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Fotografia: Allistair
Publicado a: 15/09/2022

Por este rio adentro.

ALMA ATA: “Não há maneira de afunilar este conceito só para uma coisa qualquer”

Fotografia: Allistair
Publicado a: 15/09/2022

ALMA//ATA. Assim se intitula o álbum que podia muito bem ter sido encontrado numa pen contida numa garrafa, vestígio do naufrágio de três marinheiros que, a dada altura, entraram em ruptura com os destinos que lhes eram inicialmente previstos. Arrastados pelas marés, o trio deu à costa em parte incerta e juntou-se em ALMA ATA, servindo o nobre propósito que é esse de desbravar terreno que não estava sequer ao alcance dos nossos sonhos.

Com o objectivo de honrar a canção portuguesa, Miguel Afonso (Caronte), Pedro Carvalho (Pedro, o Mau) e Tomás Sequeira (Tomaz) uniram esforços numa banda cuja matriz estética tem, também, muito a agradecer à cultura da música electrónica. Depois de três EPs, o grupo chega ao primeiro disco com traços cada vez mais fáceis de identificar, dentro daquilo que é a linguagem de melancolia pseudo-pop com que se exibiram logo em temas como “mais três cinco um“, “Cinzeiro” ou “Lúpulo“.

Em entrevista ao Rimas e Batidas, os músicos recordam como, de forma natural e progressiva, o compromisso entre ambos foi-se tornando cada vez mais sério ao mesmo tempo que nos tentam descodificar alguns dos principais ingredientes de uma receita musical que é, no mínimo, inovadoramente desconcertante.



Como é que surge a ideia de formarem este trio?

[Pedro Carvalho] Foi uma tentativa de saírmos daquelas sonoridades e daquela cultura musical a que estávamos associados. Queríamos fazer algo que, pelo menos, não fosse tão directamente associado a isso. Isso foi parte daquilo que nos fez começar a trabalhar juntos. Eu e o Tomás já tínhamos andado a brincar, há uns anos. Tens a “Cãozinho“, por exemplo, que já está na Internet há algum tempo. Se calhar, não tem muito a ver com o que estamos a fazer agora, mas a verdade é que já tínhamos percebido que haviam maneiras de trabalhar dessa forma.

O caminho do Miguel acaba por ser, mais ou menos, o mesmo. Ele também estava a tentar sair da sonoridade rap, tal como eu estava. Já tínhamos trabalhado juntos e acho que temos um historial bastante sólido a nível de trabalho. Juntarmo-nos em ALMA ATA acabou por ser muito orgânico. Eu e o Miguel já andávamos a pensar nisto. Houve um dia em que dissemos, “e se convidássemos o Tomás para tocar umas guitarras aqui por cima?” E há uma coisa muito curiosa: durante muito tempo, não gostava de ouvir guitarras em música electrónica. Se calhar, era da combinação que a malta fazia. Não sei. Mas sempre foi uma coisa que não me soava muito fixe. Acho que foi por não ter tido bons exemplos, que essa ideia de arranjar um guitarrista com quem tocar nunca me surgiu. Mas facilmente pensava num teclista ou num baterista. Guitarra eléctrica: chapéu. Isso é algo que eu, efectivamente, não gosto — ainda. Mesmo aquelas guitarras acústicas, mais limpinhas, também não me interessam muito.

De vocês os três, o Tomás será aquele cujo nome acusa menos entradas nas páginas do ReB. Antes de ALMA ATA, já andavas a tocar com outras bandas?

[Tomás Sequeira] Sim. Todo o meu processo de aprendizagem do instrumento foi dirigido nesse sentido. E sempre me foquei mais no blues. Depois, houve uma altura em que comecei a fazer as cenas por mim e também tive um projecto com um amigo, o Gui, que durou pouquíssimo tempo. Já conhecia o Pedro e o Miguel de um antigo trabalho.

Também tinhas essa ideia de que a guitarra e a música electrónica eram difíceis de misturar? Não sei se já consumias música electrónica sequer.

[T.S.] Não. Nunca tinha pensado nisso. Eu estava com um drive totalmente diferente, na altura. Estava mais focado em estudar do que fazer música, literalmente. E a música electrónica nunca tinha sido um mundo que eu tivesse investigado muito. Eu ouvia música com o meu pai, principalmente. Conheci bué música através dele. Nunca fui um gajo de me enfiar no YouTube, para pesquisar e tudo o mais. Eu passava uma grande parte do tempo a estudar, efectivamente. Ouvia Stevie Ray Vaughan, Eric Clapton, Jimi Hendrix… Estudei esses gajos. Depois tive aulas particulares de jazz. Comecei a ouvir um pouco mais de jazz, mas nunca gostei muito daquela cena. Andei a patinar um bocado, sem saber bem o que é que ia fazer. Quando tive esta oportunidade para trabalhar com eles… Eu nem me lembro bem porque é que isto aconteceu. Sei que reencontrei o Miguel, há dois anos e tal, e combinámos fazer uma troca: eu dava-lhe aulas de guitarra e ele dava-me aulas de escrita. De facto, ele ajudou-me muito a escrever e eu quase que não lhe dei aulas de guitarra — não por culpa minha [risos]. Anyway, eu acho que foi a partir daí que eu comecei a vir para casa do Pedro, com o Miguel.



Houve, certamente, aí um período experimental. Mas eu lembro-me de que não demorou muito até que vocês criassem um compromisso uns com os outros, de se juntarem religiosamente todas as semanas para trabalhar. O que é que despertou essa vontade tão urgente de encarar isto como um projecto?

[P.C.] Deu-se um clique mesmo fixe. Pelo menos para mim, a cena da guitarra ter funcionado tão bem logo desde o início foi um bocado… Antigamente, eu nem sequer gostava. E, de repente, deixei de ter algo que pudesse apontar. Deixei de conseguir dizer, “há qualquer coisa nesta sonoridade que eu não gosto”. Isso só começou a acontecer mais à frente, quando já estávamos a explorar efeitos diferentes e assim. Só nessa altura é que eu posso ter dito alguma coisa. No início, tínhamos as guitarras todas muito limpinhas. Foi uma surpresa muito grande, aperceber-me que, “ah! Isto dá para fazer? Bacano! Bora lá fazer mais”. Acho que a química foi automática para toda a gente. Acima de tudo, nós somos muito produtivos e trabalhamos muito depressa, mesmo logo numa primeira fase. Quando começas uma bandas, até teres a primeira música, as pessoas andam um bocado a experimentar coisas, até que consigam fazer uma ou duas músicas. O que aconteceu connosco foi que, em um mês, já tínhamos tipo oito faixas minimamente alinhavadas. Fomos tendo as coisas a postos para lançar. Passados dois ou três meses, já tínhamos bué merdas. Foi uma espécie de relâmpago. Ninguém se apercebeu muito bem que a coisa tinha engrenado tão bem, nesse sentido.

Desde que esboçaram os contornos dessas primeiras músicas até à primeira edição, vocês ainda demoraram, mais ou menos, um ano, não foi?

[P.C.] Um ano e dois meses, para aí.

[Miguel Afonso] Começámos, diria, em Setembro.

[P.C.] Setembro ou Outubro de 2020. Uma coisa assim. As primeiras cenas só são lançadas em Dezembro do ano seguinte.

Ainda não tinham lançado nada e, de repente, saem três EPs. Foi uma coisa muito pensada ou isto eram vocês já a depararem-se com uma grande quantidade de material em mãos e a sentir uma certa urgência de começar a ter coisas cá fora?

[P.C.] Foi um bocado de tudo. A uma certa altura, pensámos até em não lançar essas músicas. Acabámos por ficar naquela situação de, ao mesmo tempo, “nós até gostamos das músicas”. Não fazia muito sentido não lançar. Só que eram músicas que já estavam a começar a ser riscadas da lista de material de ALMA ATA. Acabámos por lançar os EPs já utilizando esse nome, o que acaba por ser um pouco contraditório. Mas, ao mesmo tempo, é o nosso trabalho e são registos daquilo que aconteceu. Era uma pena isto ter ficado guardado ou ter isto, de alguma forma, “preso”, por motivos de indecisão. “Vamos lançar, até porque isto também é uma forma de nos apresentarmos às pessoas”. É importante ter alguma coisa cá fora quando queremos poder falar de nós mesmos. Poder dizer que “já existe”, e não que é apenas um projecto que ainda temos em casa. As razões são uma mistura de tudo. Desde não querermos lançar as músicas até, de repente, as lançarmos com tudo muito arranjadinho, com capas diferentes, vídeos e não sei quê. A ideia desse lançamentos foi a de fazer um grande EP de apresentação, que se divide em três EPs. Temos ido muito de encontro ao que nos apetece fazer na altura.



Quando passam a ter esses três trabalhos na rua, que tipo de opiniões foram recebendo? E sentem que estão a chegar a um público diferente?

[P.C.] Acho que as pessoas ficam sempre impressionadas, espero eu, da melhor maneira. No sentido de: eu, no meu percurso a solo, até tenho umas coisas mais melódicas por ali perdidas, mas a maior parte das minhas coisas não eram coisas melódicas e bonitinhas. As pessoas ficam naquela do, “não estava nada à espera de te ouvir a tocar este tipo de coisas”. De resto, não tive ninguém a dar-me nenhum tipo de mau parecer. Pelo menos para mim, o feedback tem sido excelente. As pessoas não dizem só, “ya, boa cena”, uma vez mais. Eu quase que podia compor uma valsa para kalimbas, que o pessoal ia dizer sempre, “ganda cena!” [risos] Isto foi fixe, porque o pessoal questionou. “Como é que isto aconteceu? Porque é que começaste a fazer isto?” Sempre num sentido bué positivo da cena, por terem gostado, efectivamente, do que estavam a ouvir.

[M.A.] Foi, sobretudo, muito interessante, o constatar que as pessoas tinham sempre expressões de estranheza na cara. Não sei se uma estranheza boa ou se má. O que eu sei é que faziam cara de quem estava a ouvir algo de muito diferente, que lhes fazia confusão de alguma maneira. Quando mostrávamos essas faixas, ainda antes de lançar os EPs, às vezes nem tínhamos feedback. Só depois de elas estarem cá fora é que, “curti bué”. Ou seja, nota-se que há uma diferença entre a primeira audição e a audição que fizeram depois dos EPs saírem.

[P.C.] E essa coisa do “estranho bom” e “estranho mau” não existe. O “estranho” é só “estranho”. Depois é que passa a ser bom ou mau, eventualmente, se deixar de ser estranho. A parte mais fixe dessa reacção, de “não sei, efectivamente, o que se está aqui a passar”, é o ver as pessoas sem saberem muito bem como reagir. As coisas são desconcertantes e, depois, podem passar a ser boas, porque as pessoas apercebem-se que gostam. Isso foi sempre muito recorrente, quando mostrávamos as coisas às pessoas pela primeira vez. “Eu até gostei, mas é um bocado estranho”. As pessoas estavam a par do que eu e o Miguel andávamos a fazer. Depois, aparece isto e as pessoas já ficam à espera de uma outra coisa completamente diferente. Mesmo apesar de não poderem esperar o que quer que seja, porque o que estamos a fazer agora continua a ser muito difícil de catalogar. Ainda no outro dia, quando o Tomás estava a enviar o álbum para a distribuidora, ligou-me a perguntar quais os géneros musicais que devíamos usar para rotular aquilo. É muito estranho, mas não há, de facto, maneira de afunilar este conceito só para uma coisa qualquer. É uma mistura das coisas mais genéricas que consegues imaginar de música electrónica e de música portuguesa. Pronto. É isto: música electrónica e música portuguesa.

Falando nessa vossa ligação com a música portuguesa: nós estamos a atravessar um período de revivalismo e creio que o cunho daquilo que é a nossa cultura está presente em muito do que se está a fazer de relevante em Portugal. Mas eu noto que, a nível de referências, tenta-se sempre ir ali ao encontro de uns três ou quatro nomes mais marcantes, como José Afonso ou Fausto. Já aquilo que vocês apresentam remete-me mais para outros cantos da nosso história menos explorados, como o dos Clã ou dos Silence 4.

[P.C.] Acho que, provavelmente, as referências acabam por ser um bocado as mesmas. Até porque nós não temos propriamente assim tantas coisas boas às quais o pessoal se possa agarrar como referências séries. Felizmente, temos sempre nomes marcantes em todas as épocas. Houve sempre pessoal a fazer trabalho bom. Só que quanto mais para trás se vai, mais difícil fica de encontrar exemplos desses. O pessoal, querendo ou não querendo, acaba por rondar mais ou menos os mesmos nomes. É impossível que haja uma pessoa que realmente goste de fazer música e que dê valor à música portuguesa e não se deixe influenciar por todos aqueles mesmos nomes. Em relação aos que tu apontaste… Clã é mais o Miguel. Gostava de algumas coisas mas nunca foi “a banda” para mim. O que eu e o Miguel temos em comum é o facto de sempre termos ouvido muita música portuguesa desde miúdos. Uma coisa que acaba por nos unir mais aos três é Ornatos Violeta. Se calhar, fomos fanboys de coisas mais “modernas”, digamos, apesar de o Miguel ter imensas referências de música de intervenção e de cantautores portugueses. Eu tenho um bocadinho menos e acho que o Tomás também não tem. Por isso, essa parte podes associar mais ao Miguel. Clã? O Miguel também. Silence 4 não diz muito a eles os dois, mas foi uma banda bué importante para mim quando era miúdo. O que temos, os três, em conjunto são os Ornatos Violeta. É indo a partir daí que, depois, se começam a encontrar outros pontos de incidência. Ainda hoje há coisas que encontramos e das quais gostamos os três um bocado da mesma maneira. Dou-te como exemplo o último projecto do Nuno Prata. É engraçado por ter músicas muito “nada a ver” com aquilo que nós ouviríamos naquela altura e, mesmo assim, gostámos do projecto. Acho que também importa referir que temos todos uma cena com a música brasileira. É algo de que gostamos muito. É um ponto de referência em comum. Todos gostamos de bossa nova e todos os nomes que geraram esse movimento na época. Gostamos de música “romântica”, no conceito mais lato da coisa. É algo com que os três crescemos. Fomos gostando de coisas bonitas e melancólicas. Coisas semi-românticas, digamos.



Vocês são três a fazer a música, mas a banda acaba por ter ali uma espécie de quarto elemento através das capas do Allistair. Depois de colaborarem com ele nos EPs, voltam a tê-lo no artwork deste primeiro álbum.

[P.C.] O Allistair namorou com a Maria Sécio, que já nos tinha feito um vídeo para Pedro & o Lodo. Ele sempre foi curtindo das cenas que andávamos a fazer. Gostou tanto do MONRÓVIA como do Pedro & o Lodo. Começou a desenvolver-se uma espécie de relação. Quando chegou a altura de editar os EPs, perguntámos-lhe se ele tinha algum tipo de série para três EPs. Ele tinha feito há pouco tempo a série à qual pertencem aquelas três capas e disse, “tive a ouvir e acho que fica bué bem com a música. Se vocês quiserem, ficam com elas para as capas”. Ficámos contentes. Este álbum acaba por se dividir em dois, o ALMA/ e o /ATA. A ideia era ter uma capa diferente para cada parte, mas as plataformas de streaming são muito chatas e nunca dá para fazer o que as pessoas querem. Tivemos de arranjar maneira de meter tudo num só álbum e passámos a precisar de uma capa apenas. A capa que saiu agora é a do ALMA/ e ainda haverá a do /ATA. No Bandcamp e no Spotify vai sair com uma outra capa, que é a capa de ALMA//ATA, digamos. Essa será, provavelmente, a capa que vai ser vista mais vezes e que mais associada estará ao álbum.

O que é que vos levou a criar essa divisão dentro do disco? Foram questões estéticas? De narrativa?

[T.S.] Foi, única e exclusivamente, pela sonoridade das faixas.

[P.C.] Foi o facto de haver seis músicas que são mais antigas e, também, mais escuras. Tivemos uma altura em que tudo o que fazíamos soava muito tempestuoso. Passado uns tempos, aliviámos essa tensão e as coisas sairam mais bonitinhas. Apesar de que há algumas no ALMA/ que, além de antigas, já são um bocado bonitinhas. Começou foi a ser mais constante. Menos escuro. Agora, as coisas mais dark, mais tristes, aparecem com menos frequência. Antes era ao contrário. No caso deste disco, a sonoridade de ambas as partes era diferente em certos aspectos. Fez sentido dividir.

Há planos para promover o álbum noutros formatos? Não sei se têm mais vídeos a caminho ou se pensam até em fazer uma edição física disto?

[P.C.] Há que perceber toda a questão deste álbum. É um álbum que já sai com um atraso, em comparação ao próximo álbum. Neste momento, os planos que vamos começar a fazer têm a ver com o álbum novo e não necessariamente com este. Este álbum somos nós a ver o que é que se consegue arranjar e para ir embelezando o projecto. Mas não estamos assim tão focados em fazer mais coisas relacionadas com este disco. Tivemos essa ideia das cópias físicas, mas preferimos investir esse dinheiro num álbum novo.


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