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Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 24/07/2021

Ecos naturais.

Festival Porta-Jazz’21 – Dia 1: um pavão, um trio e um coreto chegam para encher um jardim

Fotografia: Adriana Melo (Mínima/Porta-Jazz)
Publicado a: 24/07/2021

O incansável trabalho da Associação Porta-Jazz, que de diferentes formas se tem revelado uma verdadeira alavanca para a criação e fruição do jazz no Porto e bem mais além, tem anualmente um momento de celebração com a realização do Festival Porta-Jazz. Ontem arrancou a 11ª edição, facto que, nas actuais circunstâncias não é apenas digno de relevo, mas igualmente motivo para se renovar a esperança no futuro.

No programa oficial de 2021 começa-se por afirmar que o lema desta edição é “Da janela saem pássaros”. Saem, de facto, e alguns deles terão certamente aterrado nos jardins que ladeiam o Palácio de Cristal onde acontecem os concertos que até domingo encherão de jazz esta cidade Invicta.

Embora no dia de hoje e no de amanhã os concertos se multipliquem por três etapas (manhã, tarde e noite), ontem o arranque concentrou-se num único bloco com duas apresentações que decorreram a partir das 20h30 na Concha Acústica do jardim, espaço de absoluta e segura perfeição para o momento presente. Para aceder à plateia, e seguindo todas as normas em vigor, é preciso exibir o certificado de vacinação ou recuperação ou de teste negativo, mas uma vez cumprido o processo espera-nos uma área ampla que comporta um par de centenas de cadeiras, lugares que ontem se apresentavam praticamente preenchidos.

O primeiro concerto foi assinado pelo Vessel Trio. Hery Paz no saxofone tenor, Javier Moreno no contrabaixo e Marcos Cavaleiro na bateria. Os dois primeiros são activas peças do puzzle-jazz nova-iorquino, sendo que o saxofonista é cubano e o contrabaixista espanhol. O primeiro encontro do trio, esclarece-nos o programa, teve lugar algures na América Central e a apresentação daquele que é o trabalho de estreia, Responde Tu, acontece agora no Porto. Talvez isso ajude, de facto, a explicar a designação escolhida pelo trio: Vessel pode traduzir-se por embarcação, algo que carrega gente ou mercadoria – ou ideias e sons – e que navega, levando tudo isso de um lugar para outro lugar.

O saxofonismo de Paz é intenso e visceral, melodicamente inteligente, com ecos naturais de John Coltrane na forma como aborda a construção de frases. Logo desde o arranque do concerto percebeu-se que havia quem quisesse juntar-se ao trio: um estridente, mas curiosamente afinado pavão resolveu juntar a sua voz à música amplificada pela Concha Acústica. Ao início soou a mera e nitidamente entusiasmada reação à música produzida pelo Vessel Trio, mas houve um momento especial, quando Hery, em modo solo, começou a sua exposição de um tema e o pavão entendeu ser esse o perfeito momento para um “dueto”. Talvez o bicho tenha “pensado” que o título do trabalho ali apresentado lhe fosse dirigido, decidindo responder repetindo o “grito” do sax. A interacção demorou apenas alguns segundos, mas o suficiente para não apenas arrancar aplausos ao público, mas também interessante que bastasse para até ter levado o saxofonista a aguardar um momento pela continuação do contributo da ave, antes de prosseguir com a sua belíssima exposição de um tema, algo cubista nas linhas rectas das suas frases, a que a vigorosa secção rítmica logo respondeu.

Os méritos de Marcos Cavaleiro são por demais conhecidos: é um músico de amplos recursos técnicos e de uma alma sem fim, que tanto se queda pela subtileza como logo de seguida opta pela explosão, partindo o tempo em mil pedaços e organizando-o à velocidade da imaginação. Com Javier Moreno o seu nível de entrosamento é elevado e ficou bem patente num par de momentos em que foi dos seus diálogos que nasceu o pulsar que o sax aproveitou para voar, com colorações mais abstractas ou até mais latinas, soando a solista numa banda sonora para um qualquer clássico noir de Dashiel Hammett (e talvez tenham sido alguns arremedos mais John Lurie que me tenham sugerido essa ideia) ou a mais explosivo soprador de frases mais viscerais. Esse lado mais “escultórico” de cada um dos três músicos, todos igualmente capazes de “martelar” na pedra em busca de formas interiores, ficou também bem explanado na abordagem do contrabaixista ao seu instrumento, que a espaços produziu autênticos “rebentamentos” atonais que logo se estruturavam num groove muito próprio.

Os sentidos aplausos finais foram a resposta perfeita à viagem conduzida pelo Vessel Trio. Agora só falta ouvir Responde Tu com o máximo de atenção.

Após um breve intervalo para transição de palco, o Coreto assumiu as suas posições para a última ceia do primeiro dia, qual mural renascentista sobre tão bonito fundo: o líder João Pedro Brandão (sax alto e flauta) tinha ao seu lado José Pedro Coelho (saxes tenor e soprano), Hugo Ciríaco (sax tenor), Rui Teixeira (sax barítono e clarinete baixo), Ricardo Formoso (trompete e fliscorne), Susana Santos Silva (trompete), Daniel Dias e Andreia Santos (ambos em trombone), AP (aka António Pedro Neves, guitarra), Hugo Raro (piano), José Carlos Barbosa (contrabaixo), José Marrucho (bateria) e ainda para uma das composições Rita Maria (voz).

O Coreto assume-se, tal como sublinhado no programa, como um “verdadeiro laboratório de composição e experimentação” e no incrível espectáculo de ontem apresentou peças encomendadas especialmente para a ocasião a Catarina Sá Ribeiro, Nuno Trocado, João Grilo e João Mortágua, “quatro músicos formados no Porto”, explica-nos o programa, “que, para além das suas importantes vozes criativas e representativas da diversidade do jazz do Porto, se movem em diferentes áreas que, cobrindo disciplinas como a música improvisada, a composição contemporânea ou a sua interacção com outras expressões artísticas, são alvo de abordagens muito distintas”.

Com esses quatro estímulos, o Coreto exibiu-se com toda a sua exuberante profundidade cromática levando-nos a acreditar, em certos momentos, que consegue até reproduzir o som do arco-íris, tamanha a amplitude de cores que consegue expressar.

A primeira composição, de Sá Ribeiro, parece ter nascido da noção de silêncio “cageano”, com os sons do próprio jardim – os pássaros e insectos, a água corrente e a brisa nas folhas – a dialogarem com o piano de Raro num momento de sublime beleza.

Já a composição de Trocado poderia perfeitamente ser central na banda sonora de uma nova versão da Pantera Cor-de-Rosa que pudesse ser assinada por Quentin Tarantino. E foi o barítono de Rui Teixeira que me vendeu essa ideia, pulsante e profundo, a ditar o pulso para a deriva colectiva que teve vários momentos entusiasmantes, incluindo um solo de Susana Santos Silva num registo mais swingado que não se lhe tem escutado nos trabalhos em nome próprio nos tempos mais recentes.

O compositor João Grilo foi chamado ao palco para disparar, a partir do seu laptop, alguns motivos sonoros que enquadraram a sua peça, mais próxima da música contemporânea e exploratória, iniciando-se com o som processado de uma velha gravação orquestral e terminando uns bons minutos mais tarde com o que soava à captação do mecanismo de um relógio, primeiro, ou de uma calculadora antiga, logo depois, levando o Coreto a soar como uma filarmónica que se atrevesse a tocar Philip Glass. Pelo meio, a exploração do ar que existe nos sopros, em busca do vento e da brisa, da chuva, da água que cai na cascata. Com assobios e tudo. Ar solto sem máscara a soar a liberdade.

E finalmente o colectivo atirou-se a “Careto”, composição soberba de João Mortágua que começou com uma exposição colectiva em modo fanfarra que depois desaguou num Groove herdado dos gaiteiros tradicionais, com Raro a ditar a cadência a partir das figuras circulares do seu piano. Solos de trombone logo depois e uníssonos de contrabaixo, guitarra e sax barítono recortados por rebentamentos de foguete que eram, afinal de contas, acertos firmes na tarola. O poder da música na imaginação é, acredite-se, infinito e foi aqui de forma muito veemente exposto pela composição de João Mortágua.

Uma palavra final para a qualidade sonora: a exuberância cromática e a sofisticação harmónica que o Coreto conjura merece a justiça de um som claro e definido, por vezes algo difícil de se conseguir neste tipo de condições ao ar livre. Mas o contexto da Concha Acústica, por um lado, e o rigor de quem assinou a mistura, por outro, asseguraram a qualidade máxima nesse campo, decisivo certamente para se poder fruir da melhor forma de cada uma das peças.

E foi tudo bonito. Até o clamor dos pássaros que saíram de uma qualquer janela – ou porta – e rumaram aos jardins do Palácio de Cristal.

E hoje, há mais: Filipe Teixeira Trio + Vazio e o Octaedro (11h00), Ensemble Robalo/Porta-Jazz + Nuno Campos (17h00) e Miguel Rodrigues + Encomenda a Hristo Goleminov (21h00).

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