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Fotografia: Petra Cvelbar / Jazz em Agosto
Publicado a: 12/08/2019

O músico americano apresentou Origami Harvest, o seu mais recente disco, na Fundação Calouste Gulbenkian.

Ambrose Akinmusire no Jazz em Agosto: a arte de trabalhar as emoções (e a chuva enquanto amplificador das mesmas)

Fotografia: Petra Cvelbar / Jazz em Agosto
Publicado a: 12/08/2019

O mote desta edição do Jazz em Agosto – a resistência – foi enriquecido pela noite de 10 de Agosto de 2019: o belíssimo concerto de Ambrose Akinmusire, criador do assombroso e desafiante Origami Harvest, sexto título na sua discografia de líder, ganhou uma dimensão enternecedora ao som da chuva. À volta desse mesmo álbum, lançado no fim do ano passado, o trompetista americano desafiou os ouvintes e os limites estilísticos de diversos géneros de música. Uma amálgama coesa e indefinível que absorve jazz, electrónica, hip hop e música de câmara que, defende o próprio músico, “é tudo a mesma coisa”.

A temática política e pesada do longa-duração confirma o concerto de Ambrose como uma escolha obrigatória para esta edição específica do festival na Fundação Calouste Gulbenkian. Origami Harvest surge no centro de uma América liderada por Trump, mas vem já de uma continuada visão sobre o que significa ser negro na suposta “land of the free”. Na turma de músicos de primeira linha do outro lado do Atlântico, e no meio de colegas como Terrace Martin, Thundercat, Kamasi Washington ou Robert Glasper, Akinmusire é capaz de ser o mais inovador e difícil de catalogar. A sua arrojada instrumentação e a liberdade estilística que se auto-propõe são elas mesmas uma forma de resistência, de afirmação cultural afro-americana.

Trompete, piano, teclados, voz, bateria e quarteto de cordas em combustão. A junção tímbrica de diferentes mundos é arranjada de maneira exímia; as melodias tanto jogam como respondem umas às outras entre trompete, sintetizador e voz; as harmonias distribuem-se pelo piano e pelas cordas – os temas por vezes começam no quarteto para depois serem gentilmente martelados ao piano; bateria dinamiza e cimenta o peso que cada momento tem. Ao vivo sente-se com maior intensidade a diferença entre dinâmicas ao longo da narrativa, como se víssemos um papel ser mexido e remexido até chegar ao resultado final: um origami.

Ao jogar com o jazz e com a música erudita – com os mesmos temas a serem tocadas pelos vários instrumentos –, Akinmusire demonstra uma capacidade impressionante de escrita e arranjo musical, mas revela-se também ímpar ao nível das texturas que envolvem o seu imaginário musical. A junção desta instrumentação a um lado electrónico entusiasma qualquer produtor ou curioso ouvinte que se cruze com esta música.

O trompetista é um virtuoso (por alguma razão tem o currículo que tem, a tocar com Brad Mehldau, Steve Coleman e Kendrick Lamar), mas contém-se. Grita e chora quando precisa, mas cala-se e ouve o seu grupo quando não tem nada a acrescentar. Alimenta com melodia ou até timbres mais experimentais as suas composições. Mas tudo isto envolve pouca improvisação: todo o álbum foi pensado e escrito com precisão, como confessou na já “linkada” conversa com Rui Miguel Abreu.

A ligação entre todos os elementos dá-se em parte por Justin Brown, na bateria. Embora não esteja presente em todos os momentos, segura todas as sonoridades e as estruturas musicais sentem-se grandemente construídas à sua volta. A composição harmónica desenvolve-se, mas a percussão junta todos os instrumentos, cresce e ainda se desfragmenta. “Miracle and Streetfight” traz um aplaudido solo de bateria que logo desagua numa harmonia tensa e negra, jazzística e abismal.

Tudo isto é executado ao milímetro, apesar de se sentir alguma liberdade estrutural: ao mesmo tempo que tudo está escrito em pautas, somos empurrados até aos cantos recônditos do free jazz. Apelando ainda à repetição melódica, o colectivo aplica uma certa tensão, mas não deixa de mostrar como uma mesma nota se comporta nos diferentes acordes, ritmos e desenvolturas ambientais de uma determinada peça.

Sam Harris ao piano e o Mivos Quartet dão-nos uma das maiores razões para admirarmos Ambrose — a composição — e cooperam para dar o tom e o espírito da música. A intensa “Free, White and 21”, na qual Kokayi dispara nomes de vários jovens afro-americanos assassinados – de ressalvar a sua capacidade técnica e admirável voz, entre o rap, a spoken word e o canto mais soul – apresenta uma tensão coadjuvada pelo jogo harmónico notável. Aí expressa-se também o contraste entre opostos que está tão assente ao longo de Origami Harvest.

A noite de chuva em pleno Verão deu azo a que algumas pessoas abandonassem o concerto mais cedo, tendo-os feito perder um momento irrepetível: Ambrose, ao ver o público a tapar-se e a sair, convidou as pessoas para subirem ao palco do anfiteatro da Gulbenkian, abrigando-se dos elementos. Pôde-se ver o fim do concerto e o encore muito próximo dos músicos, tornando ainda mais íntimo o emocionante espectáculo. Também aqui a resistência ao mau tempo, compensou. O som da chuva nunca preencheu tão bem a banda sonora de uma noite de Agosto. Uma indefinível banda sonora, sem etiquetas ou caixas. Porque, no fim de contas, “é tudo a mesma coisa”.


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