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Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/08/2023

Som a dialogar com espaço.

CORIN sobre Lux Aeterna: “Quis que o disco tivesse uma sensação celestial”

Fotografia: Direitos Reservados
Publicado a: 01/08/2023

Depois de se insinuar por via de de um long-play e dois EPs, bem exploratórios e singulares à sua maneira, CORIN lançou o seu segundo registo de longa duração, uma viagem imbuida em ficção científica, rica em texturas e espacial de uma forma que extravaza os limites da música de dança e a eletrónica mais lata. A artista australiana, de ascendência filipina, conversou com o Rimas e Batidas sobre o seu mais recente Lux Aeterna, editado em Julho pela UIQ, e sobre o percurso que fez até lá chegar, cruzando design de som, música de dança, ambiente, instalação e performance.

Parece cada vez mais certo que as novas e mais vibrantes expressões musicais têm epicentro fora da Europa, ou até mesmo do dito mundo ocidental. As latitudes da inovação parecem não só descentralizadas para os continentes do futuro, mas acontecem cada vez mais fora dos contextos mais institucionais e académicos, também. Nunca é demais reconhecer, no entanto, quando o que parece cada vez mais uma regra se firma em mais um pilar argumentativo. Desta feita, será Corin Ileto, artista multidisciplinar que move som para criar e alimentar a sua expressão.

CORIN, nome artístico que emprestou a si própria, entrou nos radares dos mais atentos com o seu primeiro álbum, Manifest, na Bedouin Records, e para alguns mais distraídos (como este que vos escreve) com Enantiodromia, EP lançado com o selo da UIQ, editora de Lee Gamble. Escrito para ser “um disco de clubbing direto”, este último trata-se de um compêndio de peças que incidiu sobre a ideia de impermanência e movimento, algo que se incorpora especialmente bem num contexto de pista de dança; também se tratava de um tento nunca antes engendrado pela australiana, que “nunca havia feito algo sólido, para [si] pelo menos, em termos de música de dança eletrónica.”

Antes de avançarmos, é importante pesar estas palavras: um disco direto para a pista de dança, nos termos de Ileto, não se resume a síncope, nem tampouco a ritmo. Enantiodromia, enquanto exercício exploratório da ideia de ter como única constante a mudança, desdobra-se numa série de peças mutantes, organismos vivos que se transformam. Sem nunca termos observado este fenómeno na pista, não sabemos como se traduz em corpos; em termos puramente sónicos, havia um mote que a moveu no seus ímpetos criativos: “interessa-me criar alterações estruturais dentro das canções e eu gostei da ideia de criar mudanças mais ousadas dentro de uma faixa, principalmente nas suas texturas.”

Neste registo, uma música não se queda por ser só uma música, mas sim um percurso sensorial completo, onde elementos surgem e desaparecem criando resultados novos, e moldando-se a novas situações. Ouça-se “Ex Nilalang”, por exemplo: tem poucos elementos constantes, mas os que permanecem não se quedam na repitção — o subgrave muda ligeiramente de frequência, o elemento percussivo mais metálico mostra-se mais rugoso em situações de acalmia e menos abrasivo quando a informação surge mais saturada. “Hidden in Plain Sight” mantém um sample rápido e agudo ao longo de toda a música, que se adapta a várias situações e reverbera de acordo com o ambiente criado. O que não muda é, na verdade, ambiental e circunstancial: sons secos e baixos cheios a assegurar que os membros têm um guia de movimento na pista de dança, e uma série de insinuações ambientais que os diluem em possíveis coreografias.

No mesmo ano de 2021 em que lançou Enantiodromia, e seguindo numa direção quase diametralmente oposta, CORIN lança Araw (que na língua filipina Tagalog significa “sol”) pela editora Heavy Machinery Records. Este EP consiste numa série de peças ambientais, altamente carregadas visualmente, e que foram escritas durante uma série de confinamentos pandémicos. “Quis criar música mais meditativa e que eu gostasse de ouvir em casa. Queria criar algo que, para mim, transmitisse sensações de calor e luz. Mesmo nas peças mais negras, quis criar uma jornada que caminhasse nesse sentido, de luz.”

O tento não foi vão e, apesar da natureza mais ambiental do registo, os sons usados não são, de facto, frios, ainda que algumas melodias menores e dissonantes, com apontamentos de piano, se manifestem ao longo das músicas. “Solis”, justamente epítetado, tem um crescendo espacial, em que as várias camadas crescem e se multiplicam até ocuparem todo o espaço disponível entre os ouvidos com sons abrasivos. A tristeza, presente melodicamente, não é uma característica exclusiva desta, ou de nenhuma das outras faixas, que se sentem, conforme Ileto de resto nos habituou, integralmente nos sentidos.



Luz e movimento

Estes caminhos distintos na música de CORIN acabaram por se revelar confluentes em Lux Aeterna. O seu mais recente álbum vive da possibilidade de “criar uma narrativa de fio a pavio”, conta-nos, “um crescendo em termos de disposição”, ao contrário da abordagem por que optou nos EPs, nos quais “[se] queria focar em géneros de música particulares.” Isto também se traduz numa colisão dos “mundos dos quais me vejo fazer parte”, tanto enquanto produtora de música, como designer de som para teatros, com foco em artes performativas e dança. Esta decisão foi em muito formada pelo seu fascínio por bandas-sonoras de filmes de ficção científica, que sempre sentiu que contribuíam para a “criação de mundos visuais”, tanto por “refletirem os motivos visuais [dos filmes], ou simplesmente contradizê-los.” Por esta razão, optou por “ordenar as músicas da forma que [acha] que apareceriam durante um filme, na maneira como fluem entre si.”

Paralelamente, foram condições técnicas que lhe permitiram explorar a maneira como as peças de Lux Aeterna se transformam em si e alimentam a narrativa geral de todo o disco: a ideia de que o som é, em si mesmo, uma entidade ciente, capaz de se adaptar e de se transformar com autonomia. O álbum foi composto entre 2020 e 2022, altura em que também se encontrava a trabalhar uma peça para uma performance de dança que seria interpretada por Angela Goh, intitulada Sky Blue Mythic — esta mesma peça trabalhava a ideia de dança como uma prática autónoma, quase auto-generativa. Tanto este trabalho de desenho de som, assim como o processo de escrita do seu novo longa-duração aconteceram num estúdio que tinha um sistema de som quadrofónico, com “colunas no tecto e colunas no chão”, e através do uso meticuloso de sintetizadores granulares.

“Na altura, eu estava a brincar com as possibilidades de som surround, e com a sensação de sons a descer sobre o chão e a subir de volta para o tecto. Esta espacialização acabou por definir o mood geral do disco. Ainda que as músicas estejam em stereo, acho que compor algumas coisas em surround ajudou-me a encontrar efeitos mais espaciais, a acrescentar a sensação de gravidade ao som,” conta ao Rimas e Batidas. Isto permitiu a CORIN desenvolver, ao longo do álbum, esta sensação de som a movimentar-se pelo espaço e criar a ilusão da sua autonomia. Ou, conforme explica tão bem, “é como se o som entrasse e saísse da sala, mas apenas por sua própria vontade.”

“sunta”, o primeiro single a ser revelado, parece uma interpretação do efeito de Doppler, em que frequências médias e médias-graves surgem de passagem, alterando-se a cada movimento e sem nunca se quedar numa repetição curta; os padrões são longos o suficiente para alterarem a maneira como as batidas, de kicks bem graves e molhados e elementos rítmicos mais altos, se relacionam com as várias vozes que vão surgindo ao longo da peça. Estas mesmas sensações de movimento independente de ritmo surgem em “extasis”, onde a cadência dos elementos cria uma sensação visual de se atravessar elementos sonoros (ou de sermos atravessados por eles), quase semelhante à sensação de entrar um túnel de carro e vermos as luzes a passar por nós; algo que acontece até que os elementos percussivos começam a ocupar o espaço e a desviar para as bordas do campo auditivo o que imaginamos ver, até que os sintetizadores mais melódicos invertam as posições de novo e se posicionem no centro.

Toda esta sucessão de movimentos é feita com um cuidado extremo de não ocupar todo o expectro de audição disponível, criando, de facto, uma palete sonora espaçada, com camadas cuidadosamente colocadas em paralelo, e evitando sobreposições. “Neste disco quis propositadamente seguir uma direção mais minimalista, no uso das camadas e na maneira como as combinei,” explica-nos. “Nos lançamentos anteriores, eu estava mais interessada em efeitos de camadas, e em fazer as faixas soar bem preenchidas. Em Lux Aeterna, a minha intenção era ter tanto partes bem preenchidas, mas também partes em que a faixa se esvazia, de maneira a que se conseguisse ver esse contraste dinâmico.”

O resultado ouve-se e sente-se da maneira idealizada por Ileto: “quis que o disco tivesse esta sensação celestial, em que quase se sinta que as camadas têm espaço entre si.” A reta final da narrativa criada por CORIN encapsula imensamente bem esta ideia, não só pelo uso clínico de elementos corais nas duas últimas faixas, mas também pela forma como, na faixa-título, os elementos se mostram parcos, quase irreconciliavelmente dispersos, deixando a sensação de espaço assentar por via de reverberação; algo semelhante acontece por via da quantidade de camadas de som que se abate sobre o ouvinte na derradeira “trānsīre”, que cresce até se tornar soberba e tensa até cessar a percussão e os sons abandonarem o palco de forma faseada, esvaziando a faixa.



Como diversas heranças moldam o futuro

Durante a conversa com o Rimas e Batidas, Corin Ileto não deixou de notar que a música, apesar da sua formação clássica em piano, é apenas uma das facetas com que trabalha no desenvolvimento da sua expressão. “Apercebi-me há pouco de que colaborei com mais não-músicos do que músicos. Eu acho que isso é interessante para mim, porque eu gosto mesmo de observar os seus processos, como pensam e como constroem.” A sua maneira de pensar som torna-se naturalmente holística por força da experiência, em que pensa “música de uma forma multisensorial.” “Quando componho para teatro pergunto-me sobre qual será a experiência da audiência. Como é que sentem a música? De que direção vem o som? É por isso que gosto de compor em surround.” É, também, por isso que admite que trabalhar com pessoas fora da música formou a sua abordagem a compor e a pensá-la; é a razão que a leva a procurar mais este tipo de projetos, também.

Naturalmente, isto traduz-se para a sua abordagem ao contexto de palco, de levar a sua música do estúdio para o ao vivo. Para Lux Aeterna, CORIN desenvolveu uma performance audiovisual, com contributos visuais do colaborador de longa data Justin Shoulder. “Os visuais foram desenvolvidos de forma a que aconteçam mais ou menos em sincronidade com o set. Foram temporizados de maneira a que cresçam com a música.”

Esta abordagem alimenta a ideia de que “uma performance é uma entidade completamente diferente do álbum”: “Eu sinto que quando crio algo ao vivo, o material gravado torna-se noutra cosisa. Eu gosto de improvisar enquanto toco, tanto para dar mais dinamismo à música, mas também para dar algo novo à audiência. Apesar de haver sempre muito material gravado, há sempre partes totalmente improvisadas.” E aqui dá-se um reencontro com a sua primeira expressão, o piano. Quando começou, tudo o que tocava em palco vinha de um teclado — e nada se alterou entretanto, apesar de o ter ponderado. “Decidi mantê-lo como parte da minha performance, porque me parece verdadeiro na maneira como toco e para a minha prática.”

No futuro, além de uma tour para apresentar Lux Aeterna (que se espera que passe por Portugal), há ainda a vonta de explorar melhor a sua ancestralidade filipina, algo com que pôde brincar no passado a convite da plataforma colaborativa para a criação de expressões do sudeste asiático Nusasonic. “Lancei uma música fruto de uma residência que fiz chamada “Utom Summoning em que usei um sistema de afinação das Filipinas. Foi a primeira vez que fiz algo em que senti estar a combinar tudo o que sei, desde o meu interesse por produzir música eletróncia, ao uso de sintetizadores, e ao recorrer à minha herança filipina. E toquei e gravei tudo ao vivo.” Ainda mais alienígena do que tudo o que CORIN tenha feito até agora, “Utom Summoning” é uma peça assombrosa e de provocar uma desconfortável e insaciável curiosidade pelo que o futuro da produtora poderá reservar, dada a aparente dissonância que uma afinação alheia aos ouvidos colonizados parece provocar.

“Isto é algo que vou continuar a explorar, sem dúvida. Estou a planear algumas visitas às Filipinas para fazer a minha própria pesquisa, que será focada na música e dança da região em que a minha mãe nasceu, no lago volcânico Taal. Espero conseguir explorar isso em lançamento futuros.”

A nossa conversa acabou por terminar num tópico que cruzava a sua experiência em dois vetores: não ser um homem num contexto super-masculinizado, como é o da música eletrónica; e o facto de  ser produtora autodidata. Estas experiências tornaram-se perpendiculares no acesso a conhecimento e oportunidades, tanto materiais como sociais, algo que acabaria por endereçar por força da sua rede. Foi, inclusive, o que levou Ileto a criar workshops para pessoas que partissem com desvantagens semelhantes.

“Fiz alguns workshops para pessoas de cor e queer na Austrália. Transmitir o conhecimento é muito importante para mim, assim como de criar um espaço em que as pessoas possam simplesmente fazer perguntas e sentirem-se confortáveis para tal. A música eletrónica pode ser muito… masculina.” Foca-se não só em criar espaços seguros, mas enderaçar também um problema geral do acesso a material de produção, que cria a falsa ideia de desigualdade de oportunidades a quem se procurar expressar no meio. “Lembro-me de ter tido algumas conversas com um tipo a dizer-me que é engraçado que eu use software e de eu pensar que, bem, nem toda a gente consegue gastar 12 000 dolares em hardware e sintetizadores analógicos. Parece-me ótimo se conseguires, mas nem todos podemos fazê-lo. Por isso, acho essencial dar ferramentas acessíveis às pessoas com que trabalho. Eu mesma uso software. Já gravei com hardware, mas isso acontece quando estou num estúdio equipado.”

CORIN é sobre empoderar som ao extremo da autonomia (ou sobre criar a ilusão de), e Corin Ileto continua esse trabalho com pessoas, seja pelas suas colaborações com outras artes, seja ao partilhar o seu conhecimento com futuros talentos. Não está só circunstancialmente ligada com o presente da música eletrónica e a forma como esta se inova fora do hemisfério norte, parece também estar visceralmente ligada ao futuro que vamos ouvir.


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