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Fotografia: Gonçalo Afonso
Publicado a: 26/12/2022

Porta aberta, mesa cheia e mundo lá dentro.

Ana Moura: “Cantar as histórias que foram vividas e escritas por mim está a ser uma experiência fascinante”

Fotografia: Gonçalo Afonso
Publicado a: 26/12/2022

A palavra “liberdade” ganhou um novo significado para Ana Moura depois de ter encontrado a música de Conan Osiris e ROSALÍA, os dois nomes que, juntamente com Pedro Mafama e Pedro da Linha, têm aparecido de forma mais recorrente quando se fala de Casa Guilhermina. O novo disco é o resultado desse reaprender a ser-se artista e das possibilidades infinitas que surgem quando destruímos os limites que nos impõem (e que, muitas vezes, nos auto-impomos).

Quando canta “Pois neste fado dispenso normalidades/ E vivo o instante como se não houvesse fim/ Eu me apaixono por pessoas e cidades/ E hei-de morrer deste amor que nasce em mim” em “Janela Escancarada“, o primeiro tema do sucessor de Moura (2015), a fadista declara desde logo as suas intenções: é para abanar tudo e criar espaço para outras narrativas (até para ela própria). Ao vivo, já mostrou que existe uma cisão total com a discografia pré-CG e, em conversa com o Rimas e Batidas, declarou que isso será algo para manter nos concertos de Janeiro em Berlim, Amesterdão, Londres e Paris ou nas datas em Lisboa e no Porto em Março.

Há cerca de duas semanas, a cantora falou connosco sobre o mais recente álbum e, entre outras coisas, as mudanças que ele trouxe para a sua performance em palco, mas também sobre faixas como “Mázia” e “Calunga”, a utilização de auto-tune e escrever letras, a sua inclusão nos “desfados da nova pop” ou aquilo que representam os autores de ADORO BOLOS e El Mal Querer para si.



Quero começar pelo concerto que deste no Super Bock em Stock, que foi a tua primeira apresentação oficial do Casa Guilhermina. Parece-me que, para lá da música, a tua imagem e os visuais são muito importante para esta nova fase, ou seja, tudo é importante nesta renovação e isso torna-se ainda mais evidente no espectáculo. Sei que também fizeste um showcase no Chiado, mas este é que foi o primeiro oficial, certo?

Esse no Chiado foi só uma apresentação, mas sim, este foi o primeiro concerto [do disco]. Os visuais têm acompanhado a narrativa que eu também pretendo passar com este disco: o arrojo, fazer as pessoas sentirem que eu estou num lugar onde me sinto livre e onde dou palco a várias narrativas e discussões para serem postas em cima da mesa.

Do meu lado, não senti qualquer tipo de nervosismo ou ansiedade em palco e acho que passaste a mensagem que pretendias, mas lembro-me de, a certa altura, confessares que quase parecia a primeira vez que tu e os músicos subiam a palco para actuar. 

Pois é, sim. Estava extremamente feliz, mas parecia que era a primeira vez porque eu estava a fazer coisas que não estou habituada. Ou seja, era um concerto todo programado. Até agora eu tinha dado concertos mas não tinha coreografias, nem momentos de luz programada, nunca tinha trabalhado dessa forma. Eram concertos que viviam de um lugar mais orgânico entre mim e os músicos, mas agora há toda esta narrativa e isso faz com que eu me sinta assim um bocadinho mais nervosa na primeira vez que as faço [risos]. Mas, no meu ponto de vista, correu bem, foi um primeiro pequeno passo de encontro àquilo que eu pretendo construir. Agora já estou a pensar nos concertos de Janeiro, já estamos a programá-los e em simultâneo a pensar também nos concertos que vou dar em Março nos Coliseus de Lisboa e do Porto. 

Olha, voltando à parte visual, eu adorava que falasses um bocado sobre os elementos que estão na capa. Eu sei que a fotografia é do Gonçalo Afonso, mas fala-me um pouco do design e dos elementos.

A ideia da capa é do Pedro Mafama, foi idealizada por ele, mas foi tudo feito por nós os dois com uma impressora e tecidos que nos foram cedidos pela BÉHEN, não sei se já já estás familiarizado com- 

Sim, ouvi falar do projecto no Cinema São Jorge, quando mostraste o disco antes do lançamento oficial.

Exactamente, e ela também estava lá e falou no final. Ela pega em tecidos tradicionais portugueses e dá-lhes uma nova vida. Também tenho sido vestida por ela algumas vezes e pedi esses tecidos. Fomos construindo a história e a narrativa-estética do álbum com a ajuda desses tecidos e com elementos que fazem parte da minha história. Dentro do álbum, tenho fotografias, tenho objectos e na capa está a fotografia da minha avó Guilhermina.

E há um gato preto, não é? 

[Risos] Há um gato preto, que é o meu gato. Ele apareceu ali por acaso, mas foi espectacular. 

Pois, eu ia perguntar se tinha sido algo orgânico, porque parece. Foi pensado?

Não, mas foi perfeito. Foi mesmo perfeito porque ele apareceu ali ainda por cima com aquela cauda toda levantada.

E o fio?

O fio que foi oferecido pela minha avó com a medalha. E depois uma florzinha de buganvília, porque a minha avó adorava buganvílias, tinha uma à entrada da casa dela. E eu, a minha mãe e as minhas tias adoramos buganvílias por causa disso também [risos]. E isso também é em jeito de homenagem à minha avó. 



A “Andorinhas” é, diria, o momento maior e mais óbvio pra todos, e julgo que para ti também será, mas eu vejo na “Mázia” aquele que emocionalmente e artisticamente é mais forte. Podes falar-me um pouco sobre a construção deste tema? É dedicado à tua prima, certo?

Sim, à minha prima Cláudia, que era uma pessoa extremamente alegre e nós tínhamos uma coisa que nos unia que era a herança angolana. Nós sempre ouvimos muita música angolana e adorávamos dançar kizomba e semba. A minha avó Guilhermina e o meu avô Francisco ficavam sentados e nós, desde pequeninas, dançávamos para eles [risos], ficávamos ali a rebolar e eles achavam imensa graça. Nós crescemos neste universo e a minha prima Cláudia no carro dela tinha sempre kizomba a dar. Entretanto, a minha prima faleceu antes da pandemia e eu quis fazer-lhe uma música. E senti que tinha que ser assim um semba para celebrar também aquela alegria toda e celebrar esta particularidade que nos unia, esta cumplicidade que nós tínhamos de vibrar com a música angolana. E saiu este semba. A letra é sobre a nossa história e sobre esta cumplicidade da amizade que nos unia porque nós sempre fomos as melhores amigas. Éramos até extremamente parecidas a nível físico.

E temos, além da voz do Paulo Flores, músicos de semba a tocar nesta faixa, não é?

Temos, aliás, antes dos produtores entrarem neste processo, eu fui para estúdio e gravei o tema com a ajuda do Paulo Flores e com o Kiari, que é o filho do Paulo e é um músico extraordinário. As bases foram gravadas com eles e depois os produtores colocaram o resto, sim. 

É a única letra que é totalmente assinada por ti neste neste disco? 

Não, não, tenho também o “Sozinha Lá Fora”.

Pois, claro que sim. Sentes uma grande diferença entre interpretar letras de outros e as escritas por ti?

Sim, [é] completamente [diferente].

Mas sentes-te mais confortável a cantar as tuas? Imagino que até possa ser ao contrário: às vezes é mais fácil adaptarmo-nos ao que já está escrito do que ter de assumir aquilo que fizemos de raiz.

Pois é, percebo. E realmente são tão íntimas estas duas letras, mas, não sei porquê, não me sinto exposta. Como é tudo muito novo para mim – eu até agora só tinha feito melodias, nunca tinha escrito letras – está a ser uma descoberta muito fascinante. De repente, estar a cantar aquela história que foi escrita por mim, vivida por mim, está a ser uma experiência fascinante para mim. 

Isso despertou um bichinho de escrever para outros ou só te consegues ver a escrever para ti?

Acho que só para mim [risos]. Acho que não tenho jeito para escrever, sinceramente, mas quis partilhar histórias que são minhas… agora olho para elas e gosto imenso destas letras, mas escrever para outras pessoas acho que não me iria aventurar [risos].



Outro dos temas que também me saltou logo assim à vista é o “Calunga” e tu fazes aqui uma mistura muito interessante. Há aqui um propósito? É uma provocação?

Olha, aconteceu, mas obviamente há sempre uma intenção, não é? Há uma intenção do ponto de vista artístico e pessoal porque eu entendo um bocadinho esta ligação como a história da minha família. Mas aqui é mais pessoal. A intenção é precisamente levantar questões à volta deste assunto. Interessa-me, por exemplo, a ideia de poder juntar estes dois géneros: o fado, que representa a música portuguesa, e o semba, que representa a música angolana, e de repente falarmos sobre a reconciliação da herança negra no fado, por exemplo. Se esta junção destas duas músicas puder servir para essa narrativa, isso é aquilo que mais me interessa.

E porquê estes dois temas em concreto? Não conhecia a versão da Amália Rodrigues. 

“Calunga” significa “morte”. Estas duas músicas [a outra é “Mona Ki Ngi Xica”] mencionam “calunga”. Achei que as duas poderiam contar esta história, porque é “de São Paulo de Luanda me trouxeram para cá”, ou seja, aqui já do ponto de vista mais de contar a história da minha família. E juntar com a sonoridade das palavras em kimbundu, que era aquilo que a minha família ouvia e que eu também ouvia. A minha avó falava umbundu, não falava kimbundu, mas são palavras com sonoridades que representam esta ideia dos sons que eram ouvidos pela minha família. 

Um outro nome que aparece muito à volta deste disco (e dentro também) é o de Conan Osiris, que, parafraseando o que disseste no Cinema São Jorge, te mostrou o que é uma certa liberdade artística. De que forma é que encontraste essa liberdade nele?

Foi a música dele, mas também a forma como ele se expressava e tudo aquilo que ele dizia – sem complexos e sem pudor. Até houve uma determinada altura em que ele começou a explicar porque é que a música dele soava de determinada maneira e aquilo para mim fez muito sentido. E as referências eram muito díspares, mas sempre achei que faziam muito sentido. Aliás, tal como este meu disco, nós não somos feitos de uma coisa só, nós não ouvimos só um género. Há várias coisas que nos constroem e ele falava, sem qualquer pudor, sobre referências que nós nunca iríamos imaginar que fizessem parte da música dele. Eu achava aquilo muito aliciante.

Mudando para outro nome muito importante neste disco, e que já foi referenciado, o Pedro Mafama, gostava de partir dele para perceber como foi para ti usar estas ferramentas para processar e alterar a tua voz. Foi uma forma de redescobrir a tua própria voz? Imagino que nunca o tivesses feito antes…

Pois não, eu nunca tinha tido esta experiência, foi espectacular.

Se calhar descobriste coisas que não sabias que existiam na tua voz.

Sim. O auto-tune é realmente uma ferramenta particular… porque tu tens que aprender a cantar de uma forma diferente [risos], e a controlá-la porque… como é que poderei dizer isto? Se tiveres muito afinado, aquilo quase que é imperceptível. Tens que… deambular para aquilo fazer realmente efeito, podes correr o risco de não se perceber o auto-tune. Mas eu adoro ter estas descobertas e de repente ouvir a minha voz de forma diferente. Eu já tinha feito isso no disco anterior, não com a minha voz mas com a guitarra portuguesa. Já tínhamos usado assim uns efeitos especiais na guitarra portuguesa e aquilo para mim foi espectacular. Usávamos em palco e ouvir a guitarra portuguesa a soar daquela maneira para mim era… Mas agora fazê-lo com a minha voz tem sido assim um processo muito fascinante. E já tenho vindo a fazer outras outras experiências. Espero usar já em composições novas.

Muito curioso para ouvir isso. Imagino que não tenhas lido o artigo que escrevi há uns tempos, o título era “Os desfados da nova pop”, e por lá associava-te a um movimento silencioso, digamos assim, que também tinha outros nomes como a Rita Vian, o João Não, o Pedro Mafama, o Conan Osiris. Pessoas diferentes a fazer coisas diferentes, mas eu sentia que existia ali uma união.

Sem dúvida. 

Tu estas atenta a essas pessoas novas?

Sim, claro. 

O Pedro Mafama e o Conan Osiris imagino que sim [risos].

Sim, mas a Rita Vian mal apareceu… bem, aliás, eu cheguei a convidá-la para vir fazer um Eléctrico comigo. Só que depois, entretanto, aquilo não foi para a frente, mas eu tive a intenção de convidar. Ela ainda nem sequer era mesmo nada conhecida. E o João Não faz parte da minha playlist no Spotify já há não sei quanto tempo [risos]. 

Boa, então faz algum sentido [risos].

Sim, faz super sentido. Percebo isso que tu sentes porque é o mesmo que eu sinto. Esse movimento que une estes artistas: eu identifico-me com ele e a música que faço agora também a associo a eles. 

Por falar em pessoas que andam a trazer linguagens mais arrojadas: tu estiveste no concerto da ROSALÍA na Altice Arena e acabaste por estar com ela no backstage. Não te vou perguntar sobre o que falaram, imagino que seja privado, mas de certeza que falaram sobre qual seria o truque para ter o sucesso que ela teve nos GRAMMYs Latinos não fazendo parte de um país da América Latina [risos]. Digo isto porque com este disco – e obviamente já tens uma sólida carreira internacional antes deste – talvez exista aqui outra ambição maior que é reforçada com os teus mais recentes passos. 

Claro. Eu tenho essas ambições, e já as tinha, mas, sabes, sempre nos fizeram acreditar que a nossa língua não iria chegar a determinados lugares e[, a partir de Espanha,] a ROSALÍA, o C. Tangana, a Nathy Peluso têm contrariado um bocadinho isso e fazem-nos acreditar que é possível. Embora também perceba que o mercado latino tem portas abertas que nós não temos, eu quero continuar a acreditar, e acredito cada vez mais, curiosamente. Eu sempre ouvi dizer, “Ana, mas isso para os portugueses não é possível. Os portugueses nunca vão chegar a determinados lugares”. Eu já fiz coisas que nunca pensei vir a fazer ao longo da minha vida e que foram muito surpreendentes, portanto, cada vez mais acredito que é possível e quero manter essa chama acesa. E a ROSALÍA é uma artista extremamente estimulante. É muito focada, muito disciplinada, e eu revejo-me nessa disciplina… e também é crente. Ela acreditou e lutou pelo que acredita, e eu acho que isso é extremamente importante. Essa é uma ferramenta muito importante para se atingir determinadas coisas, acho que ela tem atingido muito por causa dessas características – e porque a música dela é realmente muito especial e boa. E surpreendente. A cada álbum, as pessoas estão à espera de uma coisa e depois ela surpreende-nos com outra coisa e é livre. Eu sinto que ela é uma artista livre. Livre de várias formas, inclusivamente tu estavas a falar… ela é uma artista espanhola e está a cantar músicas que são da América Latina, por exemplo. E, aliás, ela só a cantar flamenco aí já poderia ser [risos] um problema…

E foi. Se calhar não tão grande, mas foi.

Pois foi. Mas ela fá-lo com um tom elogioso, cuidadoso, sem medos e com determinação. Eu aplaudo isso nela. 

Vocês conversaram sobre isso? Disse que não ia perguntar sobre o que conversaram, mas agora estamos a falar desta questão da apropriação e da apreciação, que é algo que está tanto à volta dela como agora está à tua. 

Pois é. Nós não chegámos a falar sobre esta questão, até porque são questões que demoram algum tempo. A ROSALÍA esteve duas horas em palco, a dançar e a cantar, ou seja, nós não estivemos assim muito tempo à conversa. Sei perfeitamente o que é estar em tournée mas à escala dela então, a dançar e tudo isso, é mesmo muito exaustivo. Eu quis respeitar esse momento, mas gostava de falar com ela sobre isso um dia. Quem sabe.

Ainda nessa temática, e regressando à apresentação no Cinema São Jorge, achei simbólico teres nomes tão diferentes e com histórias tão diferentes como, por exemplo, o Tozé Brito e o Herlander a falarem a partir do mesmo lugar de importância para ti. Entendi ali que o Casa Guilhermina era muito sobre isso também. 

Exactamente. Eu acho que este disco é isso mesmo. Se puder servir de plataforma para se falar sobre, dar espaço e voz a muitas narrativas e pessoas… se este disco servir para isso, eu fico feliz. E este disco é um lugar mesmo de inclusão e não de exclusão a nada. Portanto, para mim, faz muito sentido ter ali o Herlander e o Tozé Brito. Mas, sim, acho que olhar para uma plateia assim tão diversificada é uma coisa que me deixa feliz, porque isso acompanha a intenção do disco. A intenção do disco e a intenção dos vídeos também.

No início da conversa falaste das datas internacionais que vais ter, que são já em Janeiro. O show está a ser pensado para ser igual ao que fizeste no Super Bock em Stock ou existirão actualizações?

Sim, temos upgrades, principalmente de coreografias e coisas mais desse género, mas a base é essa, a que esteve no Super Bock em Stock.

E vais incluir músicas de outros discos ou será como o do SBeS?

Não. É uma completa renovação. É deste disco que eu estou a falar agora e quero que sejam só as músicas dele.


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