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Texto: Paulo Pena
Fotografia: Geraldo Ferreira
Publicado a: 15/10/2023

O que se ganhou na acessibilidade perdeu-se na essência.

Iminente Takeover’23 — Dia 1: tudo ao molho e fé em Vhils

Texto: Paulo Pena
Fotografia: Geraldo Ferreira
Publicado a: 15/10/2023

Daqui para a frente tudo dependerá do que cada um procura, sabendo de antemão ao que vai. E não há perspectivas mais ou menos válidas consoante os diferentes interessados. Mas essa subjectividade não nos iliba de sermos frontais e honestos no papel que nos cumpre, mesmo que nesta sede ultrapassemos as fronteiras do género aqui pedido.

Ditam os segredos da reportagem que é no primeiro parágrafo, idealmente na primeira frase, que se agarra o leitor para o que há-de vir por aí abaixo. A chave está, por isso, no primeiro frame que se escolhe a partir de tudo o que merece ser reportado. Depois há opções que variam à medida do estilo pessoal de quem conta o que tem para contar: há quem faça o papel de intermediário directo entre o evento ocorrido e o leitor que não o terá presenciado, outros preferem enveredar por uma visão assumidamente pessoal da vivência da experiência. Mas o objectivo passa sempre, e fundamentalmente, por contar (e pensar sobre) o que se testemunhou.

Nessa medida, e com um dos caminhos bem definido, poderíamos recorrer aos “pormenores deliciosos” de Pablo Assis com a bola nos pés ao som de “Vírgulas e Túneis”, cantado por Blasph em nome de VLUDO, enquanto acto final da curadoria feita por Sam The Kid no Palco Choque, ao primeiro dia da 13ª edição do festival Iminente. Ou à aparição surpresa de Slow J, a quem Dino D’Santiago deu palco para mais do que “Esquinas” partilhadas, para que João Coelho apresentasse algumas das novas peças do seu AfroFado ao vivo. Mas pouco mais que isso. Porque, de resto, pouco mais nos ficou deste “takeover” mal amanhado.



Aliás, quando, já tarde, avançávamos pela Rua do Arsenal em direcção ao Terreiro do Paço — a brilhante localização escolhida para a edição (também ela tardia) do Iminente deste ano —, a voz distante de Rita Vian augurava tudo o que havíamos, sem dedos que adivinham, prenunciado sobre esta mudança inusitada: que a Praça do Comércio não teria espaço suficiente para um festival desta dimensão, ainda para mais com três palcos, espaços recreativos, instalações artísticas e zonas de alimentação à mistura. E queremos acreditar que, mesmo tendo saído o tiro pela culatra, as intenções para esta deslocação inexplicável tenham sido realmente as melhores, designadamente as da promoção da descentralização inclusiva, a começar desde logo pelo acesso gratuito.

A questão é que, parece-nos, passar da Matinha, já quase em Marvila, para a zona mais turística da capital não configura em si uma efectiva descentralização — para começar. Ademais, toda a história do Iminente em Portugal se fez de descentralização (à escala distrital, vá), de inclusividade artística e de acesso justo. O festival começou, de forma romântica, no Jardim Municipal de Oeiras, em 2016, com bilhetes a dois euros, mudou-se para o abandonado Panorâmico de Monsanto em 2018, com bilhetes a dez euros, saltou para a Matinha em 2021 (depois da excepcional edição pandémica em 2020), com bilhetes a 18 euros, e chega agora, em 2023, à Baixa Pombalina com acesso gratuito. Mas a que preço?

O resultado deu no que seria de esperar. Tudo ao molho e fé em Vhils. A mística que fez do Iminente um anti-festival perdeu-se, e essa perda não se traduziu numa cedência ao lado mais óbvio da força: longe na essência dos NOS Alive, MEO Sudoeste ou Super Bock Super Rock, transformou-se, por outro lado, numa feira de Natal em maior escala e numa passagem de ano em menor. O palco principal cumpre o seu desígnio, servindo razoavelmente as idiossincrasias artísticas de gente como os já referidos Dino D’Santiago e Rita Vian, mas também de Soraia Ramos e Branko. E, porque quem não paga não terá razão de queixa, esses mínimos olímpicos chegariam para, como vimos, entreter uma pequena multidão que, em boa parte, não tem acesso (seja por falta de possibilidade, disponibilidade ou interesse) a espectáculos culturais deste calibre. Cumpre-se, assim, o papel autárquico que compete às preocupações culturais das câmaras municipais, como ao longo do Verão vemos com maior frequência acontecer — e, neste caso, a de Lisboa até teve mão larga no assunto. E o resto? Bom, é jogar com o que se tem, distribuir o mal pelas aldeias, os palcos pelos cantos, as instalações pelos recantos, e as demais áreas úteis por onde, bem apertadinho, couber.



De dia, entre pequenas demonstrações e “talks” pertinentes (também as há, reconhecemos), a coisa ainda se vai agilizando porque a programação assim o permite mais folgadamente. Mas, mal a noite cai e o comboio das actuações acelera, está instalado o caos de hora de ponta. O palco Halfpipe vê-se engolido, e o Choque sobrelotado. Além disso, a reconfiguração deste último só veio dificultar, mais ainda, o tal acesso — palavra de ordem desta edição. Se anteriormente o palco propriamente dito era instalado ao centro da estrutura emprestada das feiras populares, desta vez foi encostado a uma das pontas, tendo por consequência uma série de concertos dados apenas para as primeiras filas. Nem a meio, nem dos lados, e muito menos lá de trás, era possível ver o que quer que fosse de quem estaria a cantar. E mesmo no que toca a ouvir — a parte mais importante — a coisa não se afigurava nada fácil. O que é uma pena, francamente. Felizmente, a título pessoal já foram várias as oportunidades de ver em carne e osso, e de viva voz, gente como DJ Kronic, AMAURA, Tom Freakin’ Soyer, ORTEUM, Blasph ou o próprio Sam The Kid — e todos os demais convidados de cada acto. Vezes suficientes para nos darmos ao luxo, até, de os ver sem as devidas condições. Só que essa não é, nem nunca foi, a bitola do Iminente, um festival que sempre primou pelo tempo de antena dado a artistas verdadeiramente merecedores dessa atenção, em espaços adequados às suas manifestações artísticas multi-disciplinares, tantas vezes alheado às tendências e aos formatos tradicionais. E o mesmo se poderá dizer das instalações artísticas: perdidas, escondidas ou camufladas por toda a azáfama estrutural, perderam também brilho, força, urgência e razão, ficando reduzidas a meros adereços cénicos, recursos estéticos de uma cultura urbana actualmente tão apelativa.

A última edição bem tinha servido de aviso de que algo não estava a correr da melhor forma, mas a acentuada quebra na adesão não encontrará justificação, seguramente, nem na localização nem no preço. Novamente, até prova em contrário estamos em crer que esses factores não terão motivado por si só esta mudança. Porque, feitas as contas, afinal o que é que se ganhou? Ou, mais importante ainda, o que é que se perdeu? Abriu-se espaço a mais diversidade ao nível do público, é certo. E a gratuitidade é sempre bem-vinda, independentemente de quem dela beneficie. No entanto, o custo dessa democratização — chamemos-lhe, de muito boa-fé, assim — está a ser pago pelos próprios espectadores que das duas, uma: ou já eram iminentes e sabem — manifestam-no, aliás — o que estão a perder por comparação, ou descobriram agora um novo festival que, mesmo entretendo, poderia fazê-lo muito melhor. Agora, se a ideia era mesmo transfigurar um certame com uma identidade tão bem definida e uma cultura (urbana, com tudo o que isso representa) tão enraizada, mais valia terem-no feito até ao fim: desmascarar intenções de um “takeover”, e assumir “Iminente is over”. Pelo menos aquele que tão bem conhecíamos.


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