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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/12/2022

Em modo celebração.

Lusofonia Record Club: “O objectivo é trazer uma ideia nova, muito mais conciliadora do que separatista, para a conversa”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 19/12/2022

Têm casa fixa na Internet e apresentam-se como “o primeiro clube de vinil dedicado à música lusófona”. Léo Motta, Tomás Pinheiro e Jorge Falcão são o trio fundacional do projecto que já conta com seis lançamentos que cobrem um vasto território, entre o arquivo e a actualidade, entre a quase inclassificável visão de José Pinhal que é hoje caso de culto e as novas direcções propostas por David & Miguel ou pelo projecto colectivo de músicos de Cabo Verde que recentemente homenageou o histórico restaurante Monte Cara que se impôs em Lisboa como a primeira grande “embaixada” internacional da música cabo-verdiana.

O mais recente lançamento do Lusofonia Record Club poderá também ser o mais ambicioso: Moacir de Todos os Santos, um álbum de Letieres Leite com a Orkestra Rumpilezz que no Brasil saiu com carimbo da Rocinante e da Três Selos e que em boa hora ficou igualmente disponível no nosso país. Sobre este álbum, escreveu Gilberto Gil:

“Alguns anos atrás, Letieres Leite reuniu em Salvador um grupo seleto e eclético de músicos, uns vinte e poucos, negros, mestiços e brancos – todos eles associados às vertentes mais populares ou mais clássico-eruditas da música que se faz na Bahia. Egressos das orquestras de concertos, dos conjuntos de baile, dos terreiros de candomblé, dos clubes musicais cultivadores do jazz e das vanguardas mais recentes do pop internacional, esses músicos se juntaram sob a regência de Letieres – ele, multiartista interessado em promover resgates e impulsionar avanços na música da Bahia e do Brasil.

Inspirado no grande mestre pernambucano Moacir Santos, que o antecedera em algumas décadas nesse mister de estimular a fusão mais abrangente e profunda das linguagens nas músicas afro-americanas (a estadunidense, a cubana e brasileira), Letieres realizou, no breve período que a vida lhe concedeu, um trabalho de grande envergadura que deixa registrado agora neste disco que nos chega às mãos. Em torno de alguns conceitos amplos de ancestralidade e modernidade e de elementos rítmico-harmônico-melódicos de grande personalidade, Letieres nos oferece neste disco um pouco, um gosto, um gesto, um beijo do seu imenso legado.”

Um exemplo perfeito de um projecto que se apresenta com programa ambicioso e que pretende estabelecer uma ponte múltipla, com diferentes pontos de entrada e saída, que una as diferentes coordenadas dessa coisa difusa que à falta de melhor termo ainda conhecemos como “lusofonia”. A conversa com Léo Motta e Tomás Pinheiro começou precisamente por aí.



Gostava que começassem por se apresentar. Quem são e o que fazem aqui?

[Leo] Somos o Lusofonia Record Club. Eu sou o Leo, um dos co-fundadores. Tal como o Tomás, estou em Portugal há três anos e tal. Viemos para fazer um mestrado e ver se engatamos a empresa.

Mestrado em quê?

[Leo] Mestrado em Inovação e Empreendedorismo Tecnológico, na FEUP.

Como é que isso joga com o Lusofonia Record Club?

[Leo] Joga muito bem. A parte da inovação aparece no negócio através do modelo de negócio, que é o da subscrição. O empreendedorismo está muito presente em abrir uma empresa em Portugal.

[Tomás] É importante referir que só nos conhecemos no mestrado. Não nos conhecíamos antes.

Vieram de que zona do Brasil?

[Tomás] Eu vim do Rio.

[Leo] Eu de Santa Catarina.

Houve alguma razão que vos tenha conduzido até ao Porto ou foi apenas o cosmos a funcionar?

[Tomás] A minha razão é que a minha esposa já estava aqui a trabalhar. Recebeu uma oferta de emprego para cá e veio um ano antes de mim. Para não vir meio que sem trabalho, aproveitei para fazer o mestrado, que era algo que já estava ambicionando.

[Leo] No meu caso foi, de certa forma, uma fuga do Brasil. Todos sabemos como aquilo estava em 2018. Estava a ver a possibilidade de um mestrado internacional e achei que aqui, em Portugal, era uma boa porta de entrada. Pareceu-me ser muito interessante, culturalmente e tudo. Então aconteceu.

Como é que a música entra na equação? Esse interesse já vinha do Brasil?

[Leo] Tem piada isso. Lembro-me muito bem. A gente tinha aquelas primeiras aulas, de apresentação e tudo mais. Foi na primeira vez que a turma foi toda a um bar, beber uns copos, que o Tomás me chamou. “Então, como é que é isso?” Eu disse-lhe que era supervisor musical. Começámos a falar ali e percebemos que tínhamos um background muito semelhante dentro da música. Ele no Rio de Janeiro, que é um scope maior, e eu no sul. Já trabalhamos com música há 10/15 anos. Acabou por vir a calhar que temos um background semelhante e decidimos fazer uma coisa nesse sentido.

Quando falas em trabalhar com música, isso era exactamente em que moldes?

[Tomás] Eu trabalho há quase 10 anos com grandes gravadoras — grandes editoras, como se chama aqui. E continuo trabalhando, porque a Lusofonia, de certa forma, é um projecto paralelo meu. Eu ainda trabalho com a Sony. Trabalho o marketing, música e não só. Também com outras editoras e pequenos artistas brasileiros. A música sempre fez parte do meu perfil profissional. Desde que fui para a faculdade, o meu objectivo sempre foi trabalhar com música. Eu não sou músico. Longe disso. Mas sempre trabalhei, de alguma forma, numa área que envolve música, mais na parte do marketing e comunicação.

[Leo] Temos isso em comum. Eu também não sou músico. Longe disso, inclusive. Eu trabalhava com produção de eventos e faço supervisão musical, licenciamento para bandas sonoras. Já fui assessor de imprensa e de comunicação para algumas bandas no Brasil. No fundo, fizemos coisas diferentes, mas complementares.

Vamos discutir a palavra “lusofonia”, neste contexto. Essa palavra já serviu para muita coisa. Já serviu de debate político para, de certa forma, justificar um processo histórico muito complicado e doloroso, que nos trouxe até ao momento presente. Mas é uma palavra que é entendida como sendo ela própria problemática para muitos pensadores e historiadores. Porque é que vocês decidiram que é uma boa palavra para baptizar o vosso projecto editorial?

[Leo] A gente tem uma visão um bocadinho diferente disso. Acredito que aqui, em Portugal, passa muito pela questão da colonização, que é problemática, claro. Foi um processo que… Não lhe posso chamar de natural, mas é o que é. Aconteceu assim. Essa carga histórica acontece muito aqui, em Portugal. Nós, enquanto brasileiros a viver aqui, apercebemo-nos desse mundo que nos cerca, da carga que temos aqui e aquilo o que temos para dar da nossa experiência. Não lhe quero chamar de colonização reversa. Nós temos algo em comum, que é a língua. Temos o português em comum. Isso é a lusofonia a falar. Percebemos que tem um universo para explorar, que é muito mais… Na nossa opinião, é muito mais o que nos torna próximos do que o que nos separa. A dinâmica de poder fica um pouco em segundo plano. Quando procuras um nome para alguma coisa, ele sempre tem que estar um pouco ao nível do chão. Quanto mais complexo, mais isso pode ser mal interpretado. A gente pensa, “começamos com a lusofonia” e, a partir disso, construímos um novo sentido, mas sempre com o objectivo de trazer uma ideia nova para essa conversa, que deve ser muito mais conciliadora do que separatista, que eu acho que é um caminho que o mundo não pode seguir hoje em dia.



Ao mesmo tempo, é uma palavra que pode sustentar todo um programa. Na lusofonia cabem não apenas Portugal e Brasil, mas também várias Áfricas, não é? Isso faz parte da vossa intenção editorial, lançar coisas com outras origens geográficas para lá daquelas que já lançaram até agora?

[Leo] Com certeza. Os PALOP têm uma complexidade um pouquinho maior, em termos de masters, de licenciamento. É mais difícil de encontrar e mapear isso, mas é algo que temos vindo a fazer com o tempo. Por norma, eles aparecem um pouquinho mais discretamente, como Monte Cara, que é um projecto português, mas que no fundo tem uma alma cabo-verdiana. A ideia é, realmente, daqui em diante, a gente conseguir explorar um bocadinho melhor e trazer coisas a esse mercado. Quando a gente fala em PALOP, pode parecer um bloco coeso, mas não é. Cada um deles tem as suas características e cada um deles é muito rico. Se eu pegar só em Moçambique, tem muita coisa que tem ali de incrível. Cabo-Verde? Idem. Angola até mais, dependendo de como se vê. E há outros países como São Tomé e Príncipe e ainda territórios como Macau… Todos eles têm música e cultura. A gente pretende incorporar isso. Numa proporção que não será a mesma que Portugal e Brasil, porque são dois países muito grandes em termos de produção.

E a ideia é apostar no lançamento de material mais contemporâneo ou mais de arquivo?

[Tomás] A intenção sempre foi ter um equilíbrio entre o contemporâneo e o de arquivo. Mas no final — por um lado é bom, por outro é ruim — a gente é refém do que é viável. O cenário em que a gente trabalha… Posso até dar o meu exemplo, que trabalho com grandes editoras: é quase impossível você conseguir um licenciamento de uma grande editora hoje.

Porque, de repente, todos descobriram o vinil, não é?

[Tomás] Sim. O vinil hoje é um negócio como qualquer outro. Todo o mundo quer tirar a percentagem dele. O que não é ruim, mas ao mesmo tempo a gente não entrou nesse negócio para fazer a coisa de forma não direita. A gente quer fazer o negócio da forma correcta. A gente quer que o artista que a gente está lançando receba o dinheiro a que tem legítimo direito. Porque hoje tem muitas editoras dessas, que lançam discos e que a gente sabe que o artista não recebe absolutamente nada. É uma exploração que ’tá protegida por leis na União Europeia. As leis protegem eles a poder fazer aquilo. A gente vê e isso acontece muito com artistas brasileiros. Eles reclamam que lá fora lançam discos de artistas brasileiros e que eles nunca viram a cor desse dinheiro. Por eu trabalhar nessa indústria, penso, “se é para fazer, vamos fazer o negócio de uma forma correcta”. Esse é o grande desafio.

Não vos interessa apenas a estética, mas também a ética.

[Leo] Com certeza.

[Tomás] E esse é o grande desafio: o conseguir chegar a essas pessoas com esses contratos e que a gente sabe que o dinheiro vai chegar na mão daquele artista. A gente quer fazer um negócio certo. Não é lançar por lançar ou “porque eu posso e a lei me permite lançar, então vou tirar a maior margem possível sobre aquele produto e vou-me aproveitar daquele artista e daquela obra”.

[Leo] No fundo, é uma co-criação. Se a gente que pegar um disco do João Gilberto e fazer ele aqui, quais são as implicações disso? Qual é a dinâmica de poder ou de direitos envolvida? Porque a gente quer fazer o que é certo, com todos os critérios.

[Tomás] Não é fácil. Nesse ano, por exemplo, a gente lançou mais artistas contemporâneos do que material de arquivo. Porque é isso: o artista contemporâneo está vivo, normalmente. Então é mais fácil de chegar e falar directamente. Enquanto que nas coisas de arquivo…

Falar com herdeiros é sempre complicado.

[Tomás] E os herdeiros, por norma, não têm noção do que está acontecendo ao seu redor nem do mercado.

[Leo] Nós nunca vamos numa de explorar eles. Mas eles têm de perceber isso.

[Tomás] É complicado. A gente falou com a filha de um artista e ela perguntou, “mas quanto eu vou ter de pagar?” A gente teve de explicar para ela que, “não. Não vai pagar nada. Eu vou-te pagar um valor e quero saber se tem interesse”. Há um processo de ensinamento e aprendizagem. No fundo, a filha do José Pinhal nunca tinha ganho um tostão com toda a obra do pai que foi redescoberta há 10 anos. Tudo o que tinha do pai dela disponível na Internet, estava disponível de forma ilegal. Tinha pessoas lucrando com aquilo. Foi inocência dela. Se tivesse entrado com um advogado — óbvio que ia demorar — podia chegar alguma coisa. Ela é uma pessoa muito inocente que não sabe nada do que está acontecendo ao redor. Hoje ela tem total confiança na gente, que lhe apresentou um projecto com um contrato, em que ela ganha uma percentagem. Tudo o que tem de José Pinhal na Lusofonia, ela recebe uma percentagem.

[Leo] Inclusive é a percentagem maior. Isso ficou muito claro desde o começo. No primeiro contrato que a nossa advogada fez inicialmente, ela colocou uma percentagem. E a gente, “não, vamos pensar melhor nisso”. A gente decidiu aumentar a parte dela e diminuir a nossa. Porque nós apenas somos intermediários. Ela é quem tem o direito dessa obra. O dinheiro é praticamente todo para ela. O que vem para nós é para pagar a parte estrutural que permite fazer isso.

Vamos falar sobre como esse cuidado ético se manifesta no campo prático das vossas edições. Nós hoje ouvimos falar de histórias horríveis na indústria do vinil, como discos feitos a partir de MP3 e coisas assim. Eu acredito que todos esses cuidados que vocês estão a ter também se manifestam na hora da prensagem do disco.

[Leo] Com certeza. Esse é um aspecto importante do nosso trabalho desde o começo. A gente começou no final e 2020 através do programa StartUp Voucher. Ao longo de 2021 inteiro, a gente estava a estudar e a incubar esse projecto, a perceber como funciona o mercado, qual a viabilidade de cada acção que a gente tem para fazer. Como pensámos de antemão, tínhamos muito espaço para pensar nessas possibilidades, mais éticas e sustentáveis. Quando falamos em sustentáveis, não estávamos a falar de um green wash, até porque isso é praticamente impossível com o vinil. Mas são preocupações que a gente teve desde o início. Em termos de master, vamos junto do autor ou do artista ver qual a melhor versão que está disponível. Se tem master de cassetes, vamos remasterizar esse. Se já tem master digital e ela está perfeita para ser trabalhada, vamos nela. A gente tem um engenheiro de som que mora em Setúbal, também brasileiro, e faz um trabalho muito interessante há já umas duas décadas. Na parte da prensagem, a gente pediu orçamento para, sei lá, mais de 10 prensas ao redor do mundo, para saber como funcionava. Nesse processo, a gente percebeu que muita gente faz no leste europeu ou nas Filipinas. Tem sítios que se faz e que é muito mais barato. Mas é aquela coisa: está longe e não dá para saber o que acontece, não há controle de nada. O produto chega mas tu não sabes como foi feito. Coincidentemente — muito por sorte — junto da criação do nosso projecto, veio a Grama, na Maia. É a fábrica onde a gente faz os discos. Fica a uns 15/20 minutos de nossa casa. Há alguns pontos principais nessa relação. Um deles é o eliminar de toda a logística a nível internacional, porque o enviar 300 ou 400 discos é muito complicado — há coisas que fazemos fora, mas a parte principal é feita aqui. Temos uma relação muito próxima com eles. Inclusive um dos primeiros discos prensados pela Grama foi o do José Pinhal, que foi o nosso primeiro lançamento. O nosso outro sócio também é sócio da Grama, então a gente tenta tornar essa relação o mais próxima possível. Com isso, a gente consegue pensar de antemão o que é que a gente pode fazer e quais são as iniciativas. E claro, a gente tenta ter outros pontos, que podem até parecer que são pouco, mas que são um esforço que fazemos conscientes. Nós estamos a abandonar por completo o shrinkwrapping, que é um plástico de uso único e que vai ser logo deitado fora. Não é interessante. Trocámos pelo envelope. Por outro lado, a energia do nosso escritório é energia limpa. Temos alguns cuidados para que o impacto seja menor. E ainda há a parte social positiva, que é o produzir em Portugal. Para a União Europeia, também estamos a pensar noutras soluções que possam reduzir o nosso impacto negativo e trazer uma coisa mais interessante.



O vosso mercado está centrado em Portugal ou também estão a exportar discos?

[Tomás] Hoje a maioria das vendas é para Portugal. Mas ja temos vendas para o mundo todo. Na semana passada estava enviando discos para o Japão. Mas já vendemos para a Europa toda, Estados Unidos, Brasil, obviamente. É aos pouquinhos. Falamos isso com toda a abertura: os artistas que mais vendemos foram portugueses. Para dentro de Portugal é o que mais se vende. Mas a nossa ideia sempre foi construir. Começando em Portugal, sabendo que aqui existe um mercado muito grande de vinil. Nesta indústria, quanto maior for a encomenda de vinil, menor será o meu custo e maior será a minha margem. Entre uma tiragem de 1000 e uma de 400, é melhor eu fazer uma de 1000, porque eu tenho uma margem maior sobre a venda, pois o custo é menor. O mais legal de ter a Grama — que é o nosso principal parceiro – é porque somos empresas que têm a mesma idade e estamos, de certa forma, aprendendo juntos nesse mercado. É óptimo ter os parceiros por perto. Porque, “ah, não gosto desse estampe. Vamos tentar esse aqui?” Ao mesmo tempo que eles estão descobrindo os erros deles, nós estamos descobrindo os nossos. A gente se acrescenta. “Isso não ficou bom. Vamos tentar de outra maneira?” Se fosse uma fábrica na Polónia, não teria essa proximidade. Com a Grama, eu posso ir lá. E eu se quero ver um disco vou lá. Não fico supervisionando nada, mas fico lá a ver a bolacha sair.

Como é que é a repartição entre o stock que vai para a distribuição convencional e aquele que é escoado através das assinaturas?

[Tomás] A gente não tem distribuição convencional. Tudo o que está sendo vendido, é vendido directamente pela gente. Por exemplo, a venda do Japão foi de uma loja de discos que entrou em contacto com a gente. “Olha, quero comprar o disco tal, tal e tal”. A gente está conversando com distribuidores, a tentar encontrar um caminho. A gente precisa escoar discos pra Europa toda. A nossa venda é online. Não há loja física. E a gente sabe que a maior parte do mercado é na loja física. As pessoas vão na loja, querem procurar. É esse o caminho.

Mas é possível encontrar alguns discos vossos em algumas lojas, não é?

[Leo] Pontualmente. Temos alguns parceiros. Muita gente chegou a nós por um motivo: quando lançámos o Pinhal, muita gente ficou interessada e veio conversar. Nessa primeira edição, passámos 5% dos discos a alguns parceiros, que os levaram a algumas feiras de vinil e lojas, pontualmente. Dado o contexto de onde viemos — desde o mestrado até ao que estamos fazendo agora — isto tem um pouco as características de uma start-up. Nós somos uma editora, mas, ao mesmo tempo, o modelo de negócio permite essas pivotadas. “Vamos distribuir um pouco mais esse e um pouco menos esse”. Ou “qual disco vai acontecer e como”. Se estamos na Europa, os artistas portugueses chegam à Europa. Os artistas brasileiros chegam a Portugal. Os artistas moçambicanos chegam aqui também. A gente acaba por ‘tar no meio de um fogo cruzado, quase, entre tudo o que nós podemos fazer [risos]. Esse foi o primeiro ano e foi de muita aprendizagem. A gente percebeu o que é melhor e o que não é. Para já, é venda directa ao consumidor, mas tem alguma coisa de distribuição, que a gente tem estudado um pouco mais. Até mesmo para amplificar tanto os artistas como os produtos.

[Tomás] Estamos em busca desse parceiro. Chegámos à conclusão que a gente precisa estar nas lojas, fisicamente. E não só é preciso estar nas lojas, como também na imprensa internacional.

Têm conseguido isso? Têm surgido artigos na imprensa internacional?

[Tomás] Ainda não. Estamos a conversar com uma pessoa para fazer isso.

[Leo] Começou agora uma coisa muito recentemente. O nosso primeiro esforço ao nível de imprensa foi agora, com o nosso sexto disco, de Dezembro. A gente fez isso com a Raquel e aí sim, já conseguimos algumas oportunidades — rádio, jornal, revistas…

[Tomás] Dentro de Portugal.

[Leo] É. Dentro de Portugal. Estamos fazendo isso. Lá fora, ainda não é o caso. Mas a ideia é fazer isso também.

[Tomás] É o próximo passo.

[Leo] Seria um desperdício estarmos em Portugal e não aproveitarmos tudo o que a União Europeia tem. As facilidades, os caminhos, os acessos… Em termos de distribuição, e um caminho que tem de ser visto. A gente também não quer encontrar um parceiro de distribuição que, “eu quero que tu faças esse disco, mais esse e esse”. Não. Calma. Nós somos uma editora. Queremos alguém que tenha condições para escoar a produção. Se isso justificar um aumento na produção, ok. Se não, também não nos vamos dobrar para fazer só porque o parceiro quer. Acho que a nossa autonomia é inegociável.



No lado gráfico da editora, há alguma preocupação especial aí?

[Leo] Sim. A gente tem um respeito muito grande pela obra já editada. Muitas vezes, quando aquilo já está muito pronto e bem pensado desde do início… No disco da Luedji Luna, por exemplo, teve uma preocupação muito grande, desde a produção fotográfica até à forma como isso passa para o conceito do disco. A gente respeita muito isso. Então, a gente entra com uma segunda peça, como se fosse um insert, que é tão tradicional. Também estamos tentando explorar um pouquinho melhor, saber o que funciona e o que não funciona. Mas é sempre para trazer para o contexto quem é o artista, qual o movimento dele, de onde ele vem, qual a equipa envolvida e tudo mais. Temos um parceiro no Brasil que faz a parte do design e estamos também procurando parceiros aqui, em Portugal, para alguns projectos especiais. Também é muito importante conseguir fazer um projecto especial para um artista português, com um designer português, uma distribuição e assessoria alinhada com isso. É um coisa muito especial e também respeitosa pelo sítio onde a gente está.

Falem-me da primeira parte do catálogo, que começa no LRC0001.

[Leo] Começámos com o José Pinhal, que veio antes de tudo. Foi quando o Tomás me trouxe a ideia, em 2020. “Vamos fazer um clube de vinil e temos um caminho para o José Pinhal, que foi um amigo, o Paulo, que trouxe”. Foi um experimento. Fizemos e correu muito bem. Esgotaram 300 cópias em duas semanas. Foi incrível. Desde então, o que mais ouvimos foi, “para quando um repress do José Pinhal?” Lançámos ontem e em menos de 24 horas já foram vendidas quase 150 cópias. O LRC002 seguiu a lógica da música portuguesa, fazendo um diálogo com os tempos actuais, com o David & Miguel, dois grandes artistas daqui e que também contam muito sobre a portugalidade. Tem essa estética sonora e lírica do que é Portugal. Depois fomos ao Brasil, com a Nomade Orquestra, um colectivo de 10 pessoas de São Paulo. Eles são uma banda instrumental. A partir da discografia, descobrimos que eles fizeram um projecto especial com cantores de renome brasileiros — a Juçara Marçal (de Metá Metá e também com carreira a solo), o Edgar (um rapper na linha do, digamos assim, rap esquisito e que tem feito um bom trabalho), o Russo Passapusso (de BaianaSystem) e o Siba (de Mestre Ambrósio). Todos eles são muito significativos na música brasileira e isso marcou uma divisão na discografia deles. Nós pegámos em quatro faixas de cada disco e colocou numa edição exclusiva. São uma banda que também já passou por Portugal e pela Europa, em digressões. Depois lançámos a Luedji Luna, que volta e meia ’tá por aqui também. É uma artista muito grande e tem uma relação muito forte com a música africana. Tem a produção do Kato Change, do Quénia. É uma das grandes artistas do jazz e da música popular brasileira de hoje. Aí fomos ao Monte Cara, porque acho que eles traduzem muito bem aquilo que é a música cabo-verdiana num contexto português. Ainda mais nessa reencarnação para 2022. Agora estamos no sexto disco, que é de Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz. Foi o Tomás que me apresentou. É o disco que encerra este ano com chave de ouro. É uma edição muito especial, em parceria com uma editora brasileira, e que tem lá nomes da música brasileira de valor inestimável — Caetano Veloso, Gilberto Gil, o próprio Letieres Leite, o Moacir Santos, que é o autor dos temas, e a Orkestra Rumpilezz, que é composta por músicos fora de série.

Com isso fecham o ciclo de 2022. Da Lusofonia Records Club, o que se afigura para 2023 e mais além?

[Tomás] Não temos muita coisa definida. Vamos lançar o Volume 2 do José Pinhal em algum momento do ano que vem. Já está remasterizado para vinil e temos o material quase todo pronto. Só não temos ainda a data. Queremos definir mais ou menos o calendário. Hoje devemos ter uma seis oportunidades em aberto, mas estamos esperando por respostas, conversando, negociando… É realmente difícil. Nós temos de mandar 20 e-mails para ter para ter resposta de dois, depois mais 20 para ter resposta de um…

Os masters originais do Pinhal existem em cassete?

[Tomás] As fitas existem. É uma longa história, mas as fitas foram dadas a esse nosso amigo, que é o Paulo Cunha Martins. Quando foram fazer uma curta-metragem sobre a vida do José Pinhal, o Paulo deu as fitas para o director do filme. Ele pegou essas fitas e deu para um profissional digitalizar essas fitas todas. Todo o nosso trabalho foi feito a partir dessa digitalização.

Quando dizes fitas, estás a falar de bobines?

[Tomás] Estou a falar dos masters mesmo. São as fitas de estúdio, que estavam lá, no apartamento do irmão do Paulo, que é quem cede as fitas ao Paulo.

[Leo] A cassete foi a primeira audição, mas não foi o master original.

Imagino que estejam a falar das fitas de quarto de polegada.

[Tomás] Sim. Aquilo foi tudo digitalizado. O Volume 3 eu não sei se tem, mas é algo que a gente vai ter que ir procurar. Aquilo está em São João da Madeira ou Santa Maria da Feira, onde estava a editora do José Pinhal. Certamente alguém tem. O Volume 2 foi remasterizado pela mesma pessoa que remasterizou o Volume 1 e ele falou que foi um processo completamente diferente. Foi muito mais físico.

[Leo] A própria fita. Ele tinha muitos problemas que eram específicos de fita e que trouxeram desafios. Sobre 2023, temos muitos caminhos abertos. Agora é uma questão de nos reunirmos para ver o que vai aonde. Também contar com quais respostas chegam daquele processo que eu falei, mais longo, de encontrar coisas mais antigas, de arquivo, e perceber o que é viável para fazer. Porque está nos planos trazer mais coisas de arquivo. Acho que tem um valor muito interessante.

[Tomás] Queremos achar novos Josés Pinhal [risos].

Esses projectos têm vindo ter com vocês, ou são vocês quem vai ao encontro deles? O disco de David & Miguel, por exemplo, foram vocês que foram falar com eles?

[Tomás] Tirando Monte Cara, todos foram projectos que nós procurámos. Já eram coisas que ouvíamos e que a gente sabia que teria uma abertura mais fácil de conseguir. O caso mais original é o de Monte Cara. Quem nos trouxe o projecto foi o Dino D’Santiago, que é um artista com quem a gente estava conversando sobre a possibilidade de trazer um disco para a Lusofonia. Um certo dia ele ligou para o Leo e falou, “tem essa galera da Monte Cara, que eu acho que é um projecto que tem tudo a ver com vocês. Querem que bote em contacto?” “Então ‘bora lá. Vamos conversar”. Foi das negociações mais fáceis que a gente fez. Foi algo que calhou. A gente não conhecia, o Dino apresentou e, cara, tem tudo a ver, realmente.

[Leo] É incrível. A música tem a ver, a história tem a ver, o contexto, tudo.

[Tomás] Foi quase na hora. É como uma daquelas ofertas que a gente não pode negar, ainda para mais vindo do Dino, que é um dos artistas com que a gente quer ter um relacionamento, porque tem tudo a ver com o que a gente pensa e o que a gente imagina da nossa sonoridade. Surgiu. Neste momento, alguns dos artistas com quem andamos a negociar foram-nos sugeridos por outras pessoas com quem a gente falou ao longo desse ano. “Vocês não lançam isto? Não lançam aquilo?” A gente está correndo atrás e tentando achar como é que vamos lançar. Temos muita porta fechada, recebemos muitos “não”, mas tem que ir tentando e tentando. Não custa nada tentar. O “não” a gente sempre tem.

Há uma ideia de exclusividade associada à palavra “clube” e isso ajuda a ter uma noção de pertença a algo particular. Como é que vocês cultivam isso? Há um grau de proximidade com os membros do vosso clube? Há uma comunicação regular com essas pessoas?

[Leo] A coisa do clube, apesar de ser um dos pontos iniciais do projecto, foi uma coisa que demorou um pouco mais do que a gente esperava para conseguir que ficasse realmente num formato bom. Hoje temos ele a funcionar bem, temos algumas dezenas de assinantes. A nossa ideia é sempre ter algo de especial voltado a esse público. Pode não parecer, mas um ano ainda é muito pouco tempo para se pensar numa editora ou numa empresa. O objectivo dessa assinatura para por ter acesso a eventos, comunicação em primeira mão — antes de chegar para qualquer pessoa, esse conteúdo vai chegar aos nossos assinantes. Esse público, que aposta na nossa curadoria, é um público que a gente quer ter próximo para manter um certo diálogo. Queremos entender o que as pessoas procuram e o que acham interessante. Agora estamos a preparar uma pesquisa, também para ter mais dados para o nosso ano de 2023. Isso nos leva a perceber o que as pessoas querem — e não apenas os assinantes. Mas em termos de assinantes, a gente quer sempre oferecer algo especial. Pode chegar um ponto em que a gente tem 200 assinantes e nada impede de a gente fazer uma edição de 200/250 discos e, “é para vocês. E o que sobrar a gente põe no mercado”. Queremos sempre usar esse público. Afinal, são pessoas que apostam em nós.

Há um objectivo que queiram alcançar ao nível do número de assinantes?

[Leo] A gente nunca chegou a definir isso. Mas imagina que chegamos nos 200/300 assinantes: é muito interessante essa tiragem.

O clube torna-se auto-suficiente.

[Tomás] É. Se a gente chega nos 300/400 assinantes, o cenário é muito melhor. Não faz sentido eu fazer uma prensagem de 100 discos, porque vai ficar um valor absurdo. Mas uma tiragem de 300/400 já tornaria a coisa algo sustentável. A gente só precisaria de montar um calendário.

[Leo] Aliando isso com a pré-venda, a gente consegue perceber… Por exemplo, com o Dino D’Santiago, a gente pode fazer um projecto especial, abrir uma pré-venda e perceber quantas cópias a gente precisa fazer, também para não gerar stock em demasia.

[Tomás] Essa questão toda me faz pensar… A gente botou a nossa reprensagem do José Pinhal à venda e ficou pensando: são poucos os artistas em Portugal que vendem 200 discos de vinil num só dia. Se você botar 200 discos numa loja, você acha que vende num dia? Serão raros os casos. Então, se você tem um clube que sabe que, a cada dois meses, vende 400 discos, isso vira barganha de negociação. Posso chegar a um artista e, “cara, eu vou fazer 400 vinis e vou vender os 400! Na boa.”

[Leo] Até para não entrar naquela coisa de negociação que o licenciamento envolve — “eu vou fazer tantos discos e eu te pago a master consoante as vendas”. Isso gera uma coisa muito chata, que é a desconfiança de uma parte com a outra e a gente vai ter de ficar prestando contas. A gente prefere, “olha, queremos fazer 400, então a gente te paga pelos 400. O resto é connosco”. Tem essa parte. Mas no fundo é um grande desafio, construir esse público e trazer as pessoas para perto, para que continuem a apostar no que a gente está a fazer.

[Tomás] O relacionamento com o nosso público é online. Nós não temos loja física, a gente não distribui, não estamos ali na frente das pessoas. Mas fizemos isso no primeiro disco do Pinhal, fizemos uma tirada na qual a gente pôde conhecer as pessoas que estão comprando. A gente sempre falou que isto é um canal de duas vias. As pessoas podem pedir para a gente e a gente pode pedir para vocês. A gente quer ouvir. Nós somos dois brasileiros que chegámos a Portugal e… Falo com toda a abertura: eu consumia quase zero de música portuguesa. Quando estávamos no Brasil, a gente conhecia nomes, porque gostamos de música. A certo ponto, escrevi uma matéria sobre novos artistas portugueses. Falava de Linda Martini, entre outros. Mas quando viemos para cá, realmente tem todo um outro mundo muito interessante. Não só de artistas portugueses, mas também de…

Eu noto até uma certa comunidade de artistas brasileiros a residirem em Portugal.

[Tomás] Sim. No Brasil, a gente consome música brasileira. Se não é brasileira, consome música internacional dos Estados Unidos e Reino Unido. E do Reino Unido já é pouco, então Portugal menos ainda. Aqui em Portugal, vocês chega e está consumindo música portuguesa, música brasileira, música de Moçambique, de Cabo Verde… Há esse melting pot de sons e diferentes culturas. Até mesmo na rádio. Você liga a rádio — uma Vodafone FM, por exemplo — e ’tá tocando tudo quanto é coisa. No Brasil isso não existe. Se liga uma rádio brasileira, ou está tocando pop internacional ou música do Brasil. Não encontra música de Moçambique, nem de Portugal, nem da Argentina ou Chile. Não existe. Aqui em Portugal, tanto pode estar tocando ROSALÍA, como depois entra um rap… É caótico [risos]. A Lusofonia Record Club também vem daí. Eu não quero estar só a artistas de um certo sítio ou de um certo género de música.

Tem havido reacções ao vosso catálogo do outro lado do oceano? No próprio Brasil, há a consciência de que existe neste momento um selo com esta identidade e este propósito?

[Leo] Sim. A gente nunca fez nenhum esforço de assessoria para lá, mas já tínhamos muitas conexões da indústria por lá. Então há gente que sabe o que estamos a fazer. Não vou ser pretensioso e dizer, “sim, no Brasil sabem quem somos e o que estamos fazendo”. Mas existe quem saiba disso. Existem clubes de vinil no Brasil, como temos aqui.

[Tomás] A nossa ideia até é inspirada num clube do Brasil, que é a Noize Record Club.

Eu conheço a Goma Gringa.

[Leo] A Goma Gringa é uma parte da Três Selos. Depois tem a Noize, que é uma grande inspiração. Inclusive eu fiz a minha dissertação de mestrado sobre a venda de produtos musicais físicos por subscrição e entrevistei tanto a Três Selos, como a Noize e a Mondo, dos Estados Unidos. Por mais que sigamos a mesma lógica, somos diferentes.

[Tomás] O nosso foco não é Brasil. Todos os artistas brasileiros que a gente está lançando esse ano já saíram em vinil lá, no Brasil. É um mercado muito difícil de se chegar. É diferente de Portugal e do resto da Europa. Lá não tem lojas de discos de vinil. A venda é online. Por isso é que clubes como a Noize e a Três Selos funcionam muito bem. Não existe mais onde comprar discos no Brasil. Se calhar tem uma loja na cidade, mas que na verdade não representa nada. A Noize tem uns 8000 assinantes no Brasil. Eles são uma loja por si só. Aí o jogo muda. Se você quer editar vinil no Brasil, faz sentido que seja por uma Noize ou uma Três Selos. Os caras já têm uma tiragem bem lá no alto. Têm uma grande base de fãs que vai receber o disco, goste ou não goste. Os discos esgotam e isso vira um segundo mercado. Se for no mercado do Discogs ver os discos deles, estão muito valorizados. Tem hoje gente com 10 contas na Noize só para revender. Eles têm um poder tão grande, que podem chegar numa editora e dizer, “eu quero lançar aqui o Jorge Ben, porque sem mim você não consegue vender 8000 cópias desse disco”. Hoje nem precisam procurar, porque têm um poder tão grande… No Brasil, as grandes editoras devem deter uns 60% do total da música brasileira. Diria que em Portugal é muito parecido. Ou seja, elas são donas daquilo e aquilo é um mercado negro. As grandes gravadoras não têm a capacidade de produzir discos. Elas não têm mais as fábricas. Há todo o saco de produzir que requer dinheiro e muito trabalho. Então é mais fácil a Noize chegar, eles dão a master e vêem de os contratos estão certos. O grande desafio é esse monopólio de gravadoras. Eu venho de uma delas e sei mais ou menos como é.

[Leo] E as editoras grandes vão sempre pensar em horas de trabalho e no custo disso, enquanto o outro lado está a fazer uma disrupção nesse mercado. A Noize faz esse trabalho muito bem há vários anos. Inclusive foram uma revista antes. Da revista, passaram para o clube de vinil. Foram eles quem conseguiu inspirar o cachorro grande a fazer o mesmo. Hoje em dia a Universal também tem clube de vinil.

[Tomás] Foi a Noize quem acordou essas gravadoras, que perceberam que tem um mundo valioso aí. E elas têm de o fazer, porque são elas quem detém o catálogo de todos os grandes artistas brasileiros. O Caetano Veloso, o Jorge Ben, o Gilberto Gil (parcialmente), Gal Costa, Maria Bethânia, Novos Baianos… tudo isso está em grandes editoras. O grande caso do Brasil é o João Gilberto, um cara que era super protector. A maior briga jurídica no Brasil nessa página editorial é porque, naquela época, nos anos 60/70, a gravadora chegou para o João Gilberto e, “você vai me vender todos os direitos da sua vida. Toma aqui”. Pagaram um valor na época e ele deixou de ter direitos sobre tudo o que tinha gravado. Ele entrou com um processo, falou que aquele contrato não era válido e ganhou, depois de sei lá quantos anos.

Ele recuperou o direito dos masters?

[Tomás] Ele recuperou. Mas, ao mesmo tempo, ele não queria fazer nada com aquilo.

[Leo] E já tinha perdido oportunidades várias.

[Tomás] Hoje aquilo está lá, num limbo. Os masters pertencem à família. São eles os herdeiros. E aqui na Europa, a cada semana sai um novo lançamento do João Gilberto. Às vezes não se pode chamar Chega de Saudade e vira só um disco de João Gilberto, Volume 1, ou João Gilberto: As Melhores, sei lá. Em tese, na lei europeia, o direitos sobre a gravação vence em 50 anos. Tudo o que tenha 50 anos à data de gravação, você pode lançar sem direitos de autorização.

[Leo] Esse não é o caminho que a gente quer seguir. Como falámos, queremos valorizar o artista e todos os intermediários do processo. Esse é um caminho muito mais interessante.

[Tomás] Só que as obras foram gravadas no Brasil e a lei brasileira diz que o direito da fita é de 80 anos. Então qual é que vale? É a lei brasileira ou europeia? Aí fica uma briga jurídica internacional interminável.

É isso que explica que eu, no ano passado, tenha conseguido comprar, na FNAC, aquela série de quintetos do Miles Davis na Jazz Images por 14 euros — cinco álbuns!

[Tomás] É tudo de MP3.

É de ficheiros digitais, sim. Mas não serão MP3. Serão um bocadinho melhores que MP3.

[Tomás] Mas é isso: você pega no grande público do vinil de hoje e, sei lá, 50% não compram porque tem o melhor som.

Claro que não!

[Tomás] Compram porque a capa é gigante!

[Leo] E pela experiência. Eu usei o exemplo do Miles Davis ontem. É shady.

[Tomás] Esses discos da FNAC é tudo “ilegal”. É tudo feito de uma maneira que o cara bota as leis debaixo do braço, ele compra um disco que está em boa qualidade e ripa aquilo. E hoje, se você tiver um bom engenheiro de som, o cara consegue transformar aquilo de uma maneira inacreditável.

[Leo] O ouvinte médio não vai conseguir distinguir a diferença.

[Tomás] Eles até botam selos dizendo “o melhor som”.

Como é que eles dizem? Best source available. Mas available onde?

[Tomás] Até há um caso recente de um clube de vinil americano. Eles estavam dizendo que o som veio das fitas e… porra nenhuma! Veio tudo dos arquivos digitais. “Foi mau, galera.”


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