pub

Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 06/02/2022

Notas azuis, portuguesas e notáveis.

Festival Porta-Jazz’22 – Dia 2: Um Grande Dia no Rivoli

Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 06/02/2022

Em 1958, Art Kane reuniu numa escada em frente de uma típica casa de Harlem 58 notáveis músicos — entre os quais Dizzy Gillespie e Lester Young, Sonny Rollins ou Horace Silver — para uma mítica fotografia que muito justamente entrou para a história tendo ficado conhecida como A Great Day in Harlem. Ontem à noite, após uma verdadeira maratona de seis concertos que começou pelas 16 horas e só terminou já perto da meia-noite, João Pedro Brandão arrastou para a escadaria da Praça D. João I, em frente ao Rivoli, espaço em que está a decorrer a 12ª edição do Festival Porta-Jazz, boa parte dos músicos presentes no cartaz bem como técnicos, outros músicos amigos, jornalistas e demais cúmplices de uma verdadeira comunidade que está unida em mais do que compreensível celebração. Adriana Melo, da Mínima, documentou depois para a posteridade esse momento, o culminar de Um Grande Dia no Rivoli, no Porto e no nosso país de jazz.

Foi precisamente o final da noite, que contou com apresentações de Outro Cielo de Demian Cabaud e de Sombras da Imperfeição, o “concerto desenhado” que reuniu o quarteto de geometria improvável do pianista Hugo Raro e o artista plástico Jas, que coroou uma jornada intensa e de propostas muito diversificadas que se espalharam por três distintos blocos de concertos.

O último dos blocos, o quarto do programa, aconteceu no Grande Auditório do Rivoli. Ao contrabaixista Demian Cabaud coube então a apresentação de Otro Cielo, trabalho lançado em 2021 na Carimbo Porta-Jazz. Consigo esteve o mesmo notável ensemble que gravou o disco: João Pedro Brandão no saxofone alto e flauta, José Pedro Coelho no saxofone tenor, João Grilo no piano e Marcos Cavaleiro na bateria. Um quinteto de absoluto luxo e classe insuperável que assinou um assombroso concerto.

Sobre a música de Outro Cielo, escrevi aqui algumas linhas, referindo que “é do alto da tradição bop e pós-bop que se vislumbra o “outro céu” a que o título deste álbum alude. No diálogo dos sopros com que “Fausto” (a mais longa das peças aqui incluídas, com quase 10 minutos) arranca entende-se que esse olhar sobre a história (há até uma discreta vénia melódica a Coltrane) se faz a partir do presente admitindo o colectivo não apenas a memória do jazz na sua origem, mas também todos os “desvios” que o tempo lhe foi impondo, na Europa e mais além, com a prática de uma vivência portuense a ser a “praia” onde todo este som e vibração desemboca”.

Ontem, o que o estúdio permitiu documentar para memória futura teve nova confirmação directa e de absoluta beleza, um concerto de jazz sério, para gente crescida, executado por cinco músicos em plena forma: Cabaud e Cavaleiro são uma dupla estrondosa, uma autêntica unidade que entende como dominar o tempo, desenhando-o com régua e esquadro, em jogos de deleite rítmico que parecem ter a beleza da matemática e a força da poesia; o pianista João Grilo é um prodigioso colorista, dono de uma rigorosa mão esquerda e capaz de fantasias que se elevam nas espirais de notas desenhadas com a mão direita; e a dupla Coelho e Brandão é yin e yang, o primeiro um tenor solene, de tom meditativo que nos enche o espírito, o segundo um alto que sabe ser eufórico, que debita frases encorpadas e de perfeita definição – juntos, uma bênção para qualquer par de ouvidos. Concertão.

E depois veio então o espectáculo desenhado do pianista Hugo Raro e do artista plástico Jas. O concerto que resulta de uma parceria entre a Porta-Jazz e o Festival de Jazz de Guimarães foi originalmente apresentado em finais de 2020, mas desta vez contou com o baterista Miguel Sampaio (no lugar de Alex Lázaro que tocou nessa original apresentação de que resultou a gravação posteriormente lançada pela Carimbo), além de Rui Teixeira no clarinete baixo e de Miguel Amaral na guitarra portuguesa. Sobre o álbum, que mereceu atenção crítica aqui, escrevi, centrando-me numa das peças, “Part V”, que a música aí se traduz numa “viagem de complexo entendimento colectivo, exposta em primeiro lugar pela bateria em modo absolutamente livre, e depois numa interligação de piano e clarinete que é sobrevoada pela guitarra, quase remetendo para o possível tom de um filme negro dos anos 40 que pudesse ter sido rodado nas mal iluminadas vielas de Alfama”. E concluía mencionando o que o próprio Hugo Raro escreveu: “’tal como as sombras não existem sem a luz também a vida só se completa aceitando as imperfeições nela e em nós existentes, para que ambas se tornem, tranquilamente, companheiras inevitáveis da consciência’. Este é um álbum pleno dessa música que se revela nos contrastes entre a luz e a sombra, que aceita as imperfeições e se apoia na consciência colectiva que as assume. Forte.”

Igualmente forte foi o concerto de ontem. A mise en scéne com Jas é incrível: ele pinta com luminosos traços brancos sobre vidro suportado por molduras suspensas, figuras híbridas que são meio humanas e meio aves, motivos naturais como densa folhagem, ilustrando com belíssimos resultados as tais sombras em que a música de Raro e companhia se embrenha com requinte. Depois, com uma lanterna, Jas projecta esses desenhos no tecto e paredes do teatro, criando um imersivo e hipnótico ambiente que só adensa a trama que as composições sugerem. E com a guitarra portuguesa de Miguel Amaral a soar a espaços como o seu parente árabe, o oud, e noutros como fonte de metálico contraste com o fundo e sépia tom do clarinete de Rui Teixeira, esta música segue mágica nas voltas que Raro traça com enorme classe e segurança e a que Sampaio adiciona o seu rigoroso toque, carregado de alma. Fim perfeito para um dia que começou longas horas antes.

Coube a Vera Morais, voz, e Hristo Goleminov, saxofone, a primeira apresentação do dia, inaugurando o Bloco 2 no sombrio Palco GA e Sub Palco do Rivoli. Infelizmente, afazeres paralelos não me permitiram estar presente, facto que muito lamento uma vez que sobre a apresentação só escutei elogios. Não falhei nenhum dos restantes concertos: o ensemble de composição variável que celebra a aliança entre a portuense Porta-Jazz e a lisboeta Robalo contou com Leonor Arnaut na voz, João Almeida no trompete (ambos integram os Chão Maior de Yaw Tembe), Eurico Costa e Nuno Trocado, ambos em guitarra eléctrica e electrónicas, e Gonçalo Ribeiro na bateria para uma intensa incursão nas mais abstractas margens da música improvisada e contemporânea.

Seguiram-se, no Bloco 3 que teve lugar no Pequeno Auditório, a apresentação de Ninhos da vocalista Joana Raquel e do pianista Miguel Meirinhos, que se fizeram acompanhar por Demian Cabaud no contrabaixo e João Cardita na bateria, e ainda de D, álbum do Puzzle 3, quebra-cabeças montado por Pedro Neves no piano, João Paulo Rosado no contrabaixo e Miguel Sampaio na bateria.

Sobre o primeiro concerto não há muito a dizer: música escorreita e contida, de recorte elegante, mas a que falta talvez um mais explosivo rasgo para se impor. De cada vez que se sente que as canções poderiam descolar, algo as mantém presas a uma tímida existência que em nada as parece favorecer. A audição do disco poderá alterar essa percepção, mas do concerto decididamente não resultaram abalos.

O contrário sucedeu na fantástica apresentação do Puzzle 3, trio que não esconde o deleite que obtém do facto de poder trocar ideias em palco, com uma música apoiada num musculado groove imposto por Miguel Sampaio, um autêntico furacão, e pelo sinuoso e sempre supreendente contrabaixo de Rosado. E sobre isso um piano livre e capaz de lúdicas danças de tonalidades “bluesy” que no tema final, numa versão bem curiosa de um clássico dos Red Hot Chili Peppers, aqui renomeado como “Under Another Bridge”, ganhou uma mais poética expansividade. Sobre o álbum, alinhei aqui algumas ideias, que o concerto, de resto, confirmou: “Os temas – formalmente não serão exactamente “canções” – nascem de arremedos, esboços de intenção, depressa fragmentados pela atracção do desconhecido: o piano de Neves comanda, naturalmente, mas nunca é ponto de origem de torrentes de notas liricamente encadeadas em fraseados longos, antes fonte de leves pinceladas que sugerem imagens a que os companheiros correspondem sem seguidismo, ousando eles mesmos a ocasional troca de voltas à lógica”. Uma palavra final para o desbragado, mas de enorme bom gosto, humor de Rosado, sinal do claro ânimo que os três músicos sentiram naquele momento e que arrancou efusivas gargalhadas da plateia.

O 12º Festival Porta-Jazz chega hoje ao final com mais seis concertos divididos por três blocos: Residência AMR/Porta-Jazz e WIZ a partir das 16h00, Encomenda a Daniel Sousa e Miguel Ângelo no período intermédio que tem início às 18H15 e Alfred Vogel e António Loureiro a rematarem a noite e o programa com subida ao palco marcada para depois das 21H30.


pub

Últimos da categoria: Reportagem

RBTV

Últimos artigos