É um dos discos notáveis do universo do rap português editados este ano. Hubris, o terceiro álbum de E.se em quatro anos, leva-o a explorar as suas vulnerabilidades e fragilidades num trabalho mais escuro do que o anterior. É também o seu projecto musicalmente mais maduro, para o qual se rodeou de gente como xtinto, L-ALI, Minus & MrDolly, Ned Flanger, Mei Rose, Lunn, Matheus Paraizo ou Beiro.
Ao contrário do que estava previsto, E.se acabou por não apresentar o disco ao vivo em Lisboa e no Porto, algo que pretende colmatar ainda este ano. O Rimas e Batidas colocou algumas perguntas ao artista sobre o processo de construção do álbum e a sua visão artística.
Hubris é um disco mais escuro do que Mangrove. Representa uma fase menos luminosa da tua vida? Ainda assim, foi fácil expores as tuas fragilidades e vulnerabilidades e traduzi-las em música?
É uma daquelas questões de “o que veio primeiro: chicken or the egg?” Eu, por um lado, queria explorar um álbum com uma estética mais electrónica, com leads melódicas blue e ritmos de percussão jazzísticos. O Hubris, para mim, tinha de ter essa faceta exploratória, de quando ouvisses soubesses que era algo diferente do que estava a surgir no panorama musical. Um mergulho arrojado numa paisagem sonora que tanto tem de vibrante como de ominosa. Por outro lado, talvez procurasse essa estética porque o que vivia era mais escuro, com novos medos, cansaço e a lembrança de que a vida por vezes corre em círculos e quando pensamos estar livres das nossas fragilidades elas voltam para nos lembrar que poderemos nunca estar isentos das nossas inseguranças, mas que neste caso me compete reconhecê-las e aceitá-las com uma maturidade acrescida. Do estilo: “Já estive num local semelhante e foi isso que me deu o combustível para pegar em todos os “e ses” e usá-los como a minha identidade — E.se. Também acho que, num género musical em que por vezes predomina o flex e a ostentação de se estar em cima, é refrescante abordar o processo de se estar em baixo, sem o romantismo do come up, e revelar as minhas fragilidades e vulnerabilidades. Pode facilitar a desconstrução dos que se encontram do outro lado em situação semelhante e isso é dos aspectos que mais me motivam.
Para ti, este processo de autoconhecimento através da música acaba por ser terapêutico?
Sem dúvida, a música tem um efeito analgésico para as minhas dores de crescimento. Sempre fui criativo e, na vida adulta, a criação musical tem sido um espaço verde para poder submergir o cinzento do meu dia-a-dia. Quando componho não só consigo dar forma aos processos que ultrapasso como consigo abstrair-me na totalidade dos pensamentos negativos. O meu “estúdio” acaba por ser para mim um local sagrado, church-like em que me sinto abrigado.
Há uns meses descreveste-nos a tua obsessão como podendo ser produtiva e positiva: sentes que foi o teu traço de personalidade que te levou a este resultado criativo, que te permitiu esta exploração estética?
O conceito do termo Hubris tem também um pouco de exagero à mistura, e achei que seria mais uma camada no nome do disco e que era honesta em relação ao meu processo individual criativo, que vive bastante de ser obsessivo. Muitas das minhas conquistas individuais advêm dessa capacidade de idealizar algo e não abrandar até o conseguir. Fazer três discos em quatro anos e ao mesmo tempo a trabalhar para lá de 40 horas semanais só foi possível por ser um tipo extremamente obsessivo e por a música me resgatar serotonina em overtime.
Houve coisas em particular que te tenham inspirado para quereres expandir os limites sonoros do teu rap e abraçares estéticas pop, jazz, R&B? Sempre tiveste essa ambição, de algum modo?
Desde o meu primeiro projecto que me lancei nessas águas do rap alternativo, que bebem muito da pop e do R&B, e é difícil perceber onde terminam as margens. Ao longo do tempo fui aprofundando e refinando a minha identidade, ao mesmo tempo que a minha música foi ficando mais abrangente. Assumi mais as melodias como algo que tenho a trazer e deixei o meu rap respirar, para que as rimas também tenham mais espaço. Tenho músicas neste disco, como a “ângulo morto”, que é mais indie pop do que propriamente rap, como tenho a “Desmagnetismo” com o Minus, que tem bastante de jazz e R&B, embora seja patente o rap em ambos os nossos versos. Acho que essa abrangência reflete as minhas influências em artistas como o Mac Miller, James Blake, Sampha, Yussef Dayes, BADBADNOTGOOD, entre outros.
O disco também marca a tua estreia enquanto produtor. Já era algo que desejavas há muito?
Eu já ia fazendo algumas coisas de pós-produção nos discos anteriores, mas eram mesmo toques mínimos como alterar o padrão de drums ou adicionar uma linha de baixo ou umas notas de piano. O meu envolvimento enquanto produtor no Hubris não foi de todo planeado, acabou por acontecer porque compus a intro e os interlúdios e gostei tanto deles que achei que tinham de fazer parte do disco. Também co-produzi a faixa “Outono” com o Minus & MrDolly, o que foi bastante porreiro da parte dele por me ter permitido trabalhar numa faixa inicialmente dele e devolver-lhe um esqueleto bastante modificado que ele depois refinou com o seu toque.
Na lista de créditos encontramos nomes como xtinto, L-ALI, Minus & MrDolly, Ned Flanger, Mei Rose, Lunn, Matheus Paraízo, Beiro… Como acabaste a trabalhar com todas estas pessoas? Foste sentindo o que cada música pedia? Alguns deles já eram pessoas com quem querias colaborar há muito?
Estou muito orgulhoso do Hubris e grande parte deve-se a ter reunido um plantel de artistas e produtores que me inspiram e com os quais pretendia trabalhar já há algum tempo. A parte boa de seres artista independente é que trazes para um disco exclusivamente quem queres e imaginas a navegar na mesma praia sonora que tu. A primeira etapa na concepção do disco foi a definição da estética sonora e a escolha dos produtores: Minus & MrDolly, Lunn e Ned Flanger. Este trio foi escolhido intencionalmente para que houvesse essa coesão de rap alternativo, com muito jazz à mistura e com uma sensibilidade próxima à minha nas leads melódicas. Quanto às participações vocais, eu fui pensando meio faixa-a-faixa e no que o projecto pedia. Por exemplo, para a “Vidro”, queria muito que o xtinto entrasse, achei que era a praia dele e sabia que encaixaria na perfeição na estética arrojada do disco. A escolha do L-ALI para a “Inércia” — um tema mais despido e vulnerável produzido pelo Minus & MrDolly — também foi intencional, quando o mais expectável seria, se calhar, convidá-lo para um tema do Lunn, tendo eles saído do EP Balanço. Por último, mencionar e agradecer à Mei Rose — acredito que, no futuro, vamos todos ouvir falar muito dela —, que se entregou generosamente em duas faixas do projecto, a “Vidro” e a “libertação” (cujo título é autoexplicativo se se ouvir a música e perceber o efeito que a voz dela instantaneamente tem).
Tinhas um par de datas para apresentar o álbum ao vivo no Porto e em Lisboa que entretanto cancelaste porque precisavas de “pensar em ti e abrandar”, conforme anunciaste num post. O que te levou a abdicar deste momento tão importante que é a apresentação de um novo trabalho diante do teu público? E tens ideia de quando é que o Hubris poderá voltar a ser equacionado para um palco?
No início desta entrevista falávamos do lado bom do meu traço obsessivo ou da forma como o tento canalizar positivamente. Infelizmente, com ele também vem uma grande exigência comigo mesmo e a necessidade de me forçar para lá dessas semanas que muitas vezes excedem as 60 horas de trabalho, com noites e turnos de 24 horas à mistura. Semanas essas que já me vinham a fazer mossa há uns bons pares de meses, mas foi só quando terminei o disco e o lancei que me apercebi de que não estava claramente no meu melhor e precisava de abrandar. Foi uma decisão bastante difícil porque, como referi, sou bastante exigente, tenho dificuldade em falhar nas minhas metas, o disco estava a acabar de sair e era muito importante esse passo de chegar às pessoas com aquele que penso ser o meu trabalho mais sério até à data. Além disso, seriam os meus primeiros concertos com a Biruta, que tinha recentemente apostado em mim e só lhes posso agradecer, porque foram extremamente compreensivos, deram-me tempo para me pôr em primeiro lugar e isso será algo que eu nunca esquecerei. Dito isso, gostava de apresentar o disco ainda este ano, pelo menos em Lisboa e no Porto, e trazer como planeado os convidados do disco para celebrar ao vivo este Hubris.