiana? 

É naquilo que o meu próximo projeto está enraizado: “anchor baby” é alguém cujos pais vão para outro país procurar uma nacionalidade para a criança. E eu sou um “bebé âncora”. Nasci nos Estados Unidos e voltei para Cabo Verde com três anos, então sinto que esses dois mundos são as pontas, as forças que me forjam, como o hip hop e a música tradicional cabo-verdiana. E este projeto será lançado nos próximos meses – Anchor Baby é a fusão destes dois mundos. 

Quando estamos no meio de duas culturas que são muito fortes, como a americana e a cabo-verdiana, por vezes podemos ter a sensação de que não pertencemos a nenhuma — estamos exactamente no meio das duas. Como é que exprimes esse meio termo na tua vida, na tua musicalidade? Sentes que é uma vantagem?

Durante um grande período de tempo, eu estava perdido… sempre à procura de me encontrar, procurar uma identidade. Eu sempre tive de lidar com opiniões e julgamentos como “mas se tu és destas ilhas porque estás a fazer hip hop e a tentar fazer música pop?”. E se estiver a fazer as coisas tradicionais dizem-me, “tu és americano, tu cresceste aqui, porque não fazes as coisas que estão à tua volta?”. Então tem sido uma procura, uma descoberta dessa linha onde me consigo identificar… e cheguei à conclusão que eu estou nos dois mundos, porque eu sou esses dois mundos: eu cresci em Cabo Verde, então eu tenho as raízes, a língua — crioulo é a minha primeira língua, e português tornou-se a língua que aprendi na escola, porque é o que nos ensinam em Cabo Verde. Ao regressar aos Estados Unidos, o inglês tornou-se a minha segunda língua, porque estava sempre a saltar de escolas. 

Então, fazer todos estes tipos de ritmos, e procurar essa linha ténue que me identifica, tem sido um processo difícil, e bastante confuso até. E dizer que me identifico mais com uma cultura do que a outra não me parece correcto porque acho que sou uma mistura dessas duas coisas.

Eu também cresci na América, cresci numa comunidade urbana onde vi violência, pessoas a serem mortas, e coisas de um certo nível de natureza que tu sabes que é assombroso. Ainda tenho PTSD dessas coisas que vi quando era miúdo. E depois cresci também numa ilha onde não há nada mais do que amor e serenidade, paz e simplicidade familiar. Esses dois mundos são os meus mundos e tentar definir-me e pôr-me numa só caixa será a coisa mais difícil que alguém, ou até mesmo eu, poderá fazer. 

Voltando a Cabo Verde, que claramente nunca foi opção esquecer, para além da música, procuraste dar a conhecer a sua gastronomia, arriscando abrir Cape Green, um restaurante em Los Angeles. Como tens visto e vivido a cultura cabo-verdiana ao longo deste tempo que tens passado fora? Como olhas para o legado de artistas clássicos, como Cesária Évora ou os Tubarões, por esse mundo e como vês a música hoje?

É uma coisa bonita. Eu vejo dois mundos diferentes quando se trata da cultura cabo-verdiana: o mundo como o conhecemos; o cabo-verdiano ama, amam as pessoas, amam a música, amam a comida, amam a música e quando eles conseguem encontrar essas ilhas talentosas… gosto de acreditar que é o centro do mundo no mapa. Estamos no centro do mundo, entre a Europa, África, América do Norte e a América do Sul — tens de passar eventualmente pelas ilhas. E eu sinto que temos sido bem recebidos em algumas partes do mundo. Em Boston, Massachusetts, mencionas os cabo-verdianos e eles pensam em violência, pensam em coisas bastante diferentes do que as que acontecem na comunidade. Aparecemos nas notícias pelas razões mais erradas em certas partes de Massachusetts. E noutras partes do mundo não é assim. Eu acho que os cabo-verdianos são vistos como um povo bonito, uma cultura linda e através da comida, tenho dado a mostrar isso aos meus amigos que não conhecem. Quando cozinho para eles e lhes mostro a música, ficam encantados.


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