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Vitor Rua

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A evolução da música de protesto em Portugal.

“A paz, o pão, habitação, saúde e educação” ou “Meio mundo sem saúde, sem comida e educação, e tu com a peida sentada a assistir da televisão”

A Música de Intervenção – também conhecida por “Música de Protesto” – existe quase desde que a forma “Canção” foi criada. Os trovadores — por exemplo — cantavam canções que criticavam reis ou rainhas ou denunciavam injustiças sociais da época.

Mas é no Século XX, nos finais dos anos 1950, princípios dos anos 1960, que nasce a chamada música de intervenção (também intitulada de música de Protesto), que seria uma música baseada em canções de música Popular e que tinham como intuito chamar a atenção do público para problemas de ordem social, económica ou política.

Esta música surge em vários Países — com graves problemas políticos (ditaduras ou regimes totalitários) — como o Chile, Uruguai, Brasil, Argentina, ou países europeus como a França, Portugal, ou Espanha.

Em Portugal este estilo musical surge da necessidade de contestar uma ditadura fascista que oprimia um Povo, só porque existiam pessoas a pensarem de forma diferente e a lutarem pela Liberdade e pelo fim da Guerra Colonial (que tanta gente matou) e pelo extermínio da PIDE (que matou e torturou tantas pessoas).

Cantores como o Adriano Correia de Oliveira, José Afonso, José Mário Branco, Sérgio Godinho, Vitorino Salomé, Luís Cília ou Fausto Bordalo Dias são todos nomes de músicos que pertenceram à dita Música de Intervenção.

Muitos destes cantores tiveram de emigrar ou foram presos ou viram as suas músicas censuradas pela PIDE.



Chegado o 25 de Abril e a Revolução dos Cravos, após um ou dois anos de “agitação” política — em que ainda se realizavam as chamadas “Sessões de Esclarecimento” –, a música de intervenção começa a entrar na “reforma” e a maior parte dos cantores deste estilo musical mudam-se para outras tipologias musicais, abandonando a forma de protesto que os caracterizava.

O Zeca Afonso manteve-se fiel aos seus princípios até ao fim, enquanto quase todos os outros se aliavam a editoras discográficas pertencentes a Multinacionais, ou começaram a apresentar-se em Coliseus com convidados como o Tony de Matos (que antes do 25 de Abril era acusado de ser do “nacional-cançonetismo”), ou a surgirem em abjectos concursos de televisão, ou a “encostarem-se” a telenovelas.

É claro que os músicos têm o direito de mudar de género musical quando o entenderem (eu fiz isso toda a vida!), e até de mudarem de ideologia política (um cantor como o Paulo de Carvalho — que eu não referi na lista de cantores de intervenção! — é muitas vezes citado como pertencendo a uma lista de cantores ligados a uma política de Esquerda mas no entanto é o autor do Hino do partido de Direita, PSD). Ou alguém que já tocou nas ruas — Jorge Palma — e fez letras que criticavam o Regime esteja hoje a ver as suas músicas a serem passadas em telenovelas. Ou um músico que tanto lutou por Portugal e o fez usando a Língua de Camões — Fausto Bordalo Dias –, esteja agora a fazer músicas que mais não são senão “simulações” de certa música brasileira (a Bossa, por exemplo), só que cantadas com sotaque de Portugal.



Para mim, como músico e etnomusicólogo, a figura mais importante da Música de Intervenção em Portugal é o compositor José Mário Branco, pois além de ser um bom cantor, um excelente poeta e de se fazer acompanhar à guitarra, é também um dos maiores produtores da dita música de Intervenção e um brilhante arranjador (combinação opípara de timbres e de texturas instrumentais), e ainda hoje mantém um Respeito e Dignidade enormes pela Música e pelos Músicos com quem ele lida, além de manter uma honestidade política invejável e continuar atento ao panorama político e a criticá-lo. Será dos poucos que ainda o fazem e de forma honesta, assertiva e eficaz.

Sérgio Godinho liga-se na actualidade a músicos das novas gerações e tenta manter uma “frescura” na sua obra, através de arranjos musicais que se podem aproximar de certo “Rock” ou “Pop”, deixando de lado o “tom” do “baladeiro” da canção de protesto numa forma de se manter actual, mantendo um nível exigente composicional (quer a nível dos arranjos, quer da sua forma idiossincrática de articular as palavras dos seus poemas).

Luís Cília passou a compor músicas para Dança, Cinema ou Teatro com uma grande competência musical, mas afastado totalmente da música de protesto e mais próximo da chamada música “Contemporânea erudita”.

Já músicos como o Vitorino ou o Fausto começaram a dedicar-se à pesquisa de outras músicas, sendo que no caso do Vitorino se fixou mais à volta do Cante Alentejano e canções de teor popular, com uma pequena incursão na música cubana, e no caso do Fausto existiu uma grande proximidade à música brasileira (a instrumentação e o tipo de arranjos assim o demonstram).

Depois existem outros músicos que vinham da chamada música Ligeira e que por vezes se aproximavam da música de intervenção com canções de carácter de protesto, como Fernando Tordo, Paulo de Carvalho, Carlos Mendes, Jorge Palma ou Simone de Oliveira, sendo que quase todos estes cantores, quando cantavam esses tais temas mais politizados, eram quase sempre da autoria do poeta Ary dos Santos (que teria de ser citado neste meu ensaio, como um dos nomes relevantes da Canção de Protesto, a par do da poetisa Natália Correia).

Mas então onde podemos nós encontrar na actualidade uma Música de Intervenção em Portugal, uma vez que já constatamos que dessa “fornada” de músicos, uns já não estão entre nós e os outros mudaram de “ramo”?

A resposta a essa questão é a seguinte: a Música de Protesto existe na actualidade em Portugal apenas e quase exclusivamente na Cultura Hip Hop!

E sublinho o termo Cultura!


https://youtu.be/r-wdGyr5J3o


O Hip hop é mais do que um rapper e um DJ ou um produtor a fazerem música! Existe toda uma Filosofia e Forma de Vida que é cultivada pelos seus seguidores. A forma como se vestem, os seus vídeos quasi “neo-realistas” — que mostram e denunciam a Pobreza em Bairros degradados repletos de grafítis -, contrastam com vídeos de opulência/luxúria, generalizados em certa Pop fútil — a la “Reininho/GNR” –, em que vemos videoclipes com limousines e garrafas de champagne a serem abertas em festas Glamour tipo Playboy, sempre repletas de mulheres “objecto”, transmitindo — por vezes — mensagens sexistas/machistas.

A música Hip hop é a Nova Música de Intervenção e os rappers são os novos Cantores de Protesto!

Músicos como Sam The Kid, Valete, Allen Halloween ou Chullage foram percursores deste movimento em Portugal, que prossegue na actualidade com músicos e bandas como Estraca, Dillaz, Phoenix RDC, ProfJam ou Wet Bed Gang.



São estes os novos cantores de Protesto! Uns — como o Estraca — com muita mais pertinência e consciência política, do que outros — como o ProfJam ou os Wet Bed Gang –, mais “comerciais”, mas que não deixam de exprimir e denunciar situações de crítica social (sexismo, racismo, pobreza)

É impressionante o número de visionamentos no YouTube destes músicos de hip hop: existem temas que oscilam entre os dois milhões (canções do Estraca, por exemplo) e os vinte e nove milhões de visionamentos (os Wet Bed Gang)!

Para isso temos de ter em conta — mais uma vez! — a chamada “Cultura Hip Hop”, pois nesta, a maioria dos seus seguidores são jovens que escutam música nos seus smartphones, em todo o lugar e em qualquer altura, no YouTube ou no Instagram, reflectindo-se na gigantesca diferença que existe, entre uns possíveis 200 mil visionamentos (que pode existir na Pop portuguesa com alguns temas dos The Gift ou do Rodrigo Leão), e os tais 29 milhões de visionamentos de uma banda como os Wet Bed Gang. Só este fenómeno já deveria dar direito a um Case Study para a etnomusicologia portuguesa!



Analisemos agora algumas letras tanto de rappers da actualidade como dos seus percursores. Sam The Kid retrata e critica uma instituição como a “P.S.P.”:

“Quanto custa uma vida boa para um inocente?
Não tem culpa de ter nascido sem um ingrediente
Importante para viver com dois olhos positivos.
Sociedade afasta e cria os fugitivos.
Vivendo à margem duma vida normal,
O chamado marginal numa vida ilegal”

Valete lutava assim no seu “Rap Consciente”:

“Tu sabes o que é um Homem?
Um Homem não tem preço…
Tu sabes o que é Hip Hop? Hip Hop? Hip Hop?
Se é para morrer
Morremos de pé
Morte do meu pai afundou-me no alcoolismo
Tu sucumbias se vivesses o meu transtorno
Querem que eu faça música no meio do cataclismo
Eu estive perto do abismo sem retorno
Xeg, viu a minha aura dissolvida”

Já na altura constatava que a Cultura Hip Hop estava a ser “contaminada” e dizia:

“X, salvaste-me a vida, tu sabes
Estava em silêncio a viver a minha miséria
Decadência funérea como Dezembros na Sibéria
Eu vi a vossa caminhada para o universo Pop
E vi como emporcalharam o Hip Hop”

Chullage usava a sua poesia como luta anti-racista:

“Farto de hospitais, certidões de óbito, brodas no banco dos réus
Barracas realojamentos fatelas escondidos atrás de arranha-céus
De vigilantes a seguirem-me de loja em loja pelo centro
Tugas a agarrarem as malas nos transportes quando eu entro
De professores a olharem pra mim e perguntarem-se o que é que eu faço lá dentro
Ignorando que eu dou no duro pra comer, vestir, pagar a renda pra estar ali dentro
Por isso que nem sempre eu me concentro
De escolas, serviços públicos, esquadras cheias de racistas
De ser o bode expiatório da direita
Cavalo de batalha de esquerdistas”

Phoenix RDC escreve sobre o machismo e tratamento desigual entre géneros (entre outros assuntos):

“ Do FMI à MEO só calotes, parece que sou cockroaches
Ou Dodots, mas o banco europeu cortou-te please
Não bastas tu, a troika também quer me foder o PIB
Manel eu bem te aviso, não tens juízo
Agora pedes emprestado no CEDIC e no CEDIM
E se há la azar ninguém ajuda o Zé Povinho
Vou fazer uma revolução cá em casa,
Não sou um cão que ladra
Sou escrava, mas com o escudo ainda dava
Com a crise, lavo a roupa passo a ferro e não ganho nada
E tu só dizes: cozinha, cala a boca velha parva”

No tema “Planeta Novo” do rapper Estraca, podemos ler as seguintes “mensagens/críticas” ao sistema sociocultural e político Mundial:

“Já sinto um futuro duro
Sentado num quarto escuro
Barreiras eu parto, furo
Verdades eu falo, juro
Sozinho mundo inseguro
O medo vem prematuro
Cada passo uma fronteira
E em cada fronteira, um muro”

Ou então uma escrita de cariz quase autobiográfico:

“Sam três álbuns na rua
e eu ainda de babete, men.
Eu tou na luta
Sem modinhas e manchete
Mãe limpezas
Pai na obra
E eu a querer viver do rap
Acreditei, sonhei eu sei que dei
E assim pensei
Saí do bairro fui pro mundo
Com as palavras eu rimei
5 países diferentes
Vários palcos que eu pisei
Com 20 anos eu digo-te isto
Então com 30 o que eu direi?”

A título de conclusão diria que após o 25 de Abril, a maioria dos chamados “Cantores de Intervenção” deixam-no de o ser, e tirando casos episódicos no Punk feito em Portugal (em que existiram algumas canções que poderíamos apelidar de “protesto”, mas que eram no entanto bastante naifs e inofensivas), e até em alguma música popular (como no caso do tema de Nel Monteiro “Puta Vida Merda Cagalhões” em que critica os milhões gastos em estádios de futebol, na Expo ’98 e no CCB), é na Cultura Hip hop que encontramos cantores de protesto a fazerem Música de Intervenção.

E já o é assim há décadas!

Se até ao 25 de Abril — na música de intervenção — se aclamava pela “paz, o pão, habitação, saúde e educação”, na actualidade — no Hip hop — denuncia-se que existe “Meio mundo sem saúde, sem Comida e educação, e tu com a peida sentada a assistir da televisão”!

Bem-Vindos Ao Admirável Mundo Novo da Canção de Protesto da Cultura Hip hop.


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