LP / CD /Digital

Beyoncé

COWBOY CARTER

Parkwood Entertainment / 2024

Texto de Margarida Valença

Publicado a: 06/05/2024

pub

O ano era 2016, e Beyoncé atuava com as Dixie Chicks no 50º Country Music Association Awards. “Daddy Lessons”, a música cantada, fazia parte do seu mais recente álbum Lemonade, e a canção teria sido o seu primeiro pedaço de reportório com os pés na música country. Apesar de uma performance magnífica, o backlash não foi pouco: desde pop stars do country a abandonarem a sala, comentários racistas no edifício, redes sociais, e website dos CMAs. Não fossem também as Dixie Chicks conhecidas por uma controvérsia que lhes abalou a carreira, quando em 2003 criticaram George W. Bush relativamente à Guerra do Iraque, não seriam surpresa as hostilidades presentes neste meio associadas a um conservadorismo e uma branquitude reinante. O espaço para a legitimidade de Beyoncé cantar música country abriu-se. O resultado deste episódio podemos ouvir hoje nos nossos headphones. COWBOY CARTER, nas palavras da própria Beyoncé: “Nasceu de uma experiência que tive há anos em que não me senti bem-vinda… e foi bastante claro que não o fui. Mas por causa dessa experiência, fiz um mergulho profundo na história da música country e estudei o nosso arquivo musical”.

Mas não se iludam, COWBOY CARTER não é bem um “álbum de country”. É um álbum de Beyoncé. Repleto de muitas outras referências musicais, géneros e paragens que vão bem além das western boots e cowboy hats. Ainda assim, não deixa de ser imprescindível analisar a importância deste caminho na discografia de uma das mais icónicas artistas dos nossos tempos.

A primeira música do álbum, “AMERICAN REQUIEM”, um hino com harmonias vocais com uma pedalada no country, que faz ponte com a última música, “AMEN”, serve de mote para o que está para vir. A proposta de “face the wind”, naquele que é um desafio ao ideal americano, à noção de identidade de um país e de um género musical: “Used to say I spoke too country / And the rejection came, said I wasn’t country ‘nough / Said I wouldn’t saddle up, but If that ain’t country, tell me what is?” E pede mais amor e união — “Now ain’t the time to pretend / Now is the time to let love in / Together, can we stand?” —, honrando os seus ancestrais, propondo um “Goodbye to what has been”, lançando abertura para uma cura coletiva pelas feridas deixadas por uma nação — “We’ll be the ones to purify our father’s sins (…)Them old ideas / are buried here / Amen”.

COWBOY CARTER tem o simbolismo de trazer de alguma forma uma restauração da verdade e justiça, honrando os artistas afro-americanos que entraram na cena country e relembrando os seus ouvintes deste facto. Se há statement que fica deste álbum, é o seguinte: o country é de todos os americanos. Beyoncé é do Texas. Os seus pais de Alabama e do Louisiana. Mas mais do que ser do Sul ou ter um southern accent, com COWBOY CARTER, Beyoncé reclama a herança desconhecida e apagada dos afro-americanos na construção deste género musical. Esta influência começou com o banjo, instrumento utilizado na música country que tem origem dos descendentes de escravos na América. Muitas das canções dos artistas embrionários do country foram herdadas e adaptadas de hinos religiosos ou canções cantadas no campo, com origens na América negra. Por exemplo, a música “Little Darling, Pal of Mine”, um dos sucessos de um dos grupos mais influentes da música country, The Carter Family, foi um arranjo de um hino negro “When The World Is On Fire”. Mais tarde, o género sofreu ainda novas influências vindas do blues e da música gospel. E não é por acaso que o título seja este: COWBOY CARTER. Recorrendo ao seu apelido de casada, há também uma referência clara à The Carter Family. Por outro lado, a palavra cowboy tem origem nos fazendeiros brancos, que chavamam aos seus empregados brancos “cowhands“, enquanto aos negros a palavra usada era “cowboys“.

Em segundo lugar no alinhamento, aparece uma versão icónica do “Blackbird” dos Beatles, música escrita e cantada por Paul McCartney. Acompanhada por Tanner Addel, Brittnney Spencer, Tiera Kennedy e Reyna Roberts, Beyoncé continua a elevação dessa narrativa. “Blackbird” foi inspirado na luta pelos direitos civis nos EUA. “Bird”, em calão de inglês britânico, significa mulher. Este melro era nada mais nada menos que uma apologia à mulher afro-americana e à possibilidade de conquista dos seus direitos, sendo um símbolo dessa busca pela liberdade: “Blackbird singing in the dead of night / Take these broken wings and learn to fly / All your life, you were only waiting for this moment to arise”. Quase 60 anos depois, ter esta canção a ser recriada por uma daquelas que é das maiores referências de uma mulher afro-americana a cante, em conjunto com outras cantoras da cena country, tem muito de simbólico e de bonito.

Entre passagens em baladas acústicas acompanhadas à guitarra, coros de gospel, e ainda um toque na ópera, Beyoncé foi também um passo mais longe no demonstrar de uma vulnerabilidade em músicas como “16 CARRIAGES”, “PROTECTOR”, ou “DAUGHTER”, num jeito tão ou mais intimista e profundo do que fora antes visto em Lemonade. Talvez a coesão entre os vários elementos do álbum poderiam ter sido melhor conseguidos, sendo todavia uma tarefa particularmente desafiante, num álbum que conta com tantas referências e material, no qual também se destacam as transições no qual falam Dolly Parton, Willie Nelson, e Linda Martell (a primeira mulher afro-americana a ter sucesso comercialmente na música country, ainda que com bastante discriminação no seu percurso). Ainda assim, não deixa de ser interessante o desconcerto que o álbum pode causar, com músicas que dão uma piscar de olhos à vida noturna na pista de dança homenageada em RENAISSANCE — “RIVERDANCE” e “II HANDS TO HEAVEN” —, um salto no hip hop em “SPAGHETTI”, uma incursão pelo “FLAMENCO”, pelo pop-rock em “BODYGUARD”, ou ainda a ponte entre o country, rock e soul estabelecida com “YAYA”. Contando ainda com a participação exímia de Miley Cyrus naquela que é uma das melhores músicas do álbum, “II MOST WANTED”, há também “JUST FOR FUN” com Willie Nelson, “LEVII’S JEANS” com Post Malone, “TYRANT” com a icónica Dolly Parton e ainda “SWEET ★ HONEY ★ BUCKIIN’” com Shaboozey, COWBOY CARTER é um reflexo da daquilo que são os Estados Unidos na sua totalidade, desafiando um país que tem dificuldade em olhar-se ao espelho. Protagonizando ainda de forma mais vincada os  “yiiiihas” do country com músicas como “TEXAS HOLD’EM”, e uma versão reinterpretada do clássico de Dolly Parton, “Jolene”, sobre a “Becky with the good hair” já referida no “Sorry” de Lemonade, dando uma reviravolta à narrativa mais sofrida da canção original com uma nova versão mais empoderada, Beyoncé conseguiu a proeza de superar qualquer expectativa, confinamento ou marginalização sobre o que é suposto ser a sua música, mas também a música feita por artistas afro-americanos em traço geral, quase sempre encaixotados para o espaço do R&B e hip hop.

COWBOY CARTER é uma afirmação de liberdade absoluta do que é simplesmente ser e as possibilidades do que é fazer arte, desafiando géneros ou etiquetas. Como nos diz Linda Martell em “SPAGHETTI”: “Genres are a funny little concept, aren’t they? (…) In theory, they have a simple little definition that’s easy to understand. But in practice, well, some may feel confined.” Sem dúvida alguma a prova dada da capacidade de inovação, audácia e coragem de uma das maiores artistas dos nossos tempos naquele é que o ACT II de uma trilogia esperada, da qual antecede RENAISSANCE, álbum de homenagem à influência negra e queer na música disco.

Se há prova de que a música tem o poder de fazer reparações históricas, os últimos dois álbuns de Beyoncé confirmam-no. E é precisamente disto que este álbum se trata: a reconquista de um espaço, de uma narrativa, e de um lugar que sempre foi do povo afro-americano. Aguardemos pelo ACT III.


pub

Últimos da categoria: Críticas

RBTV

Últimos artigos