Quando em 1964 José Afonso fazia constar o identitário tema “Os Bravos” nos primórdios da sua discografia para o registo Baladas e Canções, haveria de perpetuar o que as gentes e o cancioneiro popular açoriano souberam manter como parte de si. Nesse mesmo tema refere a lírica haver essa tal terra do bravo, indo-se para ver se embravecia. Ora essa terra é insular na geografia como sabemos, mas podemos ler também o sentido de isolamento se lhe quisermos ver num contexto social e das ideias. Este é também tema talismã no alinhamento de palco do poeta e compositor açoriano Filipe Furtado, que o retoma a propósito e com propriedade, ainda que a noite seja de apresentação de um novo conjunto de temas que compõem o seu próximo registo Como Se Matam Primaveras a lançar fisicamente muito em breve. Canta Furtado tema adiante, como cantou Zeca e todas as demais vozes que o fizeram, na última estrofe que contudo nas ondas brancas desse mar há os coitadinhos que nascem bravos para morrer no meio dele. Quando os tempos são de referir formas de matar primaveras, fica apontado esse outro e claro propósito.
Filipe Furtado, depois do disco de estreia Prelúdio em 2022, onde alinhava o trompete de Miguel Ferreira, torna mutante o trio e passa a contar como voz soprada o saxofone alto de Filipe Fidalgo, mantendo imprescindível a bateria de Paulo Silva. Mas estamos para ouvir a principal mudança operada no largar da guitarra e a dedicação exclusiva ao piano e teclados. O concerto vai mostrando essa transformação da musicalidade do trio que deixa transparecer estar permeável ao inebriante perfume do novo jazz britânico, permutando-o com as influências da bossa nova de até então. Mantém-se a matriz que se vai consolidando no jazz de Furtado, de todo invulgar, que é a palavra cantada por si, nesse seu legado linguístico insular e constante no decurso do seu pianismo. No palco do Salão Brazil pôde contar com o grande piano, que confere robustez e corpo tímbrico aos temas em apresentação.
O disco encarregar-se-á de esclarecer os casos onde as peças musicais são o motivo de encaixe pela métrica das palavras ou, por outra, se são poemas musicados. Pouco importará tal intriga na hora de usufruir das palavras e da música de Furtado, Fidalgo e Silva. Referindo as demais vozes presentes, cabe destacar o tema da autoria de Fidalgo que solicitamente dedicou a muitos dos povos sitiados por opressores, de Gaza a Ramallah, na Cisjordânia. Nesse tema feito de sonoridades de libertação do seu alto, contribuiu de forma eruptiva para o efeito o processamento que dispunha num dançante jogo de pés aos pedais. Fidalgo que traz esse fulgor à musica de Furtado, num sopro à medida e que contribui com idas complementares ao teclado sintetizador que o acompanha.
Furtado faz uso constante da palavra cantada, por vezes até dita, nas peças apresentadas e como demonstrado em “Ada”, a letra que escreveu apaixonando-se enquanto leitor de Ada ou Ardor do romancista russo Nabokov. E precisamente vai assumindo Furtado tema adiante a rendição no seu poema “Ada meu Ardor / não tenho jeitos de poeta / mas posso descrever / como tua pele me desperta”, isto enquanto Silva escova peles e pratos em modo de balada para se ouvir Fidalgo em coros de ecos perdidos na distancia pontuados por cintilantes idas ao teclado. Furtado ao piano segue em delongas poéticas, “hei-de amar-te para sempre”, num corpo quer esteja ausente ou quer seja diferente, transmutando-se inevitavelmente. Se este é um tema de natureza dolente no que toca à paixão, outros surgem que despertam sentimentos noutros campos, como acontece na apresentação de “Campos do Mar”. Furtado inscreve a sua poética a valer canções de mão cheia, quando nos canta “campos do mar / são viúvas sem par / reclamam seu parecer / das agruras de esquecer / arados no chão / transfiguram-me a pele / cavalos a verter / os rosários do crer”.
O desfecho, em atmosfera empolgante refira-se, estava reservado ao tema “Cravos”, que dá pleno significado ao nome do conjunto destas composições. Furtado foi até apontando a múltiplas possibilidades de leitura deste Como Se Matam Primaveras, mas a ideia das primaveras revolucionárias, sejam elas árabes ou a que Abril de 1974 marcou como data maior, tornam essa leitura incontornável, ainda para mais na ameaça que paira. Justamente quando canta “não te demores nesse dia / o patrão não te deixa receber / não te demores nessas vidas / sem tempo para morrer”, o tema-combate aclara e pede a “tua companhia nessa luta sem fim / os caminhos dessa estrada / devem ir para Abril / se não chegarmos atrasados / talvez Maio possa florir”. Ficou dito, cantado e mais ainda reiterado a plenos pulmões, em efeitos múltiplos que “FASCISMO NUNCA MAIS!”