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Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 04/06/2023

"É porque a vida dura muito pouco. Vamos lá cantar, tu não sejas louco."

José Pinhal Post-Mortem Experience no FNAC Live’23: a celebração merecida de um legado que vingou tardiamente

Fotografia: Cláudio Ivan Fernandes
Publicado a: 04/06/2023

Sábado, dia 3 de Junho de 2023. Jardins da Torre de Belém. O sentimento era de estranheza. Afinal de contas, assinalava-se a data em que a memória musical de José Pinhal ia ser celebrada num palco em Lisboa pela primeira vez desde que as reedições dos seus três volumes pela Lusofonia Record Club chegaram ao vinil e, mais importante ainda, às plataformas de streaming. Um cantautor outrora esquecido que foi virando figura de modesto culto, está hoje presente na vida de muitos portugueses graças a esse repescar do seu legado desde o ano passado. Para os José Pinhal Post-Mortem Experience, que apregoam a sua obra há já alguns anos, cabia a responsabilidade de encher as medidas dos novos fãs do artista romântico. Para nós, que tanto absorvemos como observamos todos estes fenómenos, importava perceber se este religioso following no campo digital também se manifestava em carne e osso. Mas já lá iremos.

A nossa aventura pelo segundo dia do FNAC Live’23 começou apenas depois do jantar, numa altura em que NENNY liderava as hostes com aquela energia electrizante que lhe reconhecemos de outras paragens. Um pouco alheados da sua performance, ainda em modo de reconhecimento do terreno (e dos rostos que nos são familiares e merecedores do nosso cumprimento e atenção), percebemos que o quadro humano em frente à cantora de Vialonga não só era extenso como estava bem compactado — tivemos de o contornar para ir de um lado ao outro do recinto, porque “furar” era tarefa quase impossível. Não é todos os dias que se tem a oportunidade de ver gratuitamente ao vivo uma das grandes novas sensações da música portuguesa, que facilmente agarra a atenção de uma multidão à boleia de um ainda curto mas infalível repertório, que teve singles como “Tequila” ou “Bússula”, utilizados como combustível final, principais jóias de uma coroa que lhe assenta na perfeição.

Nos poucos minutos de silêncio entre uma actuação e a seguinte, alguns grupos iam entoando letras de José Pinhal — sinais numa bola de cristal? Antes que nos deixássemos ficar a pensar em demasia no futuro, AZIA surgia na penumbra do palco NTF e sugava-nos a alma até à sua beira, encantando-nos como se fosse uma luz púrpura de um mata-insectos eléctrico e nós meras moscas e mosquitos — numa espécie de “chega perto, mas não toques, que esta merda faz ferida”.

Munida de algumas faixas do seu Causa Torpe, a MC e produtora do Porto pode muito bem ter conquistado um agradável número de novos fãs na capital. Não pareciam existir muitos conhecedores da sua obra, mas não é tarefa fácil não nos sentirmos esquartejados pelas palavras que profere. E todos sabemos que cicatrizes são marcas que nos ficam registadas no corpo ao longo de anos e anos — muitas vivem para sempre na nossa pele. A forma como debita os versos ajuda, dando ares do mesmo flow cavernoso pelo qual Allen Halloween se arrastava. Mas o ponto mais alto da sua prestação — até pela raridade que é termos momentos destes num concerto de rap — foi atingido quando abandonou o microfone e se dedicou por inteiro à MPC. Durante uns 10 minutos, a artista protagonizou um verdadeiro showcase de batidas sinistras, alcançando as mesma frequências sombrias que já escutámos sair dos pulsos de Havoc ou The Alchemist. Foi como se os nossos telhados de vidro nos desabassem em cima, provocando um banho de sangue que não deixa indiferente nenhum aficionado das sonoridades que pairam no underground.



Antes do grande momento que nos trouxe ontem até aos Jardins da Torre de Belém, ainda tínhamos de passar por mais um par de actuações. A primeira foi dos GNR, que plantou no palco principal um Rui Reininho bastante animado e com as pilhas no máximo da sua carga. A banda portuense trouxe até Lisboa um alinhamento recheado de êxitos e conseguiu colocar praticamente toga a gente a cantar em uníssono canções como “Dunas”, “Sangue Oculto” ou “Ana Lee”. Entre cada tema, as manifestações por José Pinhal eram cada vez mais intensas, e no final não pareceu haver ninguém interessado em pedir por um encore. O penúltimo acto da noite foi entregue a Peter Suede, mas tínhamos chegado a um ponto em que toda a gente guardava ansiosamente o pedaço de terreno que lhe proporcionaria uma melhor visão para os tão aguardados José Pinhal Post-Mortem Experience.

Foi como um lindo sonho o momento em que o relógio começou a percorrer os primeiros minutos pós-meia-noite. Não são precisos hologramas para experienciarmos a magia de um tributo musical ao vivo, basta-nos uma banda competente e admiradora confessa do legado deixado pelo homenageado, e, claro, uma plateia capaz de se deixar entregar à comunhão. Não nos pareceu existir muitos interessados em desviar atenções para um ecrã de telemóvel, mais em bailar e cantar algumas das mais badaladas canções do malogrado artista de Matosinhos.

O conjunto formado por Bruno Martins (voz), João Sarnadas (guitarra), José Pedro Santos (bateria), José Cordeiro (baixo), Tito Santos (teclas e trompete), David Machado (saxofone) e Nuno Oliveira (percussão) apresentou-se vestido a rigor e deu início à celebração da obra de José Pinhal com “Ciganos”. O espectáculo não ofereceu grande abertura a virtuosismos nem a modificações ao nível da estrutura dos temas originais, à excepção de quando os músicos foram apresentados um a um e protagonizaram breves solos. Mas o mais importante era mesmo a oportunidade de sentirmos que tínhamos conseguido recuar no tempo e presenciar um desses concertos que Pinhal deu ao longo da década de 80. Essa missão foi claramente cumprida.

Talvez à excepção das músicas cantadas em espanhol — “Ella” e “Gitano Soy”, neste caso — tudo o que esta José Pinhal Post-Mortem Experience trouxe para cima do palco provocou coros constantes. “Baby Meu Amorzinho”, “Covarde”, “A Vida Dura Muito Pouco”, “Magia (Bola de Cristal Mentia)” e, claro, “Tu És A Que Eu Quero (Tu Não Prendas O Cabelo)” são faixas não faltaram a esta festa e que ajudam a dar força ao génio que gerou toda esta adoração em torno do seu eterno autor. Só esperamos que este reencontro com a nossa história musical não seja fugaz e que as criações de Pinhal possam perdurar no tempo, ao ponto de continuar a encantar as gerações que ainda estão por vir.


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