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Fotografia: Inês Aleixo
Publicado a: 25/11/2023

Menos medo de ser.

Filipe Sambado no Auditório CCOP: um exercício de como libertar emoção

Fotografia: Inês Aleixo
Publicado a: 25/11/2023

Num ensaio publicado no The Washington Post, o crítico norte-americano Chris Richards descreve assim a génese do emo: música construída a partir de um “estado de extrema vulnerabilidade”. Falar de Três Anos de Escorpião em Touro, o mais recente disco de Filipe Sambado, implica falar de extrema vulnerabilidade. De como Filipe Sambado concebeu num trabalho as suas vivências e sentimentos, em particular da fase de vida em que se assumiu publicamente como pessoa não-binária. Não custa muito, então, assumir que, por debaixo das camadas todas destas canções, Três Anos de Escorpião em Touro seja um disco de emo.

Ao olhar para a sonoridade de Três Anos de Escorpião em Touro, esta conjetura talvez não seja imediata. Afinal, o emo surgiu como uma vertente mais emocional e crua do hardcore, e Três Anos de Escorpião em Touro encontra-se muito longe desse universo. É um disco com bases no hyperpop e no shoegaze que se desdobra em pop louca capaz de homenagear e traçar pontos de ligação com a obra prévia de Filipe Sambado. Mas como todos os outros géneros, o emo sofreu mutações. 

O emo de hoje é diferente do emo popularucho, mas não menos importante, dos anos 2000, e é certamente diferente do emo de uns Jawbox (anos 90) ou dos Rite of Spring (primórdios). É um emo construído da devoção por vários géneros, pelos cruzamentos sonoros de artistas como Lil Peep (e há algum emo trap neste disco de Sambado), pela busca em catarse. Pense-se em Jane Remover, Anxious, o projeto português Dispirited Spirits, brakence, Olivia Rodrigo. Todos os estes artistas são emo de uma forma ou outra. Apesar disso, todos soam diferentes. O que os une é essa busca por catarse, liberdade, o expelir das suas tripas via música que, independentemente das suas influências e da forma como a criam (muito com a ajuda do computador), desagua em composições à base da guitarra. 

Sim, Três Anos de Escorpião em Touro é um disco de emo. E quem assistiu aos concertos no Lux Frágil, em Lisboa, na quinta-feira da semana passada (16), e desta quinta-feira (23) no Porto, no Auditório CCOP, sabe-o. Os arranjos ao vivo das malhas de Três Anos de Escorpião em Touro conduzem-nos para uma sensação de vulnerabilidade extrema. As texturas construídas por Sambado, Bejaflor e Rodrigo Castaño são a chave para estas canções ganharem vida em cima de um palco, notando-se a adoração de Filipe pelo shoegaze — mas não só. Há momentos neste novo espetáculo de Sambado que nos remetem para bandas como Deftones, garantindo-nos que, quem gosta deste novo disco da autora de Vida Salgada, certamente gostará do impressionante novo disco de Jane Remover (Census Designated). As linhas estão a ser construídas. Haja alguém que as sabe ligar.

Apoiada por um novo grupo de Acompanhantes de Luxo em palco — Vera Cruz (baixo, teclados e vozes), Joana Komorebi (bateria), Chinaskee (beats, percussões, vozes e ruídos) e AURORA (vozes, danças hipnotizantes) —, Sambado abriu-nos a cortina para vislumbrarmos o seu mundo. Um mundo construído a partir do seu passado, mas que visa criar um melhor futuro. Um mais inclusivo, claro. Onde as fronteiras de género são quebradas, onde o binário é completamente destruído, onde somos livres de ser quem quisermos, de estarmos com quem quisermos. Um hino como “Talha Dourada”, grito de Minion a não faltar ao vivo, é prova disso. Mas não é o único.

Perante uma plateia composta — merecia sala cheia, contudo — Sambado e compinchas não demoraram a lançar-nos o convite para vivermos, momentaneamente, nesse oásis de refúgio. “Serralha, Serralhinha”, mais explosiva ao vivo, levou-nos até “Caderninho”, onde a voz de Conan Osiris se escutou no PA para adornar este hino a Death Note, por entre gritos e guitarras poderosas a carregarem na distorção e textura. Sentiu-se na pele as distorções, sentiu-se na pele as emoções.

Se esta nova era de Filipe Sambado foi construída a partir das suas eras anteriores, contudo, era natural que Filipe visitasse canções antigas. “Vida Salgada” levou uma roupagem mais pesada para se adequar a esta nova era. “Jóia da Rotina”, puxada do universo mais cantautor de Revezo, curiosamente ganhou uma roupagem mais delicada, a perder alguma da sua componente de pop dançável. Isto demonstra o quê, contudo? Pensemos na forma como Sambado passou de “Beijinhos”, canção upbeat e medley à mistura, para a tristonha e emotiva “Choro da Rouca”. É um choque de emoções intenso a acontecer, tal como é a vida — a emotiva “Mau Olhado” que o explique. Não há nada mais emo que isso.

Se Sambado são as mil e uma emoções que constroem a sua pessoa, então a sua música e o seu espetáculo são essas demonstrações. Se Sambado queria demonstrar-se mais livre, com menos medo de ser, conseguiu-o. Quando a festa de “Deixem Lá” terminou e as luzes do CCOP se acenderam, ao centro, enquanto a banda arrumava o estaminé, “Um Lugar na Mouraria”. Um fadinho. Mais uma faceta de Sambado a ganhar vida. Só que esta é o remate final: Sambado confortável na sua vulnerabilidade, nas suas novas peles, na sua vida atual. Com mais ou menos medo, continuará a transformar o seu quotidiano e vivências em fantásticas canções pop. Nós, deste lado, vamos continuar a ouvir. A escutá-la, ao vivo e em estúdio, também temos menos medo de ser.


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