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Shirley Van-Dúnem

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Cá dentro e lá fora (e de que forma é que tudo se intersecta).

Casa Guilhermina: os debates da modernidade sobre a mesa

Silêncio que se vai cantar o fado, mas primeiro sentem-se para escutar o que ele tem para nos contar – é que ele apresenta-se despido do fantasma do conservadorismo do Estado Novo, pronto para esclarecer a sua posição enquanto aprende a gostar de si próprio. Se perguntarem ao fado de onde ele vem, também ele é capaz de não saber responder bem. Que existência insigne é esta de se ser de parte nenhuma em concreto e encaixar em qualquer lugar.

No teatro da vida, o fado sobe ao palco como actor multifacetado: foi classista e boémio, foi canção marítima, foi das classes mais pobres da sociedade lisboeta até à aristocracia e burguesia que o transformaram em produto comerciável e representativo da cultura local. Foi variação do cântico mouro como referência ao período em que o território português esteve ocupado pelos árabes; descendente da cultura afro-brasileira a partir de matrizes do lundu, fez-se intervencionista na obra O Cruel e Triste Fado de Rocha Peixoto que o denunciou como espelho da decadência que Portugal vivenciava na época. Não por último, mas como antecessor do momento em que se encontra actualmente, o fado reafirmou-se enquanto sinónimo de património, significando isso as gentes que o compõem: quem o canta, quem o ouve, quem o sente.

Nos últimos anos, isso também inclui artistas que vão de Conan Osiris a Rita Vian, passando por performances contemporâneas que ligam o fado à identidade de género e sexualidade como Fado Bicha – encontrem aqui mais informação sobre esta nova vaga.



[A música como arma]

Que a experiência musical é essencialmente participativa, integrativa e como toda a celebração gira à volta destas suas características, nós já sabemos. O que, por vezes, vai escapando entre os pingos da chuva é a força renovadora que transporta consigo. Tal como Fela Kuti dizia no seu documentário: a música é uma arma. Reparem que não existem grandes revoluções políticas sem que elas passem pela cultura também. O que a classe política reivindica para si como missão, a música ensina de forma eficaz. Vimos isso acontecer com o funk e com o hip hop, por exemplo, e como mudaram a vida de pessoas de comunidades marginalizadas.

Antes de me alongar, cabe-me dizer que não sou porta-voz da comunidade negra. Somos plurais e com opiniões distintas. Reclamo a minha individualidade para mim. Tão pouco vos trago verdades que são inquestionáveis ou tentativas de escrutínio a alguém. Tal como se pede de alguém que queira desenvolver uma consciência social sólida, vou flutuando numa dinâmica de tentativa e erro, ciente de que podemos sempre aprender mais e fazer melhor – o pensamento crítico serve exactamente para nos permitir desafiar o conforto das nossas opiniões, principalmente se só as costumamos dar onde não há oposição que nos faça ver outros ângulos.

Se há sítio que pode ser um espaço seguro para iniciar debates é a música. Nesse sentido, Casa Guilhermina pode ser um grito do Ipiranga nos debates que pode suscitar dentro da indústria musical portuguesa sobre cultura dominante e cultura dos subalternos – é um meter o Rossio na Betesga e provar que tudo parece impossível até que não seja – porque alguém assim o quis. É o caso de Ana Moura – mesmo que ela não tenha noção disso. Quando chegámos ao evento de pré-lançamento do disco fomos recebidos com um leque. O leque que, com as correntes de ar que produz, espalhou o aroma a mudança pelo Cinema São Jorge, em Lisboa.

As obras musicais existem para lá das intenções dos artistas, ganham vida consoante as vidas que nelas se revêem. Casa Guilhermina não é excepção, a sua importância ultrapassa os limites físicos do álbum.
Quanto vale este álbum para uma pessoa racializada que cresceu em Portugal? Para um emigrante português a viver fora do país?



[As fronteiras da identidade]

Ao fazer uma visita às minhas memórias, associo este álbum a casa e a família; e grande parte da construção de uma casa é feita por pessoas. Partilho do cunho pessoal deste álbum por me identificar em parte com o que nele é retratado. Quando pensamos naqueles que já foram, somos capazes de recuperá-los em territórios inusitados, tal como Ana Moura fez em Casa Guilhermina

Sou negra, nasci em Luanda mas cresci em Portugal, numa família de portugueses. O primeiro emprego, faculdade, tudo o que construí teve o seu berço aqui. Quando se tira o cheiro a nacionalismo bafiento da ideia de portugalidade sobram-me vivências pelas quais nutro imenso carinho. A casa da Tia Judite em Trás-os-Montes e os almoços de feijoada transmontana, as fisgas d’Ermelo e as galerias no Porto, o álbum Criôlo do B Fachada e a saudade que não se traduz, o Carlos Paião e as bifanas, o Bairro Alto e as marchas populares, o pedido do “café e a conta” sem esquecer o “se faz favor”, a Dona Maria e o Senhor José numa Alfama pré-airbnbização. Embora seja uma homenagem à sua avó materna, Guilhermina, escapa-me o pensamento para a pergunta: Ana, quanto do teu fado não será meu também?

As fronteiras da identidade são bastante dúbias. A interseccionalidade não me permite fechar os olhos. Uso-a como fio condutor para tudo. Não sou una e divisível. A música africana junta tudo aquilo que adoro sobre música no geral. A energia, as emoções, o elevar do astral e denúncia de injustiças. Nos últimos anos tem-se verificado uma capitalização de tendências globais, principalmente a apropriação de sons afro-latinos. O fado como o conhecemos sofreu um apagamento formal das suas raízes afro-brasileiras.

Não olho para rosas sem lhes reconhecer os espinhos. Surgem-me assim algumas interrogações sobre a falta de oportunidades dada a produtores negros para compor este álbum que podia ter beneficiado ainda mais desse contributo — quando se reclama uma ancestralidade/africanidade parece-me importante trabalhar com quem a partilha. Tal como Emicida constatou em AmarElo citando Oswald de Andrade, “é no encontro que nossa existência faz sentido e isso o samba já nasceu sabendo”. Ia permitir um processo de consciencialização, principalmente numa altura em que as sonoridades oriundas das periferias de Lisboa, feita por pessoas racializadas, é abrigada debaixo da categoria de “sons de Lisboa” enquanto as suas gentes são tratadas deste modo. Tal como é curioso notar que o kimbundu em Luanda está em vias de desaparecer como consequência do colonialismo e aqui é resgatado para músicas que pretendem reinventar símbolos da tradição musical portuguesa.



[Por onde passa o futuro? O papel unificador de Ana Moura]

Curiosamente, o álbum foi lançado no Dia de Independência de Angola. Como luso-angolana, isso significa que, por muito que eu saiba onde pertenço, existi sempre num espaço liminal – entre um destino que reconheço como dual, de legados múltiplos e outro que me é imposto como limite dada a minha tez escura. Não sou de cá nem de lá no barómetro da portugalidade. Este disco permitiu-me dialogar com a sociedade portuguesa. Pela primeira vez a ouvir este álbum na sessão de pré-lançamento, dizia Myriam Taylor: “senti-me representada. Eu também sou fado e semba” – é importante ouvir isto porque relembra que as múltiplas pertenças não se invalidam uma à outra, existe uma dinâmica muito mais complexa, de estruturas que as impedem de coexistir e reafirma a necessidade de se bater o pé.

A peça unificadora do puzzle é Ana Moura, alguém que agrada a gregos e troianos, é respeitada e representa um dos maiores símbolos da identidade nacional: o fado. Amália Rodrigues vê o seu tesouro – o fado – a servir um propósito ainda maior nas mãos de Ana Moura. Informada pelos saberes do tempo, pela herança genética e cultural que a criaram, ressignifica a ideia de portugalidade. Esta notoriedade confere-lhe o privilégio de alcançar uma exposição que pessoas que tentassem fazer um disco desta envergadura e com estas sonoridades não teriam, daí a urgência em ampliar-se espaços.

Sente-se o gosto a um amanhã mais promissor quando se junta, no mesmo espaço, nomes como Dino D’Santiago e Tozé Brito com outros como Paulo Flores e Aldina Duarte, acrescentando Herlander, Jesualdo Lopes e Saint Caboclo, reconhecendo-lhes a mesma validade – isto tudo enquanto se convida quem mais quiser entrar com um “Sejam bem-vindes à Casa Guilhermina” no ecrã. É, de certa forma, o abraço ao capital simbólico de um Portugal que se vê forçado a olhar para si ao espelho e a reconhecer que vidas são vividas e que vidas são obscurecidas. Um dos discos mais fracturantes dos últimos anos da música portuguesa – uma afirmação que é tão de Tozé Brito como minha.

No passado dia 9 de Novembro, aquela sala do Cinema de São Jorge transformou-se numa comunidade imaginada à moda de Benedict Anderson, pensada no sentido em que os membros da nação que é a Casa Guilhermina nunca conhecerão a maioria dos seus conterrâneos, podem até nunca vir a encontrá-los, mas, ainda assim, há algo maior que os une – há uma comunhão decorrente da multiplicidade de mundos que cabem naquele álbum e reflectem existências que lhe são exteriores. Uma que, infelizmente, ainda não existe fora das paredes do Cinema São Jorge.

É bom olhar para este álbum como um ponto do qual se parte para pensar o contexto sociopolítico do Portugal em que se insere, por si e pelas gerações futuras. Viverá para lá do tempo em que está a ocorrer, como bem disse Dino D’Santiago.

É uma casa portuguesa, com certeza. Tal como aconteceu a certa altura a Fausto, esta Casa Guilhermina lembra-me um sonho lindo. Mas este não está quase acabado. Começa agora se o soubermos concretizar.


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