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Fotografia: Márcia Lessa
Publicado a: 10/07/2023

Findar em beleza.

Funchal Jazz’23 — Dia 3: da dinâmica da big band à homenagem às grandes mulheres

Fotografia: Márcia Lessa
Publicado a: 10/07/2023

Não se sabe se por causa do cansaço — afinal de contas era a última apresentação no derradeiro dia de um festival que tinha começado uma semana antes —, se por causa desta ser talvez a mais desafiante proposta no cartaz da edição 2023 do Funchal Jazz, mas a verdade é que o fluxo de gente a abandonar a plateia disposta no tapete verde do Parque de Santa Catarina foi considerável durante o concerto do projecto New Standards liderado pela baterista, activista e pedagoga Terri Lyne Carrington. Tal facto não diminuiu, muito pelo contrário, a decisão de levar à Madeira o colectivo liderado pela baterista nativa de Medford, Massachusetts, antes reforçou o quão importante é não ceder aos gostos dominantes do público abrindo espaço para a ruptura e para a criatividade mais exigente.

Não que Carrington tenha levado ao Funchal na noite do passado sábado um espectáculo de música “difícil” ou “livre” e fora do alcance de um público menos “conhecedor” (nem deste lado se acredita que tal coisa seja possível — toda a música pode e deve ser para toda a gente que a queira ouvir…). Na verdade, o colectivo em que ao lado da líder brilham o vocalista Michael Mayo, a trompetista Milena Casado Fouquet, o guitarrista Matthew Stevens, a pianista Kris Davis e o contrabaixista Mats Sandahl é praticante de um jazz escorreito, claramente fundado na tradição, mas de recorte marcadamente contemporâneo, que apresenta um repertório especial, é certo — uma vez que explora fundamentalmente composições de mulheres, algo que leva Terri Lyne a declarar não ter intenções de “substituir” os standards, antes de “acrescentar” novas obras ao cânone — mas nem por isso de complexa digestão. Faltar-lhe-ão alguns dos “floreados” — bastas vezes usados nas noites anteriores — que satisfazem a sede de entretenimento que o público gosta de ver saciada: não há um único solo que redunde em “show off” ou uma única comunicação que se remate com humor fácil, por exemplo. Mas ainda que haja peças que se sustentem em shuffles de recorte tropical, balanços com músculo funk (ainda que algo angulares, como mandam as declinações modernas) e demonstrações de virtuosismo individual e colectivo, nada naquela apresentação dispensou atenção concentrada do público e quando se exige tal entrega — como num filme em que o argumento não segue uma lógica linear ou em que os diálogos são mais rebuscados — há sempre quem se canse mais rapidamente e saia para ir comer pipocas noutro lado qualquer.

Por entre reportório de compositoras mais reconhecidas, como Abbey Lincoln, Carla Bley (que também assomou na apresentação de Kurt Elling) ou Geri Allen e outras menos celebradas como Gretchen Parlato ou a própria Kris Davis, construiu-se um set que nunca divergiu do absoluto bom gosto, repleto de momentos de classe, com a líder a exibir o seu pulso firme em sofisticadíssimas bases rítmicas que a sua banda enalteceu sempre com entrega carregada de alma e pensamento: belíssimos os solos da pianista Kris Davis, da trompetista Milena Casado ou do guitarrista Matthew Stevens, por exemplo, e com o vocalista Michael Mayo a mostrar-se igualmente dotado, ainda que jamais expansivo como antes — cada um à sua maneira — Samara Joy ou Kurt Elling demonstraram ser, complementaram um concerto que talvez pedisse auditório fechado em vez de jardim com oceano em fundo, mas que nem por isso deixou de ser o melhor de todo o festival.



Antes da apresentação de Terri Lyne Carrington, exibiu-se no palco a Orquestra de Jazz do Funchal com Perico Sambeat no papel de solista convidado e maestro. O saxofonista espanhol tem muitas e fundas ligações à cena jazz do nosso país e por isso vê-lo no invejável papel de timoneiro de uma formação desta natureza é apenas mais um ponto de destaque num currículo carregado de conquistas.

É um luxo poder assistir a uma bem preparada apresentação de um colectivo com um generoso naipe de metais (4 trompetes, 4 trombones, 5 saxofones) a que acrescem bateria, percussões, contrabaixo, piano e guitarra, a espalharem classe por temas com delicados perfumes de flamenco e boleros, de rumbas e até de mais intenso aroma funk. Mérito dos irmãos Francisco e Alexandre Andrade, que se sentaram ao lado dos demais sopradores e que mantêm esta big band bem oleada e preparada para qualquer embate. Com solos muito aplaudidos de instrumentos como o trombone ou o contrabaixo e um Perico Sambeat a não esconder o seu justificado deleite e a espalhar charme e paixão sob a forma de solos torneados com absoluto requinte, tanto no alto como na flauta, este foi mais um motivo para que o Funchal Jazz tivesse uma noite que fechou com chave de ouro puro uma semana de celebração.

Os sorrisos que se testemunharam no átrio do hotel na manhã de regresso a Lisboa exibidos vários músicos, técnicos, jornalistas e até algum público são bem demonstrativos das positivas vibrações de um evento com carácter vincado, programação de bom gosto e de apelo amplo e envolvência especial. A repetir, certamente.


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