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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 24/04/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #56: Gary Bartz, Adrian Younge, Ali Shaheed Muhammad / Demian Cabaud

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 24/04/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Gary Bartz, Ali Shaheed Muhammad & Adrian Younge] Jazz is Dead 6 / Jazz is Dead

O que a Jazz is Dead propõe “no papel” não parece corresponder exactamente ao que se encontra nos discos: Ali Shaheed Muhammad, histórico membro dos A Tribe Called Quest com créditos de composição e produção em discos de gente como Gil Scott-Heron, Da Bush Babes, D’Angelo, ou Maxwell e que integrou o colectivo The Ummah ao lado de J Dilla,, e Adrian Younge, igualmente excelso produtor, multi-instrumentista e arranjador que tanta energia parece ter devotado ao minucioso estudo do lado mais orquestral da música negra das décadas de 60 e 70, têm ambos lastro musical suficiente para ancorar esta aventura editorial em terrenos mais, vá lá, “progressivos” e até “experimentais” do que os que têm vindo a cruzar em sucessivas edições ao lado de lendas como Doug Carn, Azymuth, Marcos Valle e Roy Ayers (João Donato, mais um lendário nome do Brasil, já tem o 7º volume da série reservado para si). Com ligeiras variações de “tom”, a música apresentada na primeira meia dúzia de lançamentos da JiD parece percorrer os menos agitados e bem límpidos mares do lado mais, hum…, “suave” do jazz, entre a fusão e as toadas mais soulful, criando bases para que cada um dos convidados se encaixe sem dificuldade.

Muhammad e Younge parecem seguir aqui a fórmula de trabalho dos irmãos Larry e Fonce Mizell que em meados dos anos 70 produziram e escreveram uma série de álbuns extraordinários para artistas como Johnny Hammond, Donald Byrd, Roger Glenn, Rance Allen ou, pois claro, Gary Bartz, para quem idealizaram o clássico Music Is My Sanctuary. Os irmãos Mizell reuniam as equipas de músicos de estúdio, escreviam ou selecionavam o reportório, comandavam as sessões em que se registavam as bases, deixando em aberto espaço para os convidados solistas colocarem a sua própria assinatura. Esse método foi especialmente refinado em trabalhos para Donald Byrd, como o monumental Stepping Into Tomorrow(em que Bartz, aliás, também toca), para que Larry e Fonce escreveram praticamente todo o material, incluindo o mega-clássico “Think Twice”, cabendo a Byrd a missão de solar já sobre as músicas totalmente arranjadas. Para muitos, o contrário exacto da “ideia” de jazz.

Neste volume, os dois produtores e multi-instrumentistas contam com os préstimos do baterista Greg Paul assegurando eles mesmos todos os instrumentos: piano acústico e eléctrico, órgão Hammond, Mellotron, sintetizadores, vibrafone, baixo eléctrico, guitarra, flauta, percussão variada e até sinos tubulares. Há ainda um coro em algumas faixas. O que significa que tudo é rigorosamente composto e gravado por camadas usufruindo das possibilidades técnicas dos estúdios multipistas. Talvez isso ajude a explicar o lado mais “calculado” e aparentemente pouco “espontâneo” da música que Muhammad e Younge têm vindo a assinar na JiD. Mas, e este é mesmo um grande MAS, há “vida” abundante nestas águas tranquilas.

Logo no pulsar da abertura com “Spiritual Ideation” e na ligeira dissonância do piano que prepara a entrada de Gary Bartz há uma subtil indicação de que nem tudo está conforme as rigorosas regras do jazz mais smooth que serve para embalar o olhar de quem frequenta certas lojas de design. Há um certo músculo rítmico constante que se explica facilmente com os carregados pergaminhos hip hop de Ali Shaheed Muhammad (escute-se, por exemplo, “Blue Jungles”, uma lição de tensão e libertação por parte de Greg Paul), um subtexto bastante rico por aqui quando o “olhar” dos nossos ouvidos se foca no que acontece abaixo da superfície dominada pela luz do alto de Bartz que sola sempre de forma segura e bastante fluída, mostrando ter fôlego do alto de uns respeitáveis 80 anos (algo que já tinha deixado claro no seu encontro com os britânicos Maisha). E é nesse “funk”, nessa rugosidade rítmica, que se começa a entender que na elegante proposta algo retro da Jazz is Dead pulsa também uma vertigem por uma era em que o funk traduzia a vontade de toda uma comunidade avançar em direcção ao futuro.

Em “The Message”, o único tema em que Gary Bartz troca o alto pelo soprano, o solista parece evocar um pouco no seu fraseado o espírito do período eléctrico de Miles Davis numa longa deriva modal que sobrevoa uma peça feita com regra e esquadro no plano rítmico, mas em que o órgão entra em derrapagem oferecendo um contraponto harmónico interessante para o solo do saxofonista que, muito sinceramente, parece querer tocar as estrelas. E isso é notável.

Disco disponível na Jazz Messengers Lisboa.



[Demian Cabaud] Otro Cielo / Carimbo Porta-Jazz

O mais recente lançamento da Carimbo Porta-Jazz é uma extraordinária lição de elegância conduzida pelo argentino, há muito estabelecido pelo Porto, Demian Cabaud, contrabaixista com amplos recursos, dono de considerável discografia, que assina aqui aquele que é já o seu quarto trabalho para esta etiqueta.

Neste Otro Cielo, Cabaudvolta a ter ao seu lado o baterista Marcos Cavaleiro, o pianista João Grilo e o tenorista José Pedro Coelho (músicos que tinham integrado o ensemble de serviço em Aparición, de 2019, em que tocava também Ricardo Formoso, em trompete e fliscorne). E conta ainda com o homem do leme da Carimbo, João Pedro Brandão, em alto e flauta. Uma equipa experimentada e de óbvio luxo que contribui decisivamente para a tal dose extrema de elegância e bom gosto aqui exposta.

É do alto da tradição bop e pós-bop que se vislumbra o “outro céu” a que o título deste álbum alude. No diálogo dos sopros com que “Fausto” (a mais longa das peças aqui incluídas, com quase 10 minutos) arranca entende-se que esse olhar sobre a história (há até uma discreta vénia melódica a Coltrane) se faz a partir do presente admitindo o colectivo não apenas a memória do jazz na sua origem, mas também todos os “desvios” que o tempo lhe foi impondo, na Europa e mais além, com a prática de uma vivência portuense a ser a “praia” onde todo este som e vibração desemboca.

Estes músicos são todos experientes solistas, mas também entendem o valor do encaixe numa ideia maior. E isso fica patente na curiosa opção de alternar entre leituras de composições de Demian Cabaud (as faixas 1, 3, 5, 7, 9, 11 e 13) e peças que resultam de criação colectiva (as que são numeradas 2, 4, 6, 8, 10 e 12…), numa simetria que parece resultar em gestos de oposição que se reforçam mutuamente. Por exemplo, à singular “Conversas Cruzadas”, breve tema que soa como a tradução de uma pintura de Pollock, toda ela “pingos” de som que caem sobre uma tela, sucede uma delicada interacção de Cabaud com o piano de Grilo, de tonalidade algo clássica sublinhada pelo belíssimo uso do arco pelo líder, mas, logo depois, na igualmente breve “Palestina”, é o fogo da liberdade que se solta dos sopros. Em “Sin Sombra”, a flauta de João Pedro Brandão brilha de forma especialmente intensa, procurando nos encontros harmónicos com Coelho o motivo para o desenrolar da composição, com Cabaud a destacar-se uma vez mais e a exibir um fundo entendimento telepático com Marcos Cavaleiro.

O que parece óbvio nesta fantástica gravação de Nuno Couto a que André Fernandes, chamado a misturar e masterizar o material gravado em dois dias de Outubro passado, deu o brilho necessário, é essa tal elegância que se começou por enaltecer: o colectivo parece tocar há anos, cada um entende o seu lugar, e tudo se conjuga de forma precisa, tanto nas passagens mais compostas como nos momentos de invenção espontânea, com o quinteto a entender afinal que “jazz” é uma coisa viva, vibrante, que exige energia intelectual, claro, mas também emocional, física e até cultural. É um Outro Cielo, o que estes músicos veem dali, mas isso acontece apenas porque a Terra, acreditem, é mesmo redonda… E como é que não caímos todos daqui abaixo, perguntam os terraplanistas? Porque a longa história do jazz nos dá a força gravitacional que nos mantém presos ao chão. Não tanta, no entanto, que não deixe cada músico de cabeça livre e talento voar um bocadinho.

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