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Fotografia: Mário Filipe Pires & Nuno Pinto Fernandes / FMM
Publicado a: 29/07/2023

Acolher e dar voz.

FMM Sines’23: a sagração da liberdade

Fotografia: Mário Filipe Pires & Nuno Pinto Fernandes / FMM
Publicado a: 29/07/2023

Sines é, sem dúvida, um lugar muito especial que tem o mérito de se ter sabido transformar neste último quarto de século à boleia do Festival de Músicas do Mundo, um evento que fez — e realmente continua a fazer — por estar à altura da designação que escolheu. Carlos Seixas, o seu carismático director artístico, descreve Sines como “espaço de diálogo e liberdade” e isso é  inquestionável: o diálogo acontece de formas diferentes — entre os músicos, dentro e fora dos palcos, entre as culturas que eles representam ou reimaginam, mas também de forma muito directa, em mesas redondas, por exemplo.

Nas “iniciativas paralelas” — assim classificou o programa oficial o ciclo de conversas e outras actividades que ocuparam o Pátio das Artes e outros espaços — houve espaço para oficinas dirigidas a crianças, para uma demasiado tentadora feira do disco, do livro e do cartaz e, entre outras coisas, para palestras, debates e conversas.

Discutiu-se, num bem animado fim de tarde na última terça-feira, 25 de Julho, como se equilibra a maternidade e diferentes carreiras artísticas, com Selma Uamusse, Marta Félix, Susana Moreira e Marta Lança a explicarem como se anda na estrada, se sobe a palcos, se escreve enquanto em simultâneo se responde a solicitações dos mais pequenos. Por outro lado, Lucy Duran apresentou, no início da noite, uma palestra sobre a ética que acredita ter sempre investido na colaboração com e gravação de artistas musicais da África Ocidental. Essa exposição ilustrada com excelente música serviu depois como ponto de partida para um debate em que o signatário destas linhas e ainda a DJ, activista, pensadora e escritora Sandra Baldé, também conhecida como Umafricana, se envolveram para, ao longo de uma intensa hora, se pensar, com a ajuda de um participativo público, em como é possível descolonizar o pensamento. Ultra-positiva a experiência, pois claro.

Nitidamente que o FMM tem contribuído, e de que maneira, para esse esforço de descolonização. É o próprio Carlos Seixas que o explica na sua apresentação da edição 2023 do FMM: “Ao convocar, ano após ano, as músicas tradicionais e atuais, os seus mais notórios representantes e aqueles que o virão a ser, o festival de Sines, desde há 25 anos, acolhe e dá voz a artistas que assumem um papel importante na consciência colectiva”. Ideias-chave aqui: “acolher” e “dar voz”. Descolonizar, portanto.

O Rimas e Batidas, em permanente luta com a ubiquidade, só conseguiu marcar presença nos dois primeiros dias do programa, mas isso foi suficiente para assistir a belíssimas apresentações, com destaque para A garota não, na última quarta-feira, e Tinariwen, no dia seguinte. Houve muito mais, claro, mas estes dois concertos simbolizam bem a expressão da tal liberdade que foi sempre pilar da filosofia deste festival.

Nas suas redes sociais, a artista que também responde ao nome Cátia Oliveira escreveu o que sentiu e sente: “Não foi top, nem épico nem brutal, palavras que me soam tão estranhas nos contextos em que são usadas hoje. Foi Sines a ser Sines. Foi o Festival Músicas do Mundo a cumprir-se mais um dia. Um Festival que é mais de abraços do que de selfies, mais de liberdade do que de tendências, que é diferente pelo amor que tem à diferença, que promove o encontro com o outro, a aproximação ao outro, o respeito pelo outro”.

Tudo verdades, e isso sentiu-se especialmente no seu concerto, oportunidade para nos entregar as canções de 2 de abril e não só, de trazer para o seu lado os bons fantasmas de Zeca ou Zé Mário, os espíritos presentes de Sérgio ou Allen Halloween. Tudo temperos de uma alma que canta a verdade que conhece e que nos agarra com uma sinceridade que é tudo menos vulgar, que é preciosa porque real. A resposta do público foi intensa, mas de uma forma diferente, pelo palpável sentido de união que atravessou, como se com as suas palavras e melodias, A garota não nos dissesse que fazemos todos e todas parte de qualquer coisa importante, talvez do tal ímpeto de mudança que o FMM sempre professou através da forma como ano após ano desenha o seu programa.

Houve mais nesse primeiro dia: espreitou-se outro Portugal com Carminho, foi-se ao México com Lila Downs, ao Mali com Rokia Koné, a Cuba com o extraordinário e enérgico Cimafunk, à Jamaica com o não menos surpreendente Brushy One String, e à República Democrática do Congo com Kin’gongolo Kiniata. Uma volta ao mundo em que a música nunca perde uma característica essencial e transversal: uma realmente positiva vibração que eleva e conforta.

No segundo dia da programação em Sines, o Castelo abriu as portas com uma Rita Vian a testar as canções do nosso futuro, os Gilsons a carregarem para a frente a inventiva tradição do patriarca Gilberto Gil e com o mapa do programa a apontar depois a Marrocos (e França) com Bab L’bluz ou ao Paquistão (e, uma vez mais, França) com Alright Mela Meets Santoo. Mas o que nos captou com tremenda força a atenção foi a actuação dos grandes embaixadores do povo Tuareg, os justamente lendários Tinariwen. A sua música hipnotiza de uma forma muito literal, transporta para uma experiência que é tão única quanto rica, continuando a propagar ecos de uma cultura que lhes inspira uma música tão funda quanto original, tão envolvente quanto libertadora. É tão fácil fazer magia…

O dia terminou, já no palco da Avenida Vasco da Gama, com a apresentação neste fantástico programa de 2023 da primeira das lendas da África Lusófona programadas: os gigantes África Negra, que prosseguem a missão do seu “comandante”, o “General” João Seria, desaparecido em Maio último, mas de espírito muito presente. Na sexta, 28 de Julho, dia em que o Rimas e Batidas já não marcou presença, houve ainda espaço para apresentação dos igualmente lendários Tabanka Djaz, da Guiné-Bissau, com o programa de hoje a incluir também, entre nomes de outras latitudes, concertos de Ghorwane de Moçambique, Tubarões de Cabo Verde e, também da Guiné-Bissau, Super Mama Djombo. Todas elas bandas míticas que prosseguem no agora a sua missão de sempre de representar as ricas culturas que os viram nascer.

É assim, Sines.


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