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Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 05/10/2023

A 24ª edição do festival açoriano arrancou com concertos de Orquestra AngraJazz e Renee Rosnes Quintet.

AngraJazz’23 — Dia 1: a força das grandes ideias

Fotografia: Rui Caria
Publicado a: 05/10/2023

Uma grande ideia: transformar uma praça de touros em centro cultural. Outra bela ideia: trazer o mundo até uma ilha. Mais boas ideias: usar a música para transformar vidas. O festival AngraJazz, que ontem à noite arrancou em Angra do Heroísmo, na Ilha Terceira, Açores, já não é apenas uma bela ideia — é, isso sim, um evento com pergaminhos sérios, que este ano celebra a sua 24ª edição e que, por isso mesmo, tem não apenas longa história, mas também um futuro promissor. O Centro Cultural e de Congressos de Angra serve de palco a este festival e, ano após ano — como me confirmam os veteranos frequentadores deste espaço e deste certame — é também ponto de encontro para quem ama esta música, para quem gosta de toda a música e até para algumas pessoas que podem simplesmente gostar de desfrutar de boas ideias transformadas em coisas muito reais.

A abertura desta edição do AngraJazz coube a outra grande ideia: a Orquestra AngraJazz, uma muito real consequência da visão que move a Associação Cultural AngraJazz que tem neste grémio de músicos o resultado de duas décadas de muito trabalho orientado por Pedro Moreira e também por Claus Nymark. Este último esteve ontem ausente, mas há-de saber que o maestro Moreira lhe dedicou o concerto, naturalmente muito aplaudido.

O vibrafonista Jeffery Davis foi o solista convidado. O músico nascido no Canadá é, na verdade, “ouro da casa”, já que foi em Portugal que cresceu e conduziu boa parte dos seus sérios estudos académicos. A sua procura de conhecimento e experiência levou-o também até à prestigiada Berklee College of Music, em Boston, Estados Unidos, e ontem, no palco, o seu vibrafonismo soou assertivo, carregado de classe e em perfeita sintonia com o restante colectivo que Pedro Moreira dirigiu com total elegância e expressividade. 

Uma orquestra é uma comunidade, uma misteriosa soma que resulta sempre maior do que a contabilização isolada das respectivas partes faria supor. Nos uníssonos, esta AngraJazz soou expansiva, entusiasmante até, com standards como “Afternoon in Paris” de John Lewis, “Stablemates” e “I Remember Clifford”, ambas de de Benny Golson, ou a belíssima “Footprints” de Wayne Shorter — icónico e recentemente desaparecido saxofonista que ontem, aliás, mereceu dupla vénia — a proporcionarem um belíssimo arranque para esta viagem de três muito bem recheadas jornadas. 

Moreira fez questão de salientar o desempenho dos solistas, como, por exemplo, Rui Melo (saxofone tenor), Paulo Borges (trompete) ou Antonella Barletta (piano), mas a verdade é que todos os presentes se mostraram à altura do desafio, que não era de somenos, tendo em conta a qualidade do repertório apresentado: Micaela Matos, Filipe Gil e Rui Borba (todos em sax alto), Mauro Lourenço (sax tenor), José Pedro Pires (sax barítono), Bráulio Brito, Guilherme Costa e Tomás Reis (todos em trompete), Rodrigo Lucas e Manuel Almeida (ambos em trombone), Gonçalo Ormonde (trompa francesa) e ainda Paulo Cunha (contrabaixo) e um incansável Nuno Pinheiro (bateria). O homem do leme fez questão de usar os plenos poderes da sua tripulação, guiando este “barco” por águas ora mais calmas, ora mais agitadas, conduzindo-o sempre a porto seguro e fazendo, portanto, por merecer os aplausos que chegaram sempre em catadupa.

A “terceira” parte da noite coube à apresentação do Renee Rosnes Quintet, já que no “intermezzo” decorreu a segunda e igualmente importante parte da noite: a da socialização entre todos os presentes. E aí deu para perceber claramente que se em palco havia uma comunidade, na plateia e nas galerias havia outras: de amigos, talvez vizinhos, de gente que ao cruzar-se nestas ocasiões fortalece laços. Um festival tem também — ou deve procurar ter — essa missão.

Renee Rosnes é uma ultra-conceituada pianista, colheita de ‘62: tocou com os gigantes Joe Henderson, JJ Johnson e Wayne Shorter, toca ainda com outros gigantes, como Ron Carter, e, pois claro, dirige o todo poderoso e incrível colectivo feminino Artemis, um combo de talentos altamente desenvolvidos que é simbolicamente representativo dos amplos poderes criativos das mulheres no jazz. Ontem, em cima do palco, toda essa experiência esteve em subtil evidência. À frente da sua working band, que inclui os significativos préstimos dos incríveis Steve Wilson nos saxes alto e soprano, de Nicole Glover (sua companheira nas Artemis) no sax tenor e dos enormes e impecavelmente vestidos Carl Allen na bateria e Peter Washington no baixo, Renee mostrou-se uma excelente show woman, com belíssimas capacidades comunicativas, sabedora na imediata criação de empatia. Quando apresentou a sua “Galapagos” (do seu álbum Written in the Rocks, de 2016), explicou que escolheu começar com esse tema pois lhe lembrava esta ilha: “Nem me apetece ir embora amanhã”, explicou, depois de enaltecer a beleza da Terceira e de Angra. Com o comping ultra-fluído e de pura sofisticação da líder, os sopros puderam voar até onde desejaram, mas a sua capacidade solista é igualmente assinalável, uma torrente de expressivas ideias harmónicas que faz verter sobre os nossos ouvidos com elegância absoluta.

O quinteto tocou algum material menos óbvio, como a excelente “Ba-lu Bolivar Ba-lus-Are”, de Thelonious Monk, ou “Diana”, peça que, explicou-nos a pianista, Wayne Shorter escreveu para a filha de Flora Purim e Airto (e que fez parte do álbum Native Dancer, de 1975). Joe Henderson foi outro dos compositores interpretados – escutou-se uma reverente leitura de “Isotope” – num set escorreito, de recorte clássico, sem qualquer tipo de desvio “modernista”. O que não retira brilho algum a uma actuação forte, em que todos os músicos provaram ser de primeira água: uma secção rítmica de subtil poder propulsivo, capaz de simultaneamente soar presente e discreta e de tecer sólidas bases para as interpretações dos restantes músicos; dois sopros inventivos, com personalidades vincadas, mas entendedores do seu lugar na quadratura do circulo desenhado pela líder Renee Rosnes. E ver assim em palco uma mulher empoderada, com argumentos musicais muito fundos, a liderar um combo com outros músicos de larga experiência e atributos técnicos elevados é algo sempre refrescante. E potencialmente transformativo.

Os aplausos efusivos no final deixaram claro que esta primeira noite da edição 2023 do AngraJazz foi de triunfo absoluto e deixaram a fasquia alta para as duas etapas que ainda faltam, mas hoje é dia de (relativo) descanso, no que ao AngraJazz diz respeito. O programa retoma amanhã, sexta-feira, 6 de Outubro, com as apresentações do Ben Allison Trio e do colectivo Coreto.


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