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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 13/07/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #59: Susana Santos Silva & Torbjorn Zetterberg / Miguel Ângelo Quarteto / Hugo Raro

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 13/07/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.

Depois de umas merecidas “férias”, a coluna Notas Azuis está de volta, focando-se nos três últimos lançamentos da Carimbo Porta-Jazz.



[Susana Santos Silva & Torbjörn Zetterberg] Tomorrow / Carimbo Porta-Jazz

O que resulta, em primeiro lugar, da audição de Tomorrow, trabalho com que Susana Santos Silva e Torbjörn Zetterberg sucedem a Almost Tomorrow, editado pela Clean Feed em 2013, é o intenso nível de “sintonia” aqui alcançado, com o duo a soar como uma perfeita e definida entidade, una e coesa. Para tanto, há-de contribuir o facto de Silva e Zetterberg manterem uma relação pessoal, além de musical. É que o nível a que a comunicação dos dois ascende neste álbum gravado a 2 de Abril último numa igreja em Estocolmo, onde residem, é absolutamente espantoso.

O futuro que se adivinha no título do álbum (e que se pode igualmente vislumbrar nas designações de peças como “Arriving” ou “A Cry for Light” e “The Next Hours”) é esse que assenta na construção de uma linguagem nova, viva, mas também misteriosa porque desconhecida. Fazendo uso de um vasto conjunto de técnicas que permitem que tanto a trompetista como o contrabaixista retirem o máximo de expressividade dos seus respectivos instrumentos, Susana e Torbjörn exploram uma ideia de música que vai para lá de escolas ou tradições, que soa pontualmente como avançado exercício abstracto de música contemporânea (“Dreamers”) e noutro imediatamente a seguir como delicado estudo em torno de um imaginário motivo folk (“Contemplating The Other”).

Pode dizer-se que há um factor extra nesta gravação, com o próprio espaço em que o duo se apresentou a ter uma contribuição, através da reverberação natural, para a música que nos envolve como um manto de seda. E embora haja uma componente técnica avançada – percebe-se claramente o quanto ambos os artistas investem no estudo dos seus instrumentos –, o que torna a audição de Tomorrow numa autêntica aventura é a sua espantosa dimensão emocional, o arrojo destemido com que ambos recortam o silêncio e o transformam em sombra ou luz, mercê de um conhecimento mútuo que vai muito para além da música. O trompete e o contrabaixo encaixam-se de forma plena e chegam a soar como um mesmo instrumento, tal a sua cumplicidade. 

Na capa, o aclamado autor e pensador John Corbett assina um expressivo poema. Escreve o norte-americano a dada altura: “Of now and then / And then again / And when will then / Or Zen and Zen / Response’s call / call’s response / And recall’s yen”. Uma ladaínha idiomática, fonética e hipnótica, que brinca com a ideia de tempo e que traduz bem o entrelaçar das duas vozes que aqui nos trazem a sua ideia de amanhã. Um triunfo para a dupla, sem a menor sombra de dúvida.



[Miguel Ângelo Quarteto] Dança dos Desastrados / Carimbo Porta-Jazz

É formalmente ambicioso, este novo trabalho do quarteto liderado pelo contrabaixista e compositor Miguel Ângelo. Voltando a ter ao seu lado João Guimarães (sax alto), Joaquim Rodrigues (piano) e Marcos Cavaleiro (bateria) – os mesmos músicos que gravaram Branco, em 2013, e A Vida de X, em 2016 –, Ângelo propõe aqui não apenas uma experiência auditiva, mas também visual: um pequeno jogo interactivo que se faz das mesmas figuras angulares e recortadas que encontramos na belíssima capa da edição física desenhada por Maria Mónica que, muito provavelmente, recolheu inspiração no teatro de sombras chinês. Ou seja, é um outro nível de imersão o que Miguel Ângelo aqui propõe, seguindo nas suas 10 peças uma vaga, mas intrigante, ideia de danças tradicionais, “reais ou imaginárias”.

O álbum foi gravado em Janeiro passado, no estúdio Casa do Miguel e a mistura ficou a cargo do conceituado Nelson Carvalho que nos oferece um trabalho de absoluta transparência acústica, de elegância e rigor, com cada instrumento a surgir tão definido e contrastante como as figuras do artwork.

Obviamente que o grupo exibe um perfeito entendimento colectivo, facto aliás reafirmado nos temas “Capítulo I”, “Capítulo II” e “Capítulo III”, peças mais exploratórias que resultam de improviso colectivo (as restantes têm assinatura do líder) e que ainda assim se apresentam perfeitamente definidas: em “Capítulo II”, por exemplo, Miguel Ângelo abre a porta para um espaço misterioso, sendo seguido por Joaquim Rodrigues, por um subtil Marcos Cavaleiro e por João Guimarães, músicos que nos pintam um intrigante quadro feito de sombras, que quase poderia ser usado num qualquer filme de suspense, tal a sua espessura dramática.

Esse entendimento dos quatro músicos, burilado em estúdio há já quase uma década e exibido ao vivo em várias ocasiões, permite que este seja um álbum vívido, de poéticas fantasias dançantes. No tema que dá título ao álbum todos os instrumentos dançam: a bateria e o contrabaixo em perfeito balanço, que se traduz numa base que é poeticamente aproveitada tanto pelo saxofone como pelo piano para jogos de animada e lúdica exploração. A pedir palco em que além do quarteto possamos usufruir das imagens e do universo gráfico imaginário que Miguel Ângelo e Maria Mónica criaram para acompanhar esta Dança dos Desastrados. A dança é a vida, claro, e nós todos os desastrados a precisarmos de aprender um pouco mais.



[Hugo Raro] Sombras da Imperfeição / Carimbo Porta-Jazz

Neste álbum, o pianista e compositor Hugo Raro faz-se acompanhar por Alex Lázaro na bateria e percussão, Rui Teixeira no clarinete baixo e Miguel Amaral na guitarra portuguesa, um ensemble invulgar gizado para executar uma música reflexiva, assinada maioritariamente por Raro. A gravação, conduzida por Sérgio Valmont, teve lugar em finais de 2020 na “Blackbox” da Plataforma das Artes e da criatividade no âmbito do Guimarães Jazz.

Não é, de todo, a primeira vez que a guitarra portuguesa assoma a esta linguagem ou contexto e num já distante encontro de Carlos Paredes com Charlie Haden, que inclusivamente foi vertido para espectáculo de palco à entrada dos anos 90, pode encontrar-se um dos possíveis inícios para esta relação que tem sido, há que admitir, esporádica. Mas Miguel Amaral tem essa capacidade de invenção livre, de improviso sobre as suas cordas de aço, que podem trazer, de facto, algo de novo, e intrinsecamente português, a esta prática. Ouça-se o que faz em “Part III” para se ter uma ideia clara das possibilidades discursivas deste instrumento neste contexto específico.

“Part V”, o tema que surge estrategicamente (mais ou menos) a meio do alinhamento, é a “pièce de résistance“, um extenso exercício de invenção que se estende para lá dos 10 minutos e em que todos os instrumentos procuram apresentar-se com sons inusitados, em técnicas de execução menos comuns, menos convencionais. E isso rende uma pequena viagem de complexo entendimento colectivo, exposta em primeiro lugar pela bateria em modo absolutamente livre, e depois numa interligação de piano e clarinete que é sobrevoada pela guitarra, quase remetendo para o possível tom de um filme negro dos anos 40 que pudesse ter sido rodado nas mal iluminadas vielas de Alfama.

Propõe o autor que “tal como as sombras não existem sem a luz também a vida só se completa aceitando as imperfeições nela e em nós existentes, para que ambas se tornem, tranquilamente, companheiras inevitáveis da consciência”. Este é um álbum pleno dessa música que se revela nos contrastes entre a luz e a sombra, que aceita as imperfeições e se apoia na consciência colectiva que as assume. Forte.

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