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Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 06/10/2021

O jazz em primeiro plano.

Notas Azuis #70: CORETO / Vessel Trio / PUZZLE 3

Ilustração: Carlos Quitério
Publicado a: 06/10/2021

Na coluna Notas Azuis vai abordar-se jazz, música livre, música improvisada de todas as eras e nacionalidades, editada em todos os formatos.



[Coreto] A Tribo / Carimbo Porta-Jazz

O Coreto de João Pedro Brandão apresentou-se no final da primeira jornada da edição mais recente do Festival Porta-Jazz, associação que o próprio saxofonista dirige. Aí, o dilatado colectivo entregou-se à leitura das peças encomendadas aos compositores Catarina Sá Ribeiro, Nuno Trocado, João Grilo e João Mortágua, mas o que se escuta agora neste A Tribo é diferente. Trata-se de música escrita por João Pedro Brandão (saxofone alto, flauta) que é aqui executada por um ensemble em que militam José Pedro Coelho (saxofone tenor), Hugo Ciríaco (saxofone tenor), Rui Teixeira (sax barítono), Ricardo Formoso (trompete e fliscorne), Susana Santos Silva (trompete), Daniel Dias e Andreia Santos (ambos em trombone), AP (aka António Pedro Neves, guitarra), Hugo Raro (piano), José Carlos Barbosa (contrabaixo) e José Marrucho (bateria). Ainda assim, o elogio à “exuberância cromática” exposta nessa ocasião pode aqui replicar-se a propósito de um novo álbum que, de acordo com poema de Rui Teixeira, explora a noção de que “a tribo é profunda e ao mesmo tempo jovialmente simples”. Referem ainda os versos que funcionam como liner notes que “a tribo olha para o céu e assim permanece”. Forma bonita de se sublinhar o entusiasmo com que esta “tribo” aborda o acto comunal de fazer música, por um lado, e o desprendimento contemplativo com que o faz, por outro.

Porque é exactamente disso que se faz este álbum: de vibração coletiva, de entrosamento derivado da partilha de um propósito comum, de capacidade de subjugação a uma ideia maior. A escrita de Brandão tem algo de cinemático, o que podendo ser mera sugestão depois de ter assinado Trama no Navio para parte de um filme clássico de Sergei Eisenstein, acaba por se confirmar com não apenas o pendor dramático/narrativo das suas composições, como até pelos seus títulos – “The Journey”, “Celebration”, “Conflict”… – e até o seu encadeamento em jeito de suite. 

Esta última peça referida, “Conflict”, arranca com nota única repetida no piano, e inquietude expressa na bateria, até que José Pedro Coelho expõe o mistério deste “filme” que poderia ser protagonizado por Humphrey Bogart e ter vários planos rodados em ruas esconsas do Porto, em preto-e-branco pleno de pronunciado grão, como convém. O diálogo (duelo?) que o saxofonista depois assume com Hugo Raro, sempre de uma expressividade extrema no piano, é o culminar do tal conflito que aqui se desenha. Logo depois, a intrigante “Parte V – Faina”, apropriadamente subtitulada “Work Song”, começa com o piano de Hugo Raro em modo marcial, quase evocando a “chain gang” das prisões americanas entregue aos seus trabalhos forçados, com o tenor de Hugo Ciríaco a assumir depois o lamento algo bluesy, de elevada carga dramática e imagética. As vozes que surgem depois ajudam a explicar a “faina” apontada no título, mas a música é tão rica que não se percebe se é nas margens do Douro se nas do Mississippi que esta história se desenrola. E isso é verdadeiramente extraordinário. Com uma “banda sonora” assim, só falta mesmo encontrar imagens à altura.



[Vessel Trio] Responde Tu / Carimbo Porta-Jazz

Viu-se este Vessel Trio do saxofonista Hery Paz, do contrabaixista Javier Moreno e do baterista Marcos Cavaleiro a apresentar Responde Tu na última edição do festival que a Porta-Jazz organiza todos os anos no Porto. Escreveu-se por aqui:

“O saxofonismo de Paz é intenso e visceral, melodicamente inteligente, com ecos naturais de John Coltrane na forma como aborda a construção de frases. Logo desde o arranque do concerto percebeu-se que havia quem quisesse juntar-se ao trio: um estridente, mas curiosamente afinado pavão resolveu juntar a sua voz à música amplificada pela Concha Acústica. (…) A interacção demorou apenas alguns segundos, mas o suficiente para não apenas arrancar aplausos ao público, mas também interessante que bastasse para até ter levado o saxofonista a aguardar um momento pela continuação do contributo da ave, antes de prosseguir com a sua belíssima exposição de um tema, algo cubista nas linhas rectas das suas frases, a que a vigorosa secção rítmica logo respondeu.

Os méritos de Marcos Cavaleiro são por demais conhecidos: é um músico de amplos recursos técnicos e de uma alma sem fim, que tanto se queda pela subtileza como logo de seguida opta pela explosão, partindo o tempo em mil pedaços e organizando-o à velocidade da imaginação. Com Javier Moreno o seu nível de entrosamento é elevado e ficou bem patente num par de momentos em que foi dos seus diálogos que nasceu o pulsar que o sax aproveitou para voar, com colorações mais abstractas ou até mais latinas, soando a solista numa banda sonora para um qualquer clássico noir de Dashiel Hammett (e talvez tenham sido alguns arremedos mais John Lurie que me tenham sugerido essa ideia) ou a mais explosivo soprador de frases mais viscerais. Esse lado mais “escultórico” de cada um dos três músicos, todos igualmente capazes de “martelar” na pedra em busca de formas interiores, ficou também bem explanado na abordagem do contrabaixista ao seu instrumento, que a espaços produziu autênticos “rebentamentos” atonais que logo se estruturavam num groove muito próprio.”

No estúdio, sem pavões ou um público ansioso por aplaudir a primeira apresentação num festival que foi acto de resistência ao deserto pandémico, a banda soa menos expansiva e feérica e mais reflexiva e contida, sublinhando com mais vigor o lado naturalmente abstracto da sua música, um jazz que tendo ligações à história pré-colemaniana, soa igualmente livre e enquadrado com um lado mais exploratório pós-coltraniano. 

No título do álbum lê-se, obviamente, um sinal da funda cumplicidade que liga os três músicos, mas também uma marca da espontaneidade que atravessa cada uma das seis peças aqui apresentadas, um voluntarismo benigno que gera passagens de elevada inventividade, como por exemplo em “Mezcal”, tema que nasce na “selva” tímbrica dos artefactos percussivos de Marcos Cavaleiro e depressa convida Hery Paz a perder-se entre as “lianas”, como se buscasse a luz acima da copa das árvores, com o saxofone em modo inquisitivo a impor imagens dignas das páginas de Joseph Conrad na nossa imaginação.



[Puzzle 3] D / Carimbo Porta-Jazz

Pedro Neves no piano, João Paulo Rosado no contrabaixo e Miguel Sampaio na bateria. Embora nenhum deles tenha “Silva” ou “Pereira” por apelido ou se vislumbrem “Josés” ou “Antónios” nos nomes próprios, dificilmente se encontraria um trio mais “português” do que este. Essa “identidade” ressoa igualmente na música leve e descomplexada, aberta ao nosso típico ”desenrasque” nos desafios com que cada um dos músicos vai confrontado os companheiros, forçando à exploração improvisacional e a uma desenvoltura formal que não é muito “expositiva” no que a motivos vincadamente melódicos diga respeito.

Os temas – formalmente não serão exactamente “canções” – nascem de arremedos, esboços de intenção, depressa fragmentados pela atracção do desconhecido: o piano de Neves comanda, naturalmente, mas nunca é ponto de origem de torrentes de notas liricamente encadeadas em fraseados longos, antes fonte de leves pinceladas que sugerem imagens a que os companheiros correspondem sem seguidismo, ousando eles mesmos a ocasional troca de voltas à lógica. Essa ideia passa clara em “Girassol”, por exemplo, com o piano de Neves a soar levemente “bluesy”, mas a nunca ceder à eventual tentação de encaixe num discurso idiomático demasiadamente vincado.

A secção rítmica, essa consegue ser sinuosa sem nunca se atropelar a si mesma ou o piano, antes esticando com alguma elegância as telas em que que Pedro Neves vai pintando com traços semi-abstractos, semi-figurativos, mas sempre de enorme elegância. Bom.

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